Polêmica: No dia de Natal, o
Financial Times ataca Francisco por suas críticas à desigualdade do mundo
Por Claudio Bernabucci, de Roma
na CartaCapital
Surpreendentes notícias chegaram
de Londres durante as recewntes festividades: o Financial Times, no dia de
Natal, resolveu atacar abertamente o Papa Francisco pelas posições críticas que
ele tinha recentemente manifestado sobre a desigualdade no mundo e, em geral,
contra as posições mais extremas do atual sistema econômico.
O colunista John Gapper,
britânico que mora em Nova York, é um dos mais badalados comentaristas
econômico-financeiros do jornal londrino. O que mais espantou foi, porém, a
escolha simbólica feita pelos editores. O FT é considerado uma espécie de
bíblia do neoliberalismo, e a escolha do dia 24 de dezembro para polemizar
abertamente com o papa indica que está em jogo um desafio profundo. Em outros
termos, a cúpula do sistema capitalista não gosta do novo papa, e ao mesmo
tempo o teme: o posicionamento do FT é só uma das primeiras manifestações de
antagonismo em uma luta que se prefigura duríssima.
Agora, para todos aqueles, como
este modesto contador de fatos, que atribuem ao neoliberalismo as principais
responsabilidades pela atual decadência mundial, o fato de o Finacial Times
colocar o papa Francisco na barricada dos adversários representou notícia
animadora. Se o FT está contra Francisco, nós estamos felicíssimos por ter o
papa como aliado e, portanto, melhor presente de Natal não poderíamos ter
recebido de além da Mancha.
Sem meios-termos, desde as
primeiras linhas, o longo artigo do Financial Times afirma que o papa está
errado na análise econômica sobre os desequilíbrios mundiais denunciados na sua
primeira Exortação Apostólica, batizada Evangelii Gaudium (o Gáudio do
Evangelho, 24 de novembro de 2013). “O Papa Francisco põe a mira no moderno
capitalismo por encorajar a “idolatria do dinheiro” e a crescente desigualdade
no mundo”, ataca Gapper.
Vem depois a citação literal de
uma só frase, no parágrafo 56 da Exortação: “Enquanto os lucros de poucos
crescem exponenencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do
bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que
defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira”. Até
aqui a citação do FT, mas na verdade o papa continuava, afirmando: “Por isso,
negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do
bem comum”. “Considerando o mundo como um todo”, prossegue o FT, “o papa está
errado em ambos os pontos. Não só a distribuição da renda ficou mais
equitativa, mas também o capitalismo pode se gabar desse resultado”.
É verdade que a distância entre
ricos e pobres aumentou no Ocidente, concede Gapper, mas em nível global nos últimos
anos a desigualdade econômica diminuiu. Citando o índice Gini de desigualdade
global, o comentarista observa que, nos países emergentes, China e Índia em
particular, onde vive a grande maioria da população, a desigualdade diminuiu
como resultado da globalização.
Na prática, observa o FT,
acontece que na última década, em termos econômicos, houve duas classes de
“vencedores” no mundo: os ricos em todos os lugares e a classe média nos países
emergentes. E houve dois perdedores: os pobres em todos os lugares e a classe
média nos países ocidentais. Através de inúmeras estatísticas e gráficos, o
comentarista tenta fortalecer suas posições, mas, na ânsia de demonstrar o
óbvio, perde de vista a complexidade do conjunto.
A Evangelii Gaudium, texto
articulado que só em parte se dedica às questões sociais do mundo
contemporâneo, já foi violentamente criticada por alguns expoentes da direita
americana, que, sem perífrases, colocaram o pontífice entre os marxistas por
ter ousado criticar o capitalismo. A bem da verdade, a opinião do Papa
Francisco parece ser compartilhada por outro perigoso esquerdista, sempre com
base nas convicções da direita americana.
Estamos falando do presidente dos
Estados Unidos, Barack Obama, que em recente discurso lamentou o fato de que os
10% mais ricos da população americana, que antes levavam para casa um terço da
renda nacional, hoje chegam a levar mais da metade. E que os administradores
das grandes empresas, que antes ganhavam de 20 a 30 vezes mais do que o salário
médio, agora ganham 273 vezes a média americana. “A desigualdade”, tem afirmado
recentemente Obama, “é a questão que define o nosso tempo. No que resta da
minha Presidência, todos os meus esforços serão focalizados em limitá-la”.
O artigo do FT não chega às
mesmas grosseiras conclusões do Tea Party americano, mas parece ser inspirado
pelas mesmas preocupações, ou seja, a perda de hegemonia mundial do núcleo duro
do capitalismo central, provocado pelo papa que veio do “fim do mundo”. O
presidente negro incomoda, mas já foi parcialmente neutralizado e agora
representa sem dúvida uma preocupação menor.
A leitura integral e uma análise
complexa da Exortação Apostólica levam a entender em todas as suas
potencialidades as posições da nova doutrina social que Francisco quer adotar
para a Igreja e, ao mesmo tempo, levar aos homens de boa vontade. Três questões
se destacam claramente na grande riqueza de conteúdo da Evangelii Gaudium: uma
ideia de Igreja aberta e proativa, uma forte crítica ao capitalismo neoliberal
e uma perspectiva ética de inclusão social.
O papa não se expressa contra nem
a favor de determinado sistema de mercado, mas vai direto ao coração da crise
mundial que se espraia em nosso tempo. Estamos assistindo a um colapso de todo
o sistema monetário, o que é consequência da derrota do conjunto de valores que
dominou a terceira fase da Revolução Industrial, a tecnológico-financeira. E
Francisco demonstra-se muito mais firme e claro do que seus antecessores em
condenar a injustiça e a especulação: “uma reforma financeira que levasse em
conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos
dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e
clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O
dinheiro deve servir, e não governar”!”
Aparece nítido no texto papal o
diagnóstico da falência ético-antropológica do sonho de um bem-estar puramente
materialista que caracteriza o capitalismo contemporâneo, com base unicamente
egoísta e individualista. “Para apoiar um estilo de vida que exclui os outros
ou mesmo entusiasmar-se com esse ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização
da indiferença. Quase sem nos darmos conta, tornamo-nos incapazes de nos
compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos
outros nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse
responsabilidade de outrem, que não nos compete. A cultura do bem-estar
anestenia-nos a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que
ainda não compramos, enquanto todas essas vidas ceifadas por falta de
possibilidades nos parecem mero espetáculo, que não nos incomoda de forma
alguma (parágrafo 54)”.
O que o papa Francisco indica é a
necessidade de uma saída social e humana da crise econômica: “Hoje, tudo entra
no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais
fraco. Em consequência dessa situação, grandes massas da população veem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem
saída”. O papa lembra “que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e
promovê-los”. Só dessa maneira se pode gerar a vitória da economia sobre as
finanças e reafirmar o papel dos povos nas atividades produtivas e de consumo.
Em suma, a economia deve ser posta a serviço do homem, para cada homem, e o bem
comum deve ser declinado em sentido popular e social, não individualista e
centralizador.
As mais belas páginas da
Exortação referem-se aos pobres: “Com a exclusão, fere-se, na própria raiz, o
fato de pertencermos à sociedade em que vivemos, pois quem vive nas favelas, na
periferia ou sem poder, já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
“explorados”, mas resíduos, sobras”. Contudo, o papa não propõe uma visão
crítica de pauperismo moralizante, tampouco oferece receitas pragmáticas: seu
papel não é esse. Sem dúvida, opera uma inversão radical na maneira de
enfrentar globalmente a questão da exclusão social, atribui dignidade à pobreza
e introduz com força a questão da exclusão na democracia de amanhã. Seu
raciocínio é sobretudo conceitual e ideal, e por isso preocupa tanto seus
detratores.
O artigo do FT termina com outra
citação do papa: “Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um retorno
da economia e das finanças a uma ética propícia aos seres humanos”. Com
indiscritível imprudência (ou talvez por simples ignorância) o articulista
conclui perguntando retoricamente: “A questão é: para quais seres humanos?”
Qualquer comentário parece
supérfluo. Preferível recorrer ainda às palavras do papa: “Assim como o bem
tende a difundir-se, também o mal consentido, que é a injustiça, tende a
expandir sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer
sistema político e social, por mais sólido que pareça”.
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