RAUL JUSTE LORES
Folha/UOL - DE WASHINGTON
Diversos críticos americanos de
Edward Snowden gostam de compará-lo desfavoravelmente a Daniel Ellsberg, 82, o
mais famoso ativista que, antes dele, também vazou dados e constrangeu um
presidente americano.
Ellsberg não fugiu do país e
enfrentou a Justiça (e o assédio do governo), logo após vazar um estudo
revelador sobre a Guerra do Vietnã, apelidado de "papéis do
Pentágono", a 18 jornais americanos em 1971.
A crise que encerraria a guerra e
terminaria por derrubar o governo de Richard Nixon começou com ele.
Ellsberg detesta ser usado nos
ataques a Snowden. "Se fosse hoje, eu teria feito o mesmo que ele, também
teria fugido", diz. "O país em que denunciei Nixon era bem diferente
de hoje".
Em entrevista exclusiva à Folha,
Ellsberg, 82, diz que "democracia não é compatível com governos que
conheçam cada comunicação, cada transação com cartão de crédito, cada mensagem
celular de seus cidadãos" e defende que o Brasil conceda asilo a Snowden.
*
Folha - Snowden agiu errado ao
ter fugido para a China e para a Rússia e não ter enfrentado as consequências,
como o senhor fez em 1971?
Daniel Ellsberg - O país em que
eu decidi ficar e enfrentar a Justiça era muito diferente. A Suprema Corte
tinha vários juízes que garantiam as defesas da liberdade de expressão e de
imprensa.
Obama já usou mais vezes a Lei de
Espionagem para perseguir quem denuncia do que todos os outros presidentes
anteriores.
Fui indiciado, mas duvido que eu
fosse condenado por aquela Suprema Corte. O país mudou muito, rumo à direita,
em minha opinião.
Fugir era a única alternativa?
Snowden pôde ver o que fizeram
com Chelsea Manning [ex-Bradley Manning], colocada em uma solitária por nove
meses. Manning jamais foi entrevistada por um único jornalista sequer. A
imprensa não teve acesso a ela. No repertório da ONU, o que fazem com Manning é
um tratamento cruel. Seria tortura, na minha opinião. Snowden aprendeu que
precisava estar fora do país para fazer o que fez. No lugar dele, eu teria
feito o mesmo.
O Brasil deveria conceder asilo a
Snowden?
Seria admirável se o Brasil
concedesse asilo ao Snowden. O mundo precisa agradecer a esse rapaz. O sonho
dele seria poder voltar ao seu paraíso, o Havaí, mas acho que ele passará a sua
vida no exílio. Não vejo chance de perdão presidencial aqui.
Ele fez um grande sacrifício.
Snowden corre risco de morte em qualquer lugar, talvez menos na Rússia, mas
acho que ele gostaria de estar em um lugar mais democrático e aberto.
Mas o Brasil não sofreria
retaliações dos EUA?
Não é fácil antagonizar o país
mais rico e poderoso do mundo. Muitos priorizam a relação com os EUA.
O Brasil poderia sofrer sanções.
Mas nenhum país tem direito de fazer espionagem total sobre as comunicações
privadas dos cidadãos no resto do mundo.
Snowden fez um favor ao mundo,
muito além da espionagem.
Qual?
Democracia não é compatível com
governos controlando e conhecendo cada comunicação pessoal, cada transação de
cartão de crédito, cada e-mail, cada mensagem de celular. Essa informação pode
ser usada para chantagens, com fins políticos e comerciais.
O Brasil, por exemplo, não é uma
ameaça à segurança dos EUA, assim como não o é a comunicação pessoal de Angela
Merkel. Esses usos nada têm a ver com terrorismo.
O presidente Obama deve anunciar na
sexta-feira as mudanças na espionagem da NSA (Agência Nacional de Segurança dos
EUA). O que o senhor espera que mude?
Acho que Obama divulgará só
mudanças cosméticas na espionagem. Não espero grande reforma de princípios.
Presidentes não gostam de reduzir poderes. O Congresso e a Justiça deveriam
contrabalançar, mas não estão cumprindo esse papel.
Após os ataques de 11 de
Setembro, os EUA precisaram reforçar muito a segurança. Como conciliar essa
necessidade com a privacidade?
O 11 de Setembro serviu para
muitas coisas. Para invadir o Iraque, para um governo mentir ao Congresso, que
é outra violação da Constituição. Não me surpreende que Obama não tenha mudado
ou voltado atrás nos abusos de poder da era Bush-Cheney. Tivemos tortura,
espionagem, e o Congresso e o público são culpados em aceitar esses abusos.
Um certo grau de vigilância é
necessário. Há perigos obviamente maiores por conta do terrorismo, mas
especialistas não acham necessária tanta coleta de dados. Essa escala absurda
de monitoramento faz o trabalho deles ser até mais difícil.
Senadores e deputados democratas
e republicanos dizem que os EUA estão mais inseguros graças a Snowden.
Não me surpreende que estejam
contra Snowden, são cúmplices. Mas alguns deputados já disseram que não há
evidência de um único atentado que tenha sido evitado por tamanha espionagem.
Boa parte da imprensa americana
também tem uma posição contrária a Snowden.
Colunistas de jornais, editores e
comentaristas na TV precisam ter acesso às fontes de Washington, trocam o que
eles consideram "furos" de reportagem por acesso aos poderosos. Não
são críticos como deveriam das ilegalidades em troca de acesso aos figurões de
Washington.
Mas o grande público americano
tem formado uma opinião diferente sobre Snowden. Muita gente, dizem as
pesquisas, acha que ele fez o que tinha de ser feito.
Qual é a diferença entre a
maneira como o governo Nixon tratou o senhor e Obama com Snowden?
A reação de Obama tem sido muito
parecida com a de Nixon. O que mudou é que o que ele fez comigo era ilegal. O
que Obama está fazendo com Snowden e Manning hoje é legal.
Nixon usou a CIA para me
grampear, invadir o consultório do meu psiquiatra para tentar descobrir minhas
fraquezas ou vulnerabilidades, tinham até um grupo para me dopar ou
incapacitar, que felizmente não chegou a cumprir o plano. Tudo isso era crime,
obstrução de Justiça, o que acabou encerrando o meu julgamento.
Fiquei como fugitivo por duas
semanas com minha mulher, escondido, enquanto eu conseguia passar as
informações para os outros jornais, já que a Justiça proibira o "New York
Times" de divulgar os papéis temporariamente. Foi o meu equivalente à fuga
do Snowden.
Hoje, usa-se a CIA
domesticamente, seria fácil invadir para apreender documentos e o presidente
tem até uma lista que autoriza execuções [por drones]. A Lei Patriótica depois
de 11 de Setembro tornou tudo isso legal.
Snowden não quebrou um acordo de
confidencialidade?
Snowden não quebrou nenhum
juramento. Tal juramento de sigilo não existe. Snowden e eu quebramos um
acordo, conhecido como padrão 312, que assinamos ao sermos contratados. Ele
prevê certas penalidades civis e administrativas por revelar informações
confidenciais.
É suficiente para deixar todo
mundo calado. Qualquer autoridade do governo americano ou do Congresso jura (ou
afirma) apoiar e defender a Constituição contra inimigos internos ou externos.
Há várias emendas da Constituição sobre liberdades civis e privacidade que
precisam ser defendidas.
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