Fábio Konder Comparato
Meio século após a instauração do
mais longo regime de exceção de nossa história política, é importante examinar
suas causas e analisá-lo num amplo contexto social, ultrapassando fatos
singulares e personagens individuais.
Com esse propósito, parece-me
necessário considerar, antes de mais nada, a tradicional estrutura de poder
vigente entre nós e a posição que nela ocupou a corporação militar.
I
Posição das Forças Armadas na
Estrutura de nosso Poder Político
Em todo o curso da História do
Brasil, a organização do poder apresentou uma estrutura dualista, englobando de
um lado os agentes estatais, e de outro lado os potentados privados, ou seja,
os grandes proprietários e empresários. Enquanto os primeiros se apresentaram oficialmente
como titulares do poder político e administrativo, os segundos, graças ao seu
poderio econômico, não deixaram de exercer sobre aqueles uma influência
determinante. Essa organização do poder político, a bem dizer, é própria da
civilização capitalista. “O capitalismo”, como bem advertiu Fernand Braudel,
“só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado”.
Como órgão auxiliar dessa
estrutura dualista de poder, atuou, até recentemente, a Igreja Católica. A
monarquia portuguesa havia obtido do papado, durante a Idade Média, o
privilégio do padroado régio, que habilitava o monarca a propor a criação de
novas dioceses, escolher os bispos e propor sua sagração ao papa; além do
chamado beneplácito, que era o poder de o rei aprovar previamente as normas e
determinações da Santa Sé destinadas ao reino. Em razão do padroado, que
vigorou entre nós até a República, os eclesiásticos atuaram como autênticos
funcionários da Coroa. Mesmo após a separação entre a Igreja e o Estado,
estabelecida pela primeira Constituição republicana de 1891, a Igreja Católica
exerceu no Brasil uma influência decisiva, em defesa da ordem política
estabelecida.
Quanto ao povo propriamente dito,
ele nunca, nem de longe, deteve a soberania e, salvo períodos de curta duração
– como durante a “Era Vargas”, por exemplo – ficou totalmente alheio ao esquema
geral de exercício do poder político, mesmo quando, a partir do período
republicano, foi constitucionalmente proclamado como a fonte de onde emanam
todos os poderes.
Entre os dois grupos dominantes
acima nomeados –os agentes estatais e os potentados privados – estabeleceu-se
aquela dialética da ambiguidade a que se referiu o historiador José Murilo de
Carvalho, retomando uma expressão cunhada pelo sociólogo Guerreiro Ramos. Cada
um desses grupos de poder sempre busca, antes de tudo, realizar o seu próprio
interesse e não o bem comum do povo. Mas, salvo conflitos episódicos, mantêm-se
associados, em situação de mútua dependência. Assim, enquanto o conjunto dos
agentes estatais – governantes, legisladores, juízes, membros do Ministério
Público, altos funcionários – no exercício de suas funções oficiais favorece a
realização dos interesses econômicos dos potentados privados, estes últimos,
sob o disfarce da submissão ao poder oficial, não cessam de exercer pressão
sobre os primeiros em todos os níveis – legislação, administração, prestação da
justiça –, quando não os corrompem, pura e simplesmente. Aliás, a generalizada
prática da corrupção dos agentes públicos, herdada de
Portugal, marcou toda a nossa
história, havendo chamado a atenção de notáveis viajantes estrangeiros no
século XIX.
Até o final do Império, as Forças
Armadas atuaram como organização auxiliar desse esquema dúplice de poder. A
partir da Guerra do Paraguai (1865-1870), entretanto, a corporação militar
manifestou crescente insatisfação com o seu estado de dependência na
organização estatal, como passamos a ver.
a) Período colonial
A colonização portuguesa, tanto
na América, quanto na Ásia e na África, teve, desde o início, um caráter
nitidamente mercantil.
Com efeito, a partir do reinado
de D. João I, inaugurador da dinastia de Avis na segunda metade do século XIV,
o pequeno reino ibérico conheceu a primeira grande revolução dos tempos
modernos, com o rompimento da milenar estrutura social da civilização
indo-europeia. Nesta, como sabido, a sociedade era dividida em três estamentos
(États, Stände): o dos clérigos, o dos aristocratas-militares e o dos simples
servos lavradores. Sucedeu que no dealbar da Baixa Idade Média, nas localidades
chamadas “burgos de fora”, ou seja, não sujeitas ao poder feudal, surgiram e
prosperaram três grupos sociais estranhos àquela tripartição estamental, e que
passaram, em razão de sua origem territorial, a ser denominados burgueses: os comerciantes,
os juristas e os militares de profissão.
O Mestre d’Avis, assumindo o
trono logo após a grande crise de 1383 – 1385 entre Portugal e Castela, afastou
da Corte a nobreza favorável à aliança entre ambas as Coroas ibéricas, e chamou
a si aquelas três categorias de burgueses, atribuindo-lhes a missão de servi-lo
diretamente na luta pela manutenção da independência do reino. Criou, destarte,
aquele estamento burocrático, cuja atuação na história política de nosso país
foi analisado em profundidade por Raymundo Faoro em obra já clássica.
A grande aventura colonial,
desenvolvida a partir da descoberta da América e a abertura do caminho marítimo
para as Índias, foi desde o iníicio montada com o auxílio dos militares e
comerciantes ligados à Coroa. O próprio rei tornou-se o primeiro comerciante do
reino. Em suma, como disse Alexandre Herculano, fundou-se em Portugal um regime
de capitalismo político.
No sistema das capitanias
hereditárias, por primeiro instalado no Brasil, a autoridade máxima local, o capitão-donatário,
era dotado de todos os atributos régios, notadamente o poder militar, e
desenvolvia pessoalmente a atividade de exploração mercantil da terra.
Sobrevindo o regime de governo-geral, inaugurado por Tomé de Souza em 1549,
garantiu-se, em benefício de alguns senhores de engenho designados pela Coroa,
o oligopólio da produção de açúcar. “O ser senhor de engenho”, asseverou
Antonil em sua obra de 1711,7 é título a que muitos aspiram, porque traz
consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”.
Criou-se em consequência, em todo
o período colonial, uma estrutura dúplice de poderes, reunindo de um lado os
grandes fazendeiros e senhores de engenho, e de outro lado o estamento
burocrático nomeado pela Coroa, ou seja, os altos funcionários régios. Entre
esses dois grupos de potentados, estabeleceram-se ao longo dos séculos
estreitas relações de parentesco, amizade e compadrio.
No conjunto dos funcionários
oriundos da metrópole, os militares sempre predominaram, pois desde o início da
aventura colonial houve constante preocupação com a defesa do território. A
corporação militar organizava-se em três grupos:9 1) as tropas de linha,
compostas essencialmente de regimentos portugueses, e que operavam em todo o
território colonial; 2) as milícias, constituídas também por tropas regulares
de recrutamento compulsório, mas não remuneradas, distribuídas em freguesias ou
circunscrições eclesiásticas; 3) os corpos de ordenanças, que abrangiam toda a
população masculina entre 18 e 60 anos, não recrutada nos dois primeiros corpos
militares.
Essa avassaladora organização
militar nunca se distinguiu pela disciplina. Enquanto os chefes mantinham-se
estreitamente unidos à classe dos ricos senhores, sendo que muitos oficiais de
alto grau adquiriam propriedades rurais ou tornavam-se comerciantes, a
soldadesca cometia freqüentes abusos contra a população pobre. Luís dos Santos
Vilhena, em suas crônicas da Bahia do final do século XVIII,10 relata a
freqüência com que, nas épocas de escassez de alimentos, os militares invadiam
currais e açougues, a fim de se apossar de toda a carne destinada à venda.
b) Período imperial
Desde a criação do Estado
brasileiro independente em 1822, até o final do reinado de D. Pedro II, a
corporação militar representou o braço armado da Coroa imperial, em defesa da
organização política centralizada e da unidade territorial do país.
Nessa posição, as Forças Armadas
atuaram, já em 1824, na pacificação do conflito entre o presidente da Província
de Pernambuco, nomeado pela Corte, e seu adversário local. Nos anos seguintes,
a corporação militar teve que enfrentar, não poucas vezes, segmentos rebeldes
dos proprietários agrícolas e comerciantes urbanos, ou seja, o outro ramo da
dominação oligárquica. Assim sucedeu durante todo o período regencial – Guerra
dos Cabanos (Pará, 1835-1840), Guerra dos Farrapos (Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, 1835-1845), Sabinada (Salvador, 1837-1838), a Balaiada (Maranhão e
Piauí, 1838-1841) – estendendo-se até os primeiros anos do reinado de D. Pedro
II: revoltas liberais de 1842 e a Revolta Praieira de 1848.
A corporação militar foi, porém,
poupada no combate aos vários levantes de escravos, como a Revolta dos
Carrancas em Minas Gerais em 1831, a Revolta dos Malês na Bahia em 1835 e os
combates contra quilombolas. Nesses confrontos, o governo imperial preferiu
servir-se das forças policiais e dos chamados capitães-do-mato, estipendiados
pelos senhores rurais. O governo chegou mesmo a criar em 1831, como força
auxiliar da polícia, a Guarda Nacional. Compunham-na todos os cidadãos ativos
de 21 a 60 anos, entendendo-se como tais as pessoas que dispunham de uma renda
anual de 100 mil-réis e constituíam, nessa condição, os eleitores de primeiro
grau.11 Eles formavam a ínfima minoria de brasileiros, considerada a “elite” da
nação.
Mais importante que isso,
todavia, foi o desempenho de primeira linha das Forças Armadas imperiais em
vários conflitos externos, como as sucessivas guerras platinas e, sobretudo, a
Guerra do Paraguai (1865-1870).
Esta última representou o fator
desencadeante de um inconformismo geral no seio da corporação militar. Havendo
combatido ao lado das tropas da Argentina e do Uruguai, repúblicas onde os
militares podiam ocupar altos postos políticos, inclusive a chefia do Estado,
os oficiais brasileiros não mais aceitavam permanecer como cidadãos de segunda
categoria, sem desfrutar de todas as liberdades políticas asseguradas aos
civis. Por outro lado, nossos militares tomaram consciência de sua condição
humilhante de subordinados ao poder escravocrata, devendo assinalar-se que um
contingente apreciável das tropas brasileiras era composto de escravos.
A partir de 1883 e praticamente
até a Proclamação da República, ocorreu uma série de incidentes, que os
historiadores classificaram como “a questão militar”. Influenciados pela
pregação positivista, desenvolvida sobretudo por Benjamin Constant na Escola
Militar da Praia Vermelha, os integrantes das Forças Armadas começaram a
reivindicar direitos fundamentais de cidadania que lhes eram recusados, como o
de reunião e de livre manifestação política.
Por outro lado, com o crescimento
exponencial da fuga de escravos e a multiplicação de quilombos em todo o
sudeste do país, o governo imperial, pressionado pelos grandes proprietários
rurais e verificando a fraqueza dos contingentes policiais, tentou recorrer às
forças do Exército para a recaptura dos fugitivos, o que causou generalizado
mal-estar entre os militares. A tensão agravou-se até que em outubro de 1887,
poucos meses antes da Abolição, o Clube Militar, sob a presidência de Deodoro
da Fonseca, dirigiu um apelo à Princesa Regente, no sentido de que os soldados
ficassem dispensados da “captura de pobres negros que fogem à escravidão”.
Em suma, ao final do Império as
Forças Armadas entraram em aberto conflito, não só com os agentes estatais
detentores do poder político oficial, mas também com o conjunto dos grandes
proprietários agrícolas; ou seja, os dois grupos titulares efetivos da
soberania.
É nesse contexto que sobrevem a
Proclamação da República. Ela deu, de início, a chefia do Estado,
sucessivamente e durante cinco anos, a dois altos oficiais militares, Deodoro
da Fonseca e Floriano Peixoto. Mas a falta de apoio dos grandes fazendeiros do
sudeste às Forças Armadas levou à transferência da presidência da República, em
15 de novembro de 1894, a Prudente de Morais, nosso primeiro presidente civil,
legítimo representante da oligarquia cafeeira.
c) A “República Velha”
(1894-1930)
O restabelecimento da supremacia
do poder civil não significou um apaziguamento da insubordinação dos militares;
longe disso.
Já em 1904, no contexto da
revolta popular contra a vacina obrigatória, instituída por Osvaldo Cruz para
debelar a febre amarela, deu-se no Rio de Janeiro a Revolta da Escola Militar
da Praia Vermelha, na qual morreram, em confronto com as forças policiais, além
de um aluno, o tenente-coronel e senador Lauro Sodré e o general Travassos.
Na década de 20, com o chamado
movimento tenentista, irrompeu a revolta da jovem oficialidade do Exército
contra a falsidade de uma representação política subordinada ao poder
latifundiário. Em 1922, um grupo de tenentes revoltou-se no forte de
Copacabana. Em 1924, em São Paulo, a capital ficou três semanas em mãos de
jovens militares, chefiados pelo general reformado Isidoro Dias Lopes. Ainda em
1924, graças à junção de um contingente militar, que se retirava vencido de São
Paulo, com outro grupo de soldados rebeldes, chefiado pelo capitão Luis Carlos
Prestes, futuro líder do Partido Comunista, teve início a façanha da Coluna
Prestes, que percorreu cerca de 25.000 quilômetros no território nacional,
protestando contra o regime político fraudulento da “República Velha”.
d) A “Era Vargas”
Sobrevindo a chamada Revolução de
1930, que levou Getúlio Vargas à presidência da República, este percebeu desde
logo a necessidade de contar com o apoio do novo operariado industrial urbano,
bem como da jovem oficialidade das Forças Armadas; tudo no contexto da primeira
experiência de intensa propaganda política pessoal levada a efeito no Brasil.
Assim, além de criar a legislação trabalhista e desenvolver a organização
sindical sob a tutela do governo, Getúlio não hesitou, durante o período de
governo provisório, em nomear tenentes do Exército como interventores em todos
os Estados da federação. Além disso, cercou-se de vários generais na cúpula do
governo, o que lhe permitiu, sem qualquer reação, repudiar em 1937 o Estado
Constitucional (em 1934 fora promulgada nova Constituição), instituindo o
Estado Novo, de inspiração fascista. Graças ao apoio militar, foram
sucessivamente esmagadas a revolta comunista de 1935 e a integralista de 1938,
as quais contaram com a participação de oficiais do Exército.
Com o início da Segunda Guerra
Mundial, Getúlio decidiu, após dois anos de hesitação, apoiar os Estados Unidos
no conflito bélico. Em julho de 1941, assinou um pacto secreto com o governo
ianque para a construção de bases aéreas e navais no extremo oriental do
Nordeste brasileiro, como trampolim para o transporte de tropas e armamentos
norte-americanos em território africano, onde já operava a Wehrmacht. Em
compensação, o governo americano liberou um empréstimo de 20 bilhões de dólares
para a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, o primeiro
complexo de siderurgia criado na América Latina.
Em agosto de1942, após o
torpedeamento de 21 navios mercantes brasileiros que navegavam em nosso mar
territorial, o governo declarou o estado de beligerância e, logo após, a
declaração de guerra contra a Alemanha e a Itália. Um ano depois, em 9 de
agosto de 1943, foi criada a Força Expedicionária Brasileira, enviada em 1944 a
combater na Itália.
A influência norte-americana
fez-se presente também no plano da política interna, envolvendo os militares.
Em 1943, o General Manuel Rabelo criou a Sociedade Amigos da América, que
contava com o apoio dos Generais Horta Barbosa e Candido Rondon. Em 1944,
Oswaldo Aranha, desde há muito amigo dos americanos, desligou-se do Ministério
das Relações Exteriores e passou a apoiar a instauração de um regime
democrático.
Tal como ocorreu após a Guerra do
Paraguai, nossos militares da FEB, ao retornarem da Europa, onde foram
sacrificadas 443 vidas, sentiram-se inconformados com sua posição subordinada
na estrutura da máquina governamental. Acresça-se a isto o fato de que o
governo norte-americano, servindo-se da recente ligação de seus generais com os
comandantes das tropas da FEB na Itália, passou a pressionar o ditador a deixar
o poder, alegando que a guerra contra as potências do Eixo Roma-Berlim-Tóquio
fora desenvolvida em nome dos ideais democráticos.
Na verdade, o que mais incomodava
os Estados Unidos era o nacionalismo getulista em matéria de política
econômica, fortemente contrário aos interesses das macro-empresas
norte-americanas. Em 1938, foi criado o Conselho Nacional do Petróleo, sendo
localizada pela primeira vez no ano seguinte, na Bahia, uma reserva do óleo. O
cartel internacional do petróleo, com forte apoio norte-americano, desenvolveu
desde logo forte pressão sobre o governo brasileiro para impedir a exploração
do combustível, o que realmente aconteceu.
Terminada a guerra, Getúlio, que
acabara de receber total apoio de Luis Carlos Prestes, foi afinal deposto pelos
generais Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra em 29 de outubro de 1945.
Conservou, no entanto, seus direitos políticos e, sobretudo, imenso apoio
popular. Nessa condição, aproveitando-se das disposições da lei eleitoral, que
permitia candidaturas individuais em mais de um Estado, foi eleito deputado
federal por 7 Estados e senador por São Paulo e Rio Grande do Sul. Optou pela
cadeira de senador do Estado gaúcho.
Lançando mão de uma astúcia
política jamais igualada entre nós, Getúlio criou dois partidos políticos, o
PSD e o PTB; o primeiro reunindo os grandes líderes ruralistas e os novos
empresários industriais, e o segundo como porta-voz da massa trabalhadora
urbana, enquadrada pelos sindicatos, desde sempre getulistas. Ou seja, como
disse ferinamente seu grande opositor, Carlos Lacerda, enquanto o PSD criava a
miséria, o PTB explorava suas consequências.
A astúcia do grande lider
populista não se limitou, porém, a isso. Abertas as eleições para a presidência
da República, Getúlio apoiou a candidatura do General Dutra, que o depusera em
1945. Afastou, com isso, toda oposição militar ao processo eleitoral, além de
tranqüilizar o grande empresariado, inquieto com a livre atuação dos militantes
comunistas.
O governo do (já então) Marechal
Dutra representou a primeira grande experiência de liberalismo capitalista no
Brasil, especialmente em matéria de política cambial, movimentação
internacional de capitais e comércio exterior. Conquistou, com isso, o apoio
integral do grande empresariado, nacional e estrangeiro. No campo propriamente
político, Dutra deu inteira satisfação aos Estados Unidos, ao apoiar
abertamente o processo judicial que conduziu à cassação do registro do Partido
Comunista, em 1947.
Ao voltar legitimamente à
presidência da República pela via eleitoral em 1951, Getúlio Vargas pôs fim à
orientação liberal privatista do seu antecessor, suscitando com isso a oposição
do empresariado à sua linha de governo. Logo após a posse, foi criada, junto à
Secretaria da Presidência, uma Assessoria Econômica, composta de competentes
administradores públicos de orientação nacionalista. Esse órgão exerceu na
prática, pela primeira vez em nosso pais, as funções de planejamento
governamental, dando especial atenção à política de investimentos na
infra-estrutura econômica. Da Assessoria Econômica presidencial saíram, entre
outros, os projetos de criação da Petrobrás, do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico, do Fundo Rodoviário Nacional e da Eletrobrás.
Estava-se, porém, naquele
momento, em pleno conflito da chamada Guerra Fria, o confronto não bélico entre
os Estados Unidos e seus aliados, de um lado, e a União Soviética e seus
satélites, de outro. A corporação militar encontrava-se à época fundamente
dividida entre oficiais nacionalistas, favoráveis especificamente ao monopólio
estatal de exploração do petróleo, e oficiais treinados e doutrinados pelos
norte-americanos, que advogavam a livre iniciativa econômica do setor privado,
ainda que estrangeiro.
Estes últimos acabaram afinal por
prevalecer e, estimulados pelo principal partido da oposição, a União
Democrática Nacional – UDN,12 aderiram abertamente à campanha de críticas a
Getúlio, acusando-o de ser o chefe de uma massa de subversivos e corruptos; ou
seja, exatamente o mote utilizado dez anos depois para justificar o golpe que
deu origem ao regime empresarial-militar.
Em fevereiro de 1954, o chamado
“manifesto dos coronéis”, reivindicando uma ampliação dos recursos
orçamentários destinados ao Exército e protestando contra o aumento do salário
mínimo em 100%, forçou Getúlio Vargas a exonerar João Goulart, Ministro do
Trabalho, e o General Ciro Espírito Santo Cardoso, Ministro da Guerra.
Na madrugada do dia 5 de agosto,
o líder udenista Carlos Lacerda e seu guarda-costas, o major da Aeronáutica
Rubens Florentino Vaz, sofreram no Rio de Janeiro um atentado a bala, que feriu
Lacerda e matou o major Vaz. Imediatamente, os oficiais mais graduados daquela
Arma reuniram-se em comissão de inquérito no aeroporto do Galeão (a chamada
“República do Galeão”), e poucos dias depois obtiveram a confissão de membros
da guarda pessoal do Presidente Getúlio Vargas de que o atentado fora por eles
planejado e executado. A partir de então, os oficiais superiores do Exército e
da Marinha manifestaram-se solidários com a Aeronáutica e passaram a exigir a
renúncia de Getúlio. Buscou-se, sem êxito, até o dia 23 uma fórmula de
conciliação. No dia seguinte, pela manhã, recebendo do irmão, Benjamin Vargas,
a informação de que o oficialato das três Armas exigia sua renúncia imediata da
presidência da República, Getúlio suicidou-se, provocando em todo o país
intensa revolta popular.
O suicídio de Getúlio foi, na
verdade, um golpe de mestre, que adiou por dez anos a mudança do regime
político.
e) O período pós-Vargas
Embora vencidas pelo inesperado
golpe do suicídio, as Focas Armadas permaneceram em estado de constante
agitação.
Em 11 de novembro de 1955, o
então Ministro da Guerra, General Henrique Teixeira Lott, decidiu prevenir um
golpe de estado em preparação para impedir a posse do Presidente da República
regularmente eleito, Juscelino Kubitschek de Oliveira. O presidente em
exercício, Carlos Luz, foi deposto e o Vice-Presidente Café Filho, que sucedera
Getúlio e se afastara da presidência por razões de saúde, impedido de voltar ao
poder.
Ao tomar posse, Juscelino tomou a
resolução de organizar o indispensável apoio militar em torno do seu governo.
Como resumiu Maria Victoria de Mesquita Benevides,13 a organização desse apoio
fez-se de três maneiras: 1) a atribuição ao ministro da guerra, General Lott,
de um papel preponderante na manutenção da ordem interna e da disciplina
militar; 2) o atendimento das reivindicações dos militares, quanto a
vencimentos, equipamentos e promoções, aliado ao apoio das Forças Armadas à
política desenvolvimentista do governo; 3) a crescente participação dos
militares no exercício das funções governamentais.
Apesar desse empenho em articular
seu governo com os interesses das Forças Armadas, o governo Kubitschek não
logrou suprimir a hostilidade da corporação militar. Em 1956 e 1959, por
exemplo, oficiais da Aeronáutica declararam-se em estado de insurreição contra
o presidente, respectivamente em Jacareacanga (PA) e Aragarças (GO).
Graças, porém, às suas
iniciativas ousadas, como a construção de Brasília e a criação de grandes
facilidades para a instalação de uma indústria automobilística no território
nacional, Juscelino conquistou integral apoio do empresariado.
Em janeiro de 1959, um fato
relevante mudou o cenário político de toda a América Latina: um grupo de
revolucionários cubanos, sob a liderança de Fidel Castro, tomou o poder na
ilha, instaurando um regime comunista.
As eleições para a sucessão de
Juscelino Kubitschek voltaram a trazer grande insatisfação no seio das Forças
Armadas. Candidato da coligação partidária governista PSD-PTB, o já então
Marechal Lott foi derrotado por Janio Quadros, candidato da oposição.
O governo de Janio foi marcado
pelo conflito aberto com os Estados Unidos no campo da política externa. A
abertura das portas do comércio exterior aos países socialistas e, sobretudo, a
condecoração de Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do
Sul, suscitaram a aberta hostilidade dos oficiais militares anticomunistas ao
seu governo.
Após a renúncia de Janio em 25 de
agosto de 1961, os ministros militares, Marechal Odílio Denis, Almirante Sílvio
Heck e Brigadeiro Gabriel Grün Moss, declararam-se contrários à posse do
Vice-Presidente João Goulart, que se encontrava ausente do país em viagem
oficial. Imediatamente, o Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,
levantou-se contra os ministros militares, obtendo o apoio do comando do III
Exército, sediado em Porto Alegre.
O confronto acabou sendo
resolvido por meio de uma transação conciliatória: os ministros militares
aceitaram a investidura de João Goulart como Presidente da República, contanto
que se adotasse o sistema parlamentar de governo; o que foi feito pelo Congresso
Nacional ao votar a emenda constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961. Dita
emenda previa, em seu art. 25, que a lei “poderá dispor sobre a realização de
plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema
presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove
meses antes do termo do atual período presidencial”. Realizado o plebiscito,
uma ampla maioria optou pelo retorno ao sistema presidencial de governo. O
Congresso Nacional, dando cumprimento à vontade popular, aprovou a emenda
constitucional nº 6, de 23 de janeiro de 1963.
Em 12 setembro de 1963, centenas
de sargentos, fuzileiros e soldados da Aeronáutica e da Marinha de Guerra
sublevaram-se em Brasília, ocupando na madrugada importantes centros administrativos.
O motivo do levante foi a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, que
confirmava a inelegibilidade das pessoas enumeradas no art. 132, parágrafo
único da Constituição de 1946 (praças de pré, suboficiais, subtenentes,
sargentos e alunos das escolas militares de ensino superior).
Chegamos, assim, seis meses
depois, ao golpe de Estado que pôs fim ao regime constitucional, e instaurou a
dominação militar-empresarial durante mais de vinte anos.
II
O Golpe Militar de 1964 e a
Instauração do Regime Autoritário
Origens do golpe
Na gênese do golpe de Estado de
31 de março de 1964, encontramos a profunda cisão lavrada entre os dois grupos
que sempre compuseram a oligarquia brasileira: os agentes políticos e a classe
dos grandes proprietários e empresários.
Até então, os conflitos entre
ambos eram sempre resolvidos por meio de arranjos conciliatórios, segundo a
velha tradição brasileira. Nos últimos anos do regime constitucional de 1946,
porém, essa possibilidade de conciliação tornou-se cada vez mais reduzida. A
principal razão para tanto foi o agravamento do confronto político entre
esquerda e direita no mundo todo, no contexto da Guerra Fria e em especial, na
América Latina, com a Revolução Cubana. Deve-se notar, aliás, que naquela época
boa parte das nossas classes médias abandonou sua tradicional colocação à
direita do espectro político, e passou a apoiar as chamadas “reformas de base”
do governo João Goulart: a reforma agrária, a bancária, a tributária e a
política de repúdio ao capital estrangeiro.
Era natural, nessas
circunstâncias, que os grandes proprietários e empresários, nacionais e
estrangeiros, temessem pelo seu futuro em nosso país e se voltassem, agora
decididamente, para o lado das Forças Armadas, a fim de que estas depusessem os
governantes em exercício, substituindo-os por outros, associados aos potentados
privados, segundo a velha herança histórica. Uma vez perpetrado o golpe de
estado, manifestaram-se desde logo a favor dele a Igreja Católica14 e várias
entidades de prestígio da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do
Brasil.
O que o empresariado não levou em
conta, todavia, era o fato de que a corporação militar amargurava, desde a
proclamação da República, uma longa série de tentativas mal sucedidas para
livrar-se da subordinação ao poder civil. Não seria justamente naquele momento,
quando chamadas a salvar o grande empresariado do perigo esquerdista, que as
Forças Armadas iriam depor os governantes em exercício e voltar em seguida à
caserna.
Na preparação do golpe, o governo
norte-americano teve uma atuação decisiva. Já em 1949, um grupo de altos
oficiais do Exército Brasileiro, entre os quais o general Cordeiro de Farias,
influenciados pelos Estados Unidos, criou, nos moldes do National War College
norte-americano, o Instituto de Altos Estudos de Política, Defesa e Estratégia,
a seguir denominado Escola Superior de Guerra. Com o aprofundamento da chamada
Guerra Fria e, sobretudo, logo após a tomada do poder em Cuba por Fidel Castro,
esse instituto de ensino passou a formar a oficialidade brasileira para impedir
a assunção do poder pelos comunistas; assim compreendidos todos os agentes
políticos que, embora não filiados ao PCB, manifestassem, de alguma forma,
oposição aos Estados Unidos. Pode-se afirmar que todos os oficiais militares
que participaram do golpe de 1964 foram alunos da Escola Superior de Guerra. Os
cursos lá administrados, aliás, não eram reservados apenas aos militares, mas
abertos também a políticos e empresários de destaque.
De 1961 a 1966, atuou como
embaixador norte-americano no Brasil Lincoln Gordon, que já em 1960 havia
colaborado na implantação da Aliança para o Progresso, programa de ajuda
oferecido pelos Estados Unidos aos países da América Latina, a fim de evitar
que eles seguissem o caminho revolucionário de Cuba. Na preparação do golpe,
Gordon coordenou a criação no Brasil de entidades de propaganda política, como
o IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o IPES – Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais. Sabe-se, aliás, por uma gravação depois divulgada,
que já em 30 de julho de 1962 Lincoln Gordon discutiu com o presidente Kennedy,
na Casa Branca, o gasto de US$ 8 milhões para “expulsar do poder, se
necessário”, o presidente João Goulart.
Como arma decisiva, o governo
norte-americano – ao que parece a pedido dos militares brasileiros golpistas –
desencadeou em março de 1964 a Operação Brother Sam, consistente em uma
força-tarefa naval composta de um porta-aviões, quatro destróieres e
navios-tanques para exercícios ostensivos na costa sul do Brasil, além de cento
e dez toneladas de munição.
A aliança das Forças Armadas com
os detentores do poder econômico privado
Ao assumirem o comando do Estado,
os chefes militares não hesitaram, ao longo dos anos, em mutilar o Congresso
Nacional e o Judiciário: 281 parlamentares foram cassados e três ministros do
Supremo Tribunal Federal aposentados compulsoriamente. Os governantes militares
fizeram questão de submeter à sua dominação absoluta, durante as duas décadas
do regime, o conjunto dos integrantes do poder civil, como uma espécie de
desforra pela longa série de frustrações políticas por eles, homens de farda,
sofridas desde o final do século XIX. É preciso reconhecer que a grande maioria
dos agentes públicos, poupados pela repressão instaurada após o golpe,
colaborou desonrosamente no funcionamento deste.
O novo regime político fundou-se
na aliança das Forças Armadas com os latifundiários e os grandes empresários,
nacionais e estrangeiros. Esse consórcio político engendrou duas experiências
pioneiras na América Latina: o terrorismo de Estado e o neoliberalismo
capitalista. A partir do exemplo brasileiro, vários outros países
latino-americanos adotaram nos anos seguintes, com explícito apoio dos Estados
Unidos, regimes políticos semelhantes ao nosso.
Um dos setores em que a
colaboração do empresariado com a corporação militar mais se destacou foi o das
comunicações de massa. As Forças Armadas e o grande empresariado necessitavam
dispor de uma organização capaz de desenvolver, em todo o território nacional,
a propaganda ideológica do regime autoritário, com a constante denúncia do
perigo comunista e a difusão sistemática, embora sempre encoberta, dos méritos
do sistema capitalista.
Os chefes militares decidiram,
para tanto, fixar sua escolha no Sistema Globo de Comunicações. Em 1969, ele
possuia três emissoras (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte). Quatro
anos depois, em 1973, ele já contava com nada menos do que onze.
A dominação empresarial do
sistema de comunicações de massa continuou a subsistir, uma vez encerrado o
regime autoritário, e persiste até hoje. A Constituição Federal de 1988 dispõe
em seu art. 220, § 5º que “os meios de comunicação social não podem, direta ou
indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Mas até o momento em que
escrevo estas linhas – mais de um quarto de século após promulgada a
Constituição em vigor – esse dispositivo constitucional, como vários outros do
mesmo capítulo, permanece ineficaz por falta de regulamentação legal.15
O casamento entre a corporação
militar e o empresariado continuou inabalado, enquanto subsistiram grupos de
oposição decididos a desenvolver, com ou sem apoio cubano, a luta armada contra
o regime autoritário.
No Brasil, os grandes empresários
não hesitaram em financiar a instalação de aparelhos de terror estatal. No
segundo semestre de 1969, por exemplo, o II Exército, com sede em São Paulo,
lançou a Operação Bandeirante – embrião do futuro DOI-CODI (Destacamento de
Operações Internas e Centro de Operações de Defesa Interna) – destinada a
dizimar os principais opositores ao regime.16 Reunido com banqueiros paulistas
no segundo semestre daquele ano, o então ministro da economia Delfim Neto pediu
e obteve sua contribuição financeira, alegando que as Forças Armadas não tinham
equipamento nem verbas para enfrentar a “subversão”. Ao mesmo tempo, a
Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP convidou as empresas que a
integravam a colaborar no empreendimento. Assim, enquanto a Ford e a Volkswagen
forneciam automóveis, a Ultragás emprestava caminhões e a Supergel abastecia a
carceragem militar com refeições congeladas.
A quebra de confiança do
empresariado no poder militar
A lua de mel entre os grandes
empresários e as Forças Armadas não durou muito tempo, porém. Em 12 de dezembro
de 1968, exatamente na véspera do lançamento do Ato Institucional nº 5, que
suspendeu o habeas-corpus nos casos de crimes políticos e contra a segurança
nacional, o chefe da Polícia Federal impediu a publicação, no jornal
superconservador O Estado de São Paulo, do editorial em que o diretor Júlio de
Mesquita Filho condenava o “artificialismo institucional, que pela pressão das
armas foi o País obrigado a aceitar”.
Alguns anos mais tarde, quando se
verificou que todos os grupos engajados na luta armada contra o regime haviam
sido exterminados, os empresários começaram a manifestar sua irritação com a
permanência dos militares no comando do Estado Brasileiro. Tanto mais que os
homens de farda deixaram-se seduzir pelas vantagens econômicas particulares
desfrutadas no comando do Estado, tais como o exercício de cargos de administração
altamente remunerados em empresas estatais, várias delas criadas a partir do
golpe de 1964.
Em 1974, um dos grandes
sacerdotes do credo liberal, Eugênio Gudin, declarou publicamente que “o
capitalismo brasileiro é mais controlado pelo Estado do que o de qualquer outro
país, com exceção dos comunistas”. A seguir, em fevereiro de 1975, o jornal O
Estado de São Paulo publicou uma série de nada menos do que onze reportagens
sob o título Os caminhos da estatização, enquanto a Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo divulgava um documento, intitulado O Processo de
Estatização da Economia Brasileira: O Problema do Acesso aos Recursos para
Investimentos.
A classe empresarial entendia,
assim, haver chegado o momento de voltar a instalar no país o tradicional
regime da falsa democracia representativa, em cuja fachada aparece o poder
oficial atribuído a agentes políticos eleitos, enquanto por trás dela tem livre
curso a dominação econômica, exercida pelos potentados privados.
A pressão empresarial contra as
Forças Armadas no comando do Estado coincidiu com a eleição à presidência dos
Estados Unidos de Jimmy Carter, crítico implacável das violações de direitos
humanos cometidas pelo regime militar brasileiro. Em entrevista a um periódico
norte-americano, ele chegou a afirmar:
“Quando Kissinger [Secretário de
Estado no governo Richard Nixon] diz, como fez há pouco, que o Brasil tem um
tipo de governo compatível com o nosso, bem, aí está o tipo de coisa que nós
queremos mudar. O Brasil não tem um governo democrático. É uma ditadura
militar. Em muitos aspectos é altamente repressiva para os presos políticos.”
Por sua vez, no seio do
episcopado brasileiro – embora vinculado, como de costume, aos detentores do
poder supremo – destacaram-se as figuras exponenciais de D. Helder Câmara e de
D. Paulo Evaristo Arns, para denunciar sem eufemismos, tanto aqui como no
exterior, as atrocidades praticadas contra presos políticos.
O regime militar entrava, assim,
em sua fase de declínio inelutável, havendo perdido o apoio dos grupos que,
tradicionalmente, compõem a estrutura do poder entre nós.
A fase final do regime
Tudo parecia encaminhar-se para a
“distensão lenta, gradual e segura”, como pregava o General Golbery do Couto e
Silva, não fora o fato de restar irresolvida a questão das atrocidades
cometidas pelos agentes militares e policiais, no quadro do terrorismo de
Estado.
Conforme dados oficiais da
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei nº
9.140, de 1995, foram comprovados, até fevereiro de 2014, 362 (trezentos e
sessenta e dois) casos de opositores políticos assassinados ou desaparecidos
durante o regime militar.
Já a Secretaria Especial de
Direitos Humanos do Ministério da Justiça, no relatório intitulado Direito à
Memória e à Verdade, publicado em 2007, afirmou que tivemos não menos de 475
(quatrocentos e setenta e cinco) mortos e desaparecidos políticos durante
aquele período. Calcula-se, ademais, que 50.000 pessoas foram presas por razões
políticas, sendo a maior parte delas torturadas, algumas até a morte. O governo
militar chegou mesmo a aparelhar, em Petrópolis, uma casa onde pelo menos 19
pessoas foram executadas, sendo seus corpos incinerados a fim de não deixar
vestígios.
Em momento algum de nossa vida de
país independente, os governantes, quer no Império, quer na República, chegaram
a cometer tão repugnantes atrocidades.
A pressão do empresariado para
que os chefes militares deixassem o poder foi reforçada com a redução
significativa da taxa de crescimento econômico do país, a partir do final do
governo Geisel. Mas a corporação fardada hesitava em deixar o comando do
Estado, procurando a todo custo uma garantia de que, quando isso ocorresse, os
agentes policiais e militares responsáveis pelos atos de criminalidade violenta
contra opositores ao regime não seriam punidos. Essa solução contava com o
apoio decidido do grande empresariado, quando mais não fosse porque alguns de
seus líderes, como assinalado acima, foram co-autores dos crimes de terrorismo
de Estado, havendo financiado a operação do sistema repressivo.
Por sugestão dos políticos
colaboradores do regime, os chefes militares decidiram afinal embarcar no
movimento já iniciado de anistia aos presos e exilados políticos, de modo a
estendê-la aos autores de crimes de terrorismo de Estado.
Em junho de 1979, o
general-presidente Figueiredo apresentou ao Congresso Nacional um projeto,
convertido em 28 de agosto na Lei nº 6.683. Ela concedeu anistia “a todos
quantos [...] cometeram crimes políticos ou conexos com estes”; assim
considerados “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos
ou praticados por motivação política”. Lançando mão de cavilosa astúcia, os redatores
da lei, ao invés de designarem precisamente os demais crimes abrangidos pela
anistia, além dos delitos políticos propriamente ditos, preferiram utilizar a
expressão técnica “crimes conexos”. Ora, ela é totalmente inepta no caso; pois
são considerados como tais tão-só os delitos com comunhão de intuitos ou
objetivos; e ninguém em são juízo pode afirmar que os opositores ao regime
militar e os agentes estatais que os torturaram e mataram tivessem agido com
objetivos comuns.
Irresignado com essa solerte
velhacaria, sugeri em 2008 ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
que ajuizasse, em relação a essa lei, uma argüição de descumprimento de
preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal. A ação foi proposta,
pedindo-se ao tribunal que interpretasse o texto legal de acordo com a
Constituição que entrou em vigor em 1988, em cujo art. 5º, inciso LXIII
dispõe-se que o crime de tortura é insuscetível de graça ou anistia; sendo
incontroverso que toda lei contrária ao texto ou ao espírito de uma
Constituição nova considera-se tacitamente revogada por esta. Pediu-se,
ademais, que a lei de anistia fosse interpretada à luz dos princípios e normas
do sistema internacional de direitos humanos.
Em abril de 2010, o Supremo
Tribunal Federal julgou por maioria improcedente a ação proposta pela OAB.
Desse acórdão foi interposto recurso de embargos declaratórios, pois o tribunal
deixou de considerar o fato de que vários dos crimes ditos conexos, cometidos
por agentes do regime militar – como, por exemplo, o seqüestro ou a ocultação
de cadáver – são qualificados como permanentes ou continuados; o que significa
que ainda não se consideram consumados e, portanto, não foram abrangidos pela
lei de anistia, dado que esta declarou não aplicar-se aos crimes cuja
consumação é posterior a 15 de agosto de 1979.
Seis meses depois desse
julgamento, mais exatamente em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos, por unanimidade, condenou o Estado Brasileiro, ao julgar o
Caso Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”). Nessa decisão,
declarou a Corte:
“As disposições da Lei de Anistia
brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos
humanos são incompatíveis com a Convenção Americana [sobre Direitos Humanos],
carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para
a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição
dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito
de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na
Convenção Americana ocorridos no Brasil.”
Dois foram os fundamentos para
tal decisão.
Em primeiro lugar, o fato de que
as gravíssimas violações de direitos humanos, praticadas durante o terrorismo
de Estado do nosso regime empresarial-militar, constituíram crimes contra a
humanidade; ou seja, crimes nos quais é negada às vítimas a condição de ser
humano.
Em duas Resoluções formuladas em
1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas considerou que a conceituação
tipológica de tais delitos representa um princípio de direito internacional.
Essa mesma qualificação foi dada
pela Corte Internacional de Justiça às disposições da Declaração Universal dos
Direitos do Homem de 1948, cujos artigos III e V estatuem que “todo homem tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e que “ninguém será
submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.”
Ora, os princípios, como
assinalado pela doutrina contemporânea, situam-se no mais elevado grau do
sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em
textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados
internacionais.
O segundo fundamento da decisão
condenatória do Estado Brasileiro no processo Gomes Lund e outros v. Brasil
(“Guerrilha do Araguaia”), foi o fato de que a Lei nº 6.683, de 1979,
representou, na verdade, uma auto-anistia, inadmissível no sistema
internacional de direitos humanos. Como salientou a referida Sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, a responsabilidade pelo cometimento de
graves violações de direitos humanos não pode ser reduzida ou suprimida por
nenhum Estado, menos ainda mediante o procedimento de uma auto-anistia
decretada pelos governantes responsáveis, pois trata-se de matéria que
transcende a soberania estatal.
Pois bem, no julgamento pelo
Supremo Tribunal Federal da argüição de descumprimento de preceito fundamental
nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, o ministro relator e outro que o
acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683 não poderia ser concebida como
auto-anistia, mas sim como uma anistia bilateral entre governantes e governados.
Ou seja, segundo essa original interpretação, torturadores e torturados,
reunidos em uma espécie de contrato particular de intercâmbio de prestações,
teriam resolvido anistiar-se reciprocamente…
Frise-se, desde logo, a repulsiva
imoralidade de um pacto dessa natureza, se é que ele realmente existiu: o
respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade dos autores
de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos
próprios interessados.
Na verdade, o propalado “acordo
de anistia” dos crimes contra a humanidade, praticados pelos agentes da
repressão, não passou de uma encoberta conciliação oligárquica, na linha de
nossa mais longeva tradição. A validade de qualquer pacto ou acordo supõe a
existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado,
chefes militares detentores do poder supremo, quem estaria do outro lado?
Porventura, as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão
militar foram chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, declarado
solenemente como titular da soberania, foi convocado a referendá-lo?
O mais escandaloso de toda essa
tese do acordo político é que, após a promulgação da lei de anistia, certos
agentes militares continuaram a desenvolver impunemente sua atividade
terrorista. O Ministério Público Militar apurou que, entre 1979 e 1981, houve
40 atentados a bomba, praticados por um grupo de oficiais militares reunidos em
uma organização terrorista. Foi preciso, no entanto, aguardar até fevereiro de
2014, ou seja, trinta e três anos depois do último atentado, para que fosse
apresentada denúncia criminal contra os integrantes dessa quadrilha por
homicídio doloso, associação criminosa armada e transporte de explosivos.
É deplorável constatar que o
nosso país é o único na América Latina a continuar sustentando a validade de
uma auto-anistia decretada pelos militares que deixaram o poder. Na Argentina,
no Chile, no Uruguai, no Peru, na Colômbia e recentemente na Guatemala, o Poder
Judiciário decidiu pela flagrante inconstitucionalidade desse remendo
institucional.
O caso do regime pós-militar
argentino é paradigmático a esse respeito e nos cobre de vergonha. A Suprema
Corte de Justiça do país julgou inconstitucional, em 2005, a anistia dos crimes
cometidos pelos agentes estatais contra os opositores políticos aos governos
militares, iniciando-se desde então os consequentes processos penais. Pois bem,
até fevereiro de 2014, nada menos do que 370 (trezentos e setenta) criminosos
dos dois regimes militares argentinos (1966-1973 e 1973-1983) foram condenados
à pena de prisão; inclusive dois ex-presidentes da República, que amargaram a
prisão perpétua, sendo que um deles faleceu no cárcere. A persecução penal
estendeu-se até mesmo a ex-magistrados, considerados co-autores de tais crimes.
No Brasil, bem ao contrário, até
hoje nem um só autor de crime praticado no quadro do terrorismo de Estado do
regime empresarial-militar foi condenado pela Justiça. Passados mais de três
anos da prolação da sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, o Estado Brasileiro ainda não cumpriu nenhum dos seus doze pontos
conclusivos, em flagrante violação da Constituição Federal e do sistema
internacional de direitos humanos. De minha parte, há pelo menos três anos
tenho envidado esforços no sentido de que essa grave omissão de nossos Poderes
Públicos seja levada a juízo no Brasil e denunciada perante as instâncias
internacionais, a fim de que fique bem marcada a responsabilidade do Estado
Brasileiro.
Conclusão
A votação da lei de anistia em
1979 representou, na verdade, a conclusão de um pacto oculto entre as Forças
Armadas e ambos os grupos que sempre exerceram conjuntamente a soberania entre
nós – os agentes políticos e os potentados econômicos privados –, com o
objetivo de devolver aos dois últimos o comando supremo do Estado, que os
militares haviam arrebatado em 1964.
Nesse episódio, à semelhança de
tantos outros em nossa História, o povo foi posto de lado, como se nada tivesse
a ver com isso. A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, seguindo as
que a antecederam, proclama solenemente que “todo poder emana do povo” (art.
1º, parágrafo único). Chega mesmo a declarar que o povo exerce seu poder, não
apenas por meio de representantes eleitos, mas diretamente; isto é, mediante
plebiscitos e referendos (art. 14).
Tais declarações constitucionais
– é lamentável dizê-lo – são meras figuras de retórica.
Sem dúvida, os cidadãos
brasileiros votam regularmente em eleições. O conjunto dos eleitos, no entanto,
está longe de representar a maioria do eleitorado, pertencente aos estratos
pobres da população e à classe média. O que os mal chamados representantes do
povo defendem, isto sim, são os interesses da minoria proprietária e
empresária, a qual fornece, por meio de doações, nada menos que dois terços das
receitas dos principais partidos políticos. Para se ter uma ideia da falsidade
de nossa democracia representativa, basta assinalar um só fato: enquanto cerca
de 40.000 produtores agrícolas, os quais exploram 50% das áreas cultiváveis do
país, elegem de 120 a 140 deputados federais, os componentes das 4 a 6 milhões
de famílias que praticam a agricultura familiar são representados no Congresso
Nacional por no máximo 12 deputados.
Quanto às instituições da
democracia direta – grande novidade do texto constitucional de 1988! –, elas só
existem no papel. O art. 49, inciso XV da Constituição dispõe que “é da competência
exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou
seja, o povo soberano somente poderá tomar diretamente decisões políticas,
quando autorizado pelos seus representantes. Trata-se, sem dúvida, de uma
original modalidade de mandato…
Enquanto persistir essa triste
realidade, não teremos afastado a possibilidade de voltarem a ocorrer
prolongados desmandos políticos, como o provocado pelo golpe de Estado de 1964.
Felizmente, a consciência pública
começa aos poucos a se dar conta de que a única via de solução para esse
impasse consiste em instituir no país um regime político de efetiva soberania
popular, no qual haja a supremacia constante do bem comum do povo (a res
publica romana) sobre todo e qualquer interesse particular, com controles
permanentes sobre o exercício do poder em todos os níveis. Em suma, a criação
de um autêntico Estado de Direito, Republicano e Democrático.
Não é difícil perceber o longo e
difícil percurso que se abre diante das novas gerações, para alcançar esse
objetivo. Mas o que importa é começar desde logo a dar os primeiros passos, no
sentido da defesa intransigente da dignidade do povo brasileiro.
“Se as coisas são inatingíveis…
ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das
estrelas!”21
26 de fevereiro de 2014
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