por Emmanuel Dreyfrus
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pela violência policial em Kiev)
Barricadas erguidas em pleno centro de Kiev, vigiadas por
pequenos grupos de voluntários que se aquecem perto de braseiros improvisados.
Um cenário que mistura bandeiras ucranianas e europeias, retratos do poeta
Taras Chevtchenko (1814-1861), considerado um dos pais espirituais da
identidade ucraniana, e de Stepan Bandera (1909-1959), tido como, dependendo do
ponto de vista, um grande patriota ou um colaborador dos nazistas. Ou ainda dos
cinco cidadãos que se tornaram heróis, mortos durante os enfrentamentos da Rua
Groucheskovo.
Maidan, a Praça da Independência, epicentro do movimento de
contestação que agita o país há cerca de três meses, é um amontoado de tendas
de simpatizantes, vindos de toda a Ucrânia: Lviv, Ternopil, Ivano-Frankivsk,
locais fortes do nacionalismo, mas também Lugansk e Donetsk, grandes cidades do
leste industrial cujo coração sempre bateu para o lado da Rússia. Cossacos
vestindo com orgulho seus trajes tradicionais. Mulheres de todas as idades
carregando bandejas de pão preto e de carne de porco aos homens que montam
guarda. Um cheiro penetrante de chá, sopa de repolho e madeira queimada.
Durante a semana, alguns milhares de militantes participam das atividades
correntes; no domingo, diversas dezenas de milhares de pessoas vêm assistir aos
discursos dos dirigentes da oposição, rezando e cantando o hino nacional, que
se repete incansavelmente.
O movimento surgiu no fim de novembro, em reação à suspensão
pelo então presidente Viktor Yanukovich das negociações sobre um acordo de
livre-comércio com Bruxelas.1 E Maidan se metamorfoseou. Juntando inicialmente
alguns milhares de partidários pró-europeus, a praça se tornou, ao longo da
repressão, o símbolo da revolta dos ucranianos de todos os tipos contra um
sistema político sem escrúpulos e corrupto. Revolta diante do sistema
Yanukovich em princípio, mas também rejeição aos partidos de oposição,
ultrapassados por essa crise.
A implicação, minoritária mas muito visível, de diversos
grupos nacionalistas, depois o surgimento de movimentos ultrarradicais que não
reclamam valores democráticos nem professam simpatias europeias suscitam
reações contrastadas. Por um lado, sua presença é abundantemente utilizada pelo
Kremlin − e, na opinião de alguns, pelo regime ucraniano − para desacreditar o
movimento. Por outro, ela suscita algumas inquietações sobre uma possível
recuperação de Maidan pela extrema direita – mesmo que, na realidade, se trate
antes de mais nada de um movimento popular, sobre o qual qualquer tentativa de
categorização política seria reducionista.
Presente, a extrema direita extrai grande parte de suas
referências do movimento nacionalista, que se desenvolveu a partir dos anos
1920, quando a Polônia e a Rússia soviética dividiam a maioria das regiões da
atual Ucrânia. Encontramos nele, desde a origem, um emaranhado de influências:
o fascismo italiano, a colaboração parcial – pragmática segundo alguns,
ideológica segundo outros – de uma parte de seus representantes (como Bandera)
com a Alemanha nazista, a participação de diversos batalhões ucranianos no
massacre de civis judeus e poloneses durante a Segunda Guerra Mundial etc.
Como constata o cientista político Andreas Umland, professor
da Universidade de Kiev-Mohylo, “nenhuma história objetiva foi feita sobre
Bandera. Pintado como um fascista aliado aos nazistas pela historiografia
soviética, ele é hoje incensado sem nenhum distanciamento pelos historiadores
ucranianos. Seus admiradores de Maidan têm uma abordagem ingênua e parcial a
respeito dele, o que é problemático. Ao contrário, qualificá-lo como fascista,
como faz a Rússia, é igualmente parcial e desonesto”.
Adormecido durante o período soviético, o movimento nacionalista
reapareceu depois da independência, em 1991, data da criação do Partido
Nacional-Socialista Ucraniano (PSNU). Até o início dos anos 2000, o PSNU
permaneceu uma organização marginal, xenófoba e ultranacionalista, cuja pequena
influência era limitada às regiões do oeste. Seu atual dirigente, Oleg
Tyanybok, foi eleito deputado pela primeira vez em 1998.
Ao longo dos anos 2000, o partido conheceu importantes
mutações. Ele se libertou, durante seu sexto congresso, em 2004, de seus
remendos fascistas: rebatizou-se de Svoboda (“liberdade”) e abandonou seu
emblema neonazista, o Wolfsangel, para preferir um símbolo mais neutro.
Comentando essas evoluções cosméticas, o pesquisador Oleksiy Leshenko, do
Instituto de Análise Gorshenin, indica que “elas visavam sobretudo tranquilizar
o eleitorado, mas também foram pensadas para criar uma melhor imagem do Svoboda
fora das fronteiras”.
Em busca de respeitabilidade, o partido multiplicou os
contatos com outras legendas de extrema direita europeias, como testemunha a presença
de Jean-Marie Le Pen, presidente do Front National francês, convidado de honra
do congresso de 2004. Além disso, o Svoboda moderou progressivamente sua
postura nacionalista e suas referências a Bandera – longe de ser consenso na
Ucrânia – para adotar um discurso mais genérico, bem comum no seio da extrema
direita europeia, centrado na denúncia radical e veemente do “sistema”.
“Uma máfia judeo-moscovita”
Essa mudança de fachada não impediu Tyanybok de lembrar,
como máximas retumbantes, a matriz xenófoba e antissemita da qual se origina.
Em 2004, ele declarou que “uma máfia judeo-moscovita” dirige Kiev, o que fez
que fosse expulso do grupo parlamentar Nacha Ykraina. Em 2005, ele dirigiu uma
carta aberta ao presidente na qual pedia que “colocasse fim às atividades
criminosas da judeuzada ucraniana”.
Nas eleições parlamentares de 2012, o Svoboda provocou
surpresa ao conseguir cerca de 10,5% dos votos e pôr 37 deputados na Rada (o
Parlamento). Com mais de 2 milhões de eleitores, ele tornou-se um partido de
envergadura nacional, conquistando resultados significativos em outras regiões
além do oeste, tradicionalmente mais receptivas ao nacionalismo.
O discurso antissistema do Svoboda contribuiu muito para seu
sucesso eleitoral. Como indica Ivan Stoiko, deputado membro do partido de
oposição Batkivshina (centro-direita) e “comandante” da Casa da Ucrânia, um dos
prédios ocupados de Maidan, “o eleitorado, decepcionado pela classe política
tradicional e em busca de mudanças radicais, foi seduzido pela retórica do
Svoboda, por sua proximidade com o povo e por suas numerosas ações de campo”.
Por sua vez, Yuri Yakimenko, diretor adjunto do think tank Razumkov Centre,
estima que, dos 10% de votos obtidos pelo Svoboda, “o núcleo duro representa
5%. Os outros 5% votaram para marcar sua oposição às outras forças políticas”.
O Svoboda, “claramente sob os conselhos do Front National”,
segundo Umland, desenvolveu um programa econômico dotado de uma dimensão
social. Este prevê principalmente a reestatização de algumas empresas, a
introdução de uma taxação progressiva sobre os lucros e a luta contra a tomada
das oligarquias sobre o sistema político e econômico. Essas medidas, associadas
à promessa de uma luta vigorosa contra a corrupção, seduziram amplamente
algumas categorias de eleitores, pequenos empresários e membros das classes
médias, que sofreram particularmente com a crise assim como com o nepotismo,
que se acentuou ainda mais desde a eleição de Yanukovich.
O Svoboda também colheu os frutos de sua postura nacionalista,
que, bem mais suave, continua central na identidade do partido. Ele conseguiu
assim captar uma parte do eleitorado que tinha votado antes em Viktor
Yushchenko, presidente de 2005 a 2010. “O período Yushchenko foi o mais fértil
no plano da eclosão do nacionalismo”, observa Sophie Lambroschini, pesquisadora
francesa instalada em Kiev. “Ele libertou a palavra no espaço público e
político. Mas agora é o Svoboda que recupera os dividendos, já que o eleitorado
nacionalista foi muito decepcionado por Yushchenko”.
Além disso, diversas ações realizadas sob a presidência de
Yanukovich contribuíram para crispar uma parte do eleitorado ligada à defesa da
língua e da identidade ucranianas, como a lei sobre as línguas regionais,
promulgada no verão [do Hemisfério Norte] de 2012 e que visa principalmente
fazer do russo a segunda língua oficial nas regiões que desejarem, ou ainda a
redução do volume de ucraniano no ensino, sendo sua difusão considerada
“inútil”, segundo o ministro da Educação, Dmytro Tabachnik.
A despeito de sua reorientação, o Svoboda continua ligado à
extrema direita. Sua principal bandeira permanece a luta pelo desenvolvimento
da identidade nacional, tendo como coroa o fim da influência russa no país. Em
termos de política externa, esse combate se traduz pelo desejo de uma
integração de Kiev na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), de um
rearmamento nuclear e de uma saída de todas as estruturas de cooperação
pós-soviéticas.
No plano interno, o Svoboda estampa entre suas prioridades a
“dessovietização” do país: purificação e retirada dos antigos funcionários do
Partido Comunista e dos agentes da KGB, mudança dos nomes das ruas e praças,
retiradas das estátuas à glória de heróis soviéticos. Ele propõe também a
abolição do estatuto autônomo da Crimeia e principalmente a promoção de uma
identidade ucraniana por meio de uma série de medidas que vão da glorificação
sistemática e sem distanciamento do movimento nacionalista à reintrodução da
menção de pertencimento étnico ou religioso dos cidadãos em seus documentos de
identidade.
Partidário da União pela Europa das Nações (soberanista), o
Svoboda se mostra agora a favor de uma integração à União Europeia. Essa
reviravolta pragmática tem mais relação com um movimento pontual de “união
sagrada” com as outras forças de oposição, e com objetivos eleitoreiros, do que
com uma adesão sincera, mesmo que a União também seja vista como um meio para
se distanciar da Rússia.
Ainda que a imigração seja hoje um assunto secundário, o
Svoboda é o único partido a denunciá-la e a propor medidas que visam à sua
limitação, assim como a restrição de acesso ao sistema universitário para
estudantes estrangeiros, ou ainda a concessão da nacionalidade apenas às
pessoas nascidas na Ucrânia ou “etnicamente ucranianas”. Ele se defende da
acusação de xenofobia, mas rejeita qualquer ideia de mestiçagem. “Defendemos os
valores da família, a Europa das nações, contra o multiculturalismo, que eu
considero uma política que visa à fusão entre diferentes culturas, o que não é
possível”, diz Yuri Levtchenko, dirigente do Svoboda. “Veja na França: em vez
de ter uma cultura nova nascida da imigração, vocês têm guetos. Não é lógico
fazer conviver em uma mesma cidade culturas diferentes. Isso não pode dar
certo.”
Svoboda decepcionou ao pedir calma
O partido inclusive procurou se livrar de seus indícios
antissemitas, a tal ponto que Joseph Zisels, presidente da associação das
comunidades judias da Ucrânia, garante com firmeza que “não há nenhuma ameaça
contra os judeus vinda do Svoboda. Seus verdadeiros inimigos são os russos”:
“Se é verdade que o Svoboda é o único grande partido a se referir a Bandera e a
Choukievitch,2 o que, concordo, é desconfortável, esse partido não é, por isso,
antissemita”. Isso não impede alguns deslizes, por exemplo, quando o deputado
Igor Miroshnichenko, em novembro de 2012, refutava as origens ucranianas da
atriz norte-americana Mila Kunis, declarando que ela era na verdade uma
“jidovka”, termo ambíguo de gíria ucraniana designando uma pessoa de religião
ou descendência judia.
Se o Svoboda brilha por sua presença em Maidan – controlando
a imponente prefeitura de Kiev ocupada até o dia 16 de fevereiro –, ele tem de
fato pouco controle sobre a situação, como, inclusive, os outros partidos de
oposição. Esse vazio político, acrescido da violência utilizada pelo poder nas
últimas semanas, constituiu um terreno favorável para o surgimento de novas
estruturas, cujo estilo e orientação ideológica suscitaram muitos
questionamentos.
Nascido das chamas da Rua Groucheskovo, a mais importante
delas, o Praviy Sektor (“Setor Justo”) concentra agora alguns milhares de
pessoas espalhadas por todo o país e se beneficia, pelo menos por enquanto, de
uma real simpatia no seio da população. Pessoas desapontadas com o Svoboda,
membros de formações ultranacionalistas, hooligans e perdidos se encontram em
suas fileiras. O Praviy Sektor atrai um leque bem amplo de indivíduos cujo
denominador comum é, primeiramente, o gosto pela ação radical e, depois,
tendências a uma ideologia que Andrei Tarassenko, figura dirigente do movimento,
nos descreve do alto de seu quartel-general superprotegido do quinto andar da
Casa dos Sindicatos. “Nem xenófobo nem antissemita, como pretende a propaganda
do Kremlin”, o Praviy Sektor se define, segundo ele, como “nacionalista,
defendendo os valores da Europa branca e cristã contra a perda da nação e a
‘desreligionização’”. Rejeitando também o multiculturalismo, “responsável pelo
desaparecimento dos crucifixos e a chegada das meninas de burca às escolas”, o
Praviy Sektor não prega uma integração à União Europeia, “esse totalitarismo
liberal no qual Deus desapareceu e os valores estão invertidos”.
Não apoiando nenhum dos partidos da oposição, principalmente
o Svoboda, que decepcionou “por seus chamados à calma e suas negociações com o
poder”, o Praviy Sektor poderia considerar se transformar em partido. Essa
perspectiva seria constrangedora para Tyanybok. Além de ter visto sua imagem de
tribuno antissistema seriamente diminuída por causa de seus chamados à
moderação durante os enfrentamentos, ele poderia agora ter de lidar com um
partido situado à sua direita e cujas façanhas e determinação são comprovadas.
O sucesso conquistado pelo Svoboda nestes últimos anos e o
local ocupado em Maidan pelos grupos neofascistas como o Praviy Sektor dão
testemunho do profundo mal-estar da sociedade. Mal-estar de identidade, em
primeiro lugar, num país que em 22 anos de independência não conseguiu escrever
uma história não partidária que incluísse positivamente o conjunto de suas
regiões e cidadãos: hoje ainda os ucranianos considerados libertadores na
Galícia são vistos como fascistas no Donbass, e vice-versa. Mal-estar político,
em segundo lugar. Os ucranianos, decepcionados com a “revolução laranja”,3
exasperados, se voltaram em parte para um voto extremo, mais por despeito do
que por adesão ideológica. Se Maidan ficará provavelmente na história como um
formidável movimento de ação coletiva e cidadã, ele não oferece por enquanto
nenhuma perspectiva política construtiva. Uma nova força, realmente a serviço
do povo e transcendendo os múltiplos obstáculos da sociedade, surgirá? Ou o
movimento desaparecerá progressivamente, exacerbando a desconfiança dos
ucranianos diante de sua classe política, com todos os desvios que isso poderia
implicar? As apostas estão abertas...
Emmanuel Dreyfrus
Consultor em relações internacionais e especialista no
espaço pós-soviético.
Ilustração: Konstantin
Chernichkin / Reuters
1 Ler Sébastien Gobert,
“L’Ukraine se dérobe à l’orbite européenne” [A Ucrânia escapa da órbita
europeia], Le Monde Diplomatique, dez. 2013.
2 Roman Choukhevitch
(1907-1950), outra figura do nacionalismo ucraniano, chefe de um batalhão
ucraniano da Wehrmacht chamado Nachtigall.
3 Ler Vicken Cheterian,
“Révolutions en trompe-l’oeil à l’Est” [Falsas revoluções no leste], Le Monde
Diplomatique, out. 2005.
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