por: Saul Leblon – Carta Maior
A reunião da Unasul desta 4ª feira, que acontece no Chile, em
seguida à posse da Presidenta Bachelet, redime a força da política num momento
em que os ventos da economia mundial sopram desfavoravelmente sobre a região.
Argentina, Brasil, Venezuela e
outros manejam uma delicada transição cambial.
Não é uma operação contábil:
mudanças no câmbio alteram o poder de compra dos salários; definem
antecipadamente ganhadores e perdedores
de um novo ciclo; estabelecem o fôlego das exportações; devolvem ou não espaço
à indústria local.
A recuperação das economias
ricas, e a queda nas cotações das commodities, inverteu a dinâmica das contas
externas que impulsionou o crescimento regional por uma década.
O financiamento encareceu. As
receitas com exportação caíram.
Déficits em conta corrente se
avolumam, dificultando atender o avanço da demanda com mais importações.
Pressões inflacionárias robustecem. Quem
não tem reservas, o Brasil é uma exceção
de quase US$ 400 bi, enfrenta escassez
de dólares e incerteza no abastecimento.
Não por acaso, os escrutínios
eleitorais apontam resultados cada vez mais apertados: a eleição de Maduro
decidiu-se em casas decimais; Correa perdeu a capital, Quito, para a direita;
Cristina sofre corrosão parlamentar na Argentina; o favoritismo da esquerda no
2º turno deste domingo em El Salvador deu lugar a uma vitória por diferença
mínima para a Frente Farabundo Martí.
As oposições conservadoras lambem
os beiços e esfregam as mãos: é a hora do abate, cogitam.
A ferocidade com que se lançam às
ruas na Venezuela é a expressão
desabrida de um apetite mais geral.
A contrapelo do fatalismo
mecanicista, que ignora as mediações específicas no interior das grandes transições
de ciclo econômico, algo de singular importância acontece, porém, na América Latina.
Há uma resistência política
articulada à investida conservadora.
O
software da ‘crise’ não roda mais
tão facilmente na máquina regional.
A saber: à crispação golpista
interna sucede-se o isolamento internacional dos governantes progressistas.
Seguem-se sanções econômicas e
políticas desfechadas pelos EUA, com apoio da briosa gente do jornalismo
isento.
Tudo em nome da democracia.
Contra a desordem econômica, o
desgoverno, o desabastecimento e as ameaças
à família e à propriedade –como
denunciariam as ‘marchas’ brasileiras de 1964, a primeira delas realizada em 19
de março, seis dias depois do histórico comício da Central do Brasil, que
completa 50 anos nesta 5ª feira.
Na tradição latino-americano, o
desfecho golpista invariavelmente ganharia o selo de legitimidade da OEA –braço
direito do Departamento de Estado no manejo dos interesses do grande capital na região.
Desde que foi criada, em 1948, a
OEA notabilizou-se por ser esse cartório complacente de reconhecimento de firma
do golpismo.
Foi sua (dos EUA) a iniciativa de
expulsar Cuba do organismo, na reunião de
Punta del Este, em 31 de janeiro de 1962, pelas seguintes alegadas
razões: a) declaração do caráter socialista da revolução -- incompatível com o
sistema interamericano; b) alinhamento com o bloco comunista, quebrando a
unidade e a solidariedade do continente; c) adesão ao marxismo-leninismo,
incompatível com os princípios e
objetivos do sistema interamericano.
Dois anos depois, a entidade
guardiã do capital e dos bons princípios daria, pelas mesmas razões, o atestado
de legalidade ao golpe de Estado contra Jango.
Um ano depois de Jango, legitimaria a invasão de São Domingos por
tropas majoritariamente norte-americanas, temperadas com batalhões de vários exércitos aliados,
inclusive 250 soldados da agradecida ditadura brasileira, que a OEA benzeu.
A mesma boa vontade e cooperação
o organismo demonstraria com o golpe sangrento contra a democracia chilena, em
1973.
Assim por diante.
Em todos esses casos e nos
demais, a engrenagem azeitada não encontraria repto à altura de sua
institucionalidade na região.
Não é mais assim.
O modelo emperrado tentou pegar
no tranco na reunião da OEA realizada
nos EUA, no último dia 6 de março.
O alvo deste revival era a Venezuela, de Maduro, sacudida por
violenta onda de protestos, liderada pela facção de extrema direita do
conservadorismo local.
A conversa da semana passada na
OEA avançou noite adentro.
Mas não conseguiu aprovar uma resolução apresentada pelos EUA, Canadá e
Panamá –ou seja, uma proposta do Departamento de Estado norte-americano— de
envio de uma missão não solicitada pelo governo Maduro ao país.
O apoio ao intervencionismo
dissimulado saiu como entrou:
circunscrito a 3 votos, contra 29 vetos.
Não apenas isso.
Chanceleres de 12 Estados
integrantes da União das Nações Sul-americanas (a Unasul) marcaram um encontro no Chile, nesta 4ª
feira, para discutir o mesmo tema em ambiente desinfetado da crispação
norte-americana contra o bolivarianismo.
O veto e a redefinição do locus deixam claro:
a) a OEA não fala mais pela
América Latina;
b) o colar de governos
progressista da região –ancorado no tripé Brasil-Argentina-Venezuela— detém
liderança para, ao menos, desestimular o adesismo de forças regionais;
c) essa guinada, repita-se, em
meio a um quadro internacional adverso
no plano econômico, é uma bem-vinda novidade histórica que não deve ser
subestimada.
Se além de barrar o golpismo, a
Unasul dispusesse de estrutura para acelerar a construção da democracia social na América Latina, as
diferenças seriam ainda mais
expressivas.
Não é assim, por enquanto.
Nascida oficialmente em 23 de
maio de 2008, ela reúne 12 nações, um PIB de quase US$ 8 trilhões (o dos EUA é
de US$ 15 tri) e uma população de 387
milhões de pessoas, distribuídas num imenso
território de 18 milhões de km2 que acomoda autossuficiência energética,
alimentar, mineral, abundância de água e reservas ambientais as mais
expressivas do planeta.
Além da criação de um Parlamento
único, uma moeda e um banco central da comunidade, a Unasul incluía, por
sugestão brasileira, a instituição de um
Conselho sul-americano de Defesa.
A dimensão militar da integração
foi interditada então pelo direitoso presidente da Colômbia, Álvaro Uribe,
mergulhado até o pescoço na aliança com a CIA e as forças militares dos EUA, na
guerra contra as Farcs.
A Unasul, como bem disse Lula na criação da
entidade, em Brasília, pretendia retomar a tradição da luta pela integração econômica regional. E ir além
dela.
Abandonada por governos conservadores, a agenda que remete a Bolívar, como gostava
de lembrar Chávez, cedeu lugar nos anos
90 à determinados de abrir integralmente
o mercado regional ao livre comércio com o poderio norte-americano, através da
ALCA.
A luta contra o
subdesenvolvimento –marcado pela iníqua
distribuição de renda e do patrimônio, o baixo desenvolvimento tecnológico e
industrial e elevada primarização das exportações-- cedeu lugar assim à panaceia desregulatória.
O saldo é conhecido e impulsionou
a volta da agenda integracionista ao final dos anos 90.
Desdenhada pela lógica
neoliberal, ela provou sua pertinência como alavanca de crescimento e
cooperação.
Basta ver os sérios problemas que
a redução das compras argentinas e venezuelanas tem causado às exportações
brasileiros de manufaturados para dar a
essa condicionalidade a sua real abrangência.
A economia regional já vivenciou práticas avançadas de comércio
no âmbito da ALALC ( a Unasul dos anos 60).
Um Convênio de Créditos
Recíprocos (CCR) assinado então entre os países da região permitia a intensificar as trocas comerciais
sem o uso de divisas fortes, graças a uma caixa de compensação de créditos quadrimestral.
O mecanismo funcionou plenamente –sem casos graves de
default—até meados dos anos 80.
Foi sufocado com o avanço da logica neoliberal no interior
das administrações nacionais, a partir de então.
‘Estamos deixando para trás uma
longa história de indiferença e isolamento recíproco. Nossa América do Sul não
será mais um mero conceito geográfico, disse Lula na retomada dessa tradição,
na assinatura do tratado da Unasul, há seis anos.
Recebida com previsível
menosprezo pelas viúvas da ALCA, a Unasul
vive paradoxalmente seu auge político em meio ao aparente estreitamento
de seu fôlego econômico.
Não por acaso, às dificuldades
internacionais, a região assiste à retomada da agenda do livre comércio através
da nova menina dos olhos do conservadorismo local, a Aliança do Pacífico.
A Aliança do Pacífico seduz as
classes dominantes por substituir a agenda incomoda da integração política pela
confortável promessa de bonança através do livre comércio.
A dimensão política do
desenvolvimento é um aspecto do jogo do poder compreensivelmente demonizado
pelos interesses dominantes de cada época.
Pelo simples fato de que ela os
inclui como parte dos entraves ao avanço de sociedades carentes de
decisões que arejem estruturas
concentradoras do excedente econômico.
A necessidade de integrar a
economia latino-americana às grandes cadeias de suprimento global, e de
incorporação de tecnologia, não é incompatível com a determinação de
construir a democracia social na região.
As condicionalidades econômicas de
uma época não definem, à priori, quem
será beneficiado ou penalizado pela superação de seus gargalos.
A existência da Unasul transcende
o papel passivo de um ferrolho contra o
golpismo.
O
simples fato de ela existir –e
funcionar-- amplia a margem de manobra
política para a América do Sul ir além de
seus erros e acertos, dos erros e
acertos de outras experiências de integração.
E dar uma resposta positiva à
premonição de Perón, que disse um dia:
‘O século XXI nos encontrará
integrados --ou destruídos’.
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