Ainda não temos a construção de
uma narrativa republicana coerente e de longa duração sobre o golpe militar, a
ditadura e a transição conservadora.
Quando em 1989, data do
bi-centenário da revolução francesa, instalou-se naquele país um debate público
de altíssima voltagem intelectual e de disputa de valores sobre o significado
histórico da revolução francesa. O fato de ter predominado a tese chamada de
revisionista, liderada por François Furet, fazendo a crítica amalgamada do
jacobinismo e do princípio da soberania popular de Rousseau, atualizando
argumentos de Benjamin Constant e de Alexis de Tocqueville, identificando-os
com o despotismo e o Terror, teve decerto conseqüências duradouras para a
cultura política francesa contemporânea. Certamente, ao separar o princípio da
liberdade dos princípios da igualdade e da fraternidade, esta interpretação da
revolução francesa contribuiu de modo decisivo para conformar o quadro atual
insidioso da cultura política francesa, com a sua deriva à direita, com a
separação entre socialismo e republicanismo, inclusive com largos setores da
classe operária, votando seguidamente na direita xenófoba e racista.
Com uma temporalidade menor e
decerto com uma irradiação mais circunscrita – afinal a revolução francesa foi
um evento central na formação do que chamamos de a modernidade republicana
democrática – a reflexão pública sobre os 50 anos do golpe
imperialista-burguês- militar pesará sobre a superação ou não dos impasses
estruturais da democracia brasileira.
Esta designação se impõe como mais precisa porque, com os novos
documentos do Estado norte-americano, que vieram à luz comprovou-se que o
imperialismo não apenas apoiou o golpe, mas teve um papel decisivo na sua
ideação e organização; além disso, pesquisas do Ibope da época, recém
divulgadas, demonstram que o governo Jango Goulart tinha o nítido apoio da
maioria da população brasileira e os golpistas apenas tinham a maioria do apoio
ativo entre os empresários e nos
quartéis. Seria preciso, portanto, identificar a dimensão “burguesa” do golpe,
não identificando-o incorretamente com uma presumida maioria de apoio “civil” da população.
Decerto ainda é dominante – tendo
sido hegemônica por um curto e decisivo período, nos anos iniciais da transição
conservadora – a narrativa liberal-conservadora da transição da ditadura
militar para a democracia. Por esta narrativa, o golpe militar foi a resposta à
crise de um regime chamado pejorativamente de populista, em um quadro
polarizado além das instituições por forças de esquerda alheias senão
incompatíveis com os valores da democracia. A conceituação da ditadura militar
como um regime autoritário, operando em meio a uma institucionalização
controlada, refletia a inserção da intelectualidade universitária brasileira em
uma ciência política da transitologia, formada nas universidades
norte-americanas, tendo em Fernando Henrique Cardoso o seu mais prestigioso e
influente intelectual.
As contradições deste regime
autoritário, herdeiro das tradições estatistas do varguismo e do
nacional-desenvolvimentismo, eram pensadas a partir da oposição entre Estado e
sociedade civil, entre, como dizia Fernando Henrique Cardoso, o “estado
hegeliano de Brasília e a sociedade lockeana dos interesses de São Paulo”.
Daí pensar a transição para a
democracia a partir de uma “frente da sociedade civil”, incluindo de modo
decisivo os empresários nacionais e multinacionais engajados na campanha pela
privatização e os próprios setores liberalizantes do regime. A transição para
democracia, nesta narrativa liberal-conservadora, deveria ser negociada e
eleger a estabilidade das novas instituições democráticas como o valor central,
o qual deveria subordinar os outros, como os anseios represados por mais justiça,
novos direitos e, principalmente, os valores da chamada Justiça de Transição. A
transição, não a ruptura democrática com a ditadura, devera implicar uma
transação.
A evidência da força contemporânea desta
narrativa está na jurisprudência do Superior Tribunal Federal que legitimou,
como definitiva, a Lei da Anistia promulgada pela ditadura militar que visou
apagar os crimes imprescritíveis contra a humanidade e os direitos humanos
cometidos durante a ditadura militar.
Se esta narrativa liberal-conservadora
cumpriu e cumpre o papel histórico de soldar as visões de mundo liberal à
conservadora, de uma certa tradição da intelectualidade da USP à consciência
resignada dos quartéis, qual narrativa poderia soldar as visões de mundo dos
socialistas, dos republicanos, e dos setores populares?
Seis visões e uma narrativa
Historicamente, as consciências
socialistas brasileiras se dividiram ao narrar a história de 1964 e seu após.
Houve quem contasse a história de 1964 como um fim inevitável e historicamente
necessário de um ciclo chamado de populista ou nacional-desenvolvimentista,
fruto de uma determinação econômico- estrutural (Imannuel Wallerstein), das
contradições imanentes da aliança populista (Octávio Ianni) ou das injunções do
modo de inserção do Brasil frente à dominação imperialista (em seu pluralismo,
as teorias da dependência de Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Andrew
Gunther Franck). Houve quem centralizasse a explicação nas ilusões do PCB em
uma revolução democrática-burguesa (Caio Prado Júnior) ou nas vacilações de
Jango Goulart ( a consciência militarista de setores da esquerda brasileira no
pós-64) ou ainda no não enraizamento e dispersão das estruturas organizativas
do chamado populismo entre os trabalhadores e os setores populares ( Francisco
Weffort). Já Wanderley Guilherme dos Santos, em sua tese de doutorado, depois
editada com o nome de “1964: Anatomia da crise”, centralizava a explicação na
paralisia decisória das instituições durante o governo Goulart, como expressão
da polarização político partidária.
Em suas diferentes verdades parciais, estas
diferentes respostas à pergunta – por que perdemos? - continuam a visitar a
cultura socialista brasileira. A pergunta, então, é: será possível construir
uma narrativa que nos unifique, em nosso pluralismo, e permita fazer a crítica
da narrativa liberal-conservadora?
O que vamos expor em seguida é a
estruturação desta narrativa, da qual extrairemos três teses solidárias.
O que propomos é a narrativa da
republicanização – nos tempos longos e inacabados – do Brasil. Chamamos de
republicanização, na linguagem da filosofia política que diferencia
republicanismo de liberalismo – o processo histórico de constituição de
cidadãos e cidadãs livres a partir do princípio da soberania popular e da
construção universal de direitos e deveres simétricos – sem desigualdade
estrutural – entre eles e elas. A republicanização sintetizaria, nesta
perspectiva, a questão nacional (soberania) e social (superação das
desigualdades estruturais herdadas do colonialismo, do escravismo e da
hiper-concentração fundiária) através da conquista e aprofundamento da
democracia, pensada a partir da soberania do povo.
Através desta narrativa,
entendemos 1964 como uma contra-revolução imperialista-burguesa e militar, que
centralizou as classes dominantes externas e locais, no clima da guerra fria,
para impor uma derrota histórica às forças políticas e sociais que lutavam pela
republicanização do país. As reformas de base, com centralidade para a reforma
agrária, que equivalia também a repensar as formas históricas da urbanização do
país, e as reivindicações democráticas de votos para os analfabetos, da
extensão do direito de sindicalização aos trabalhadores do campo, bem como a
adoção de um pluralismo partidário irrestrito, permitindo a legalização dos
partidos da esquerda, compunham esta agenda da republicanização. Os liberais
brasileiros, mesmo os mais avançados,
aderiram massivamente por cálculo ao golpe militar porque já não conseguiam
fazer frente na disputa democrática a esta pressão de republicanização que
iluminava a imaginação do país em obras magníficas de nossa cultura. O sertão ,
para retomar a imagem formadora de Antônio Conselheiro, iria virar mar e o mar
virar sertão?
A razão de Florestan Fernandes
Sabemos que, ao contrário, nos 21
anos da ditadura militar o sertão virou mais sertão e o mar virou mais mar, no
sentido do aprofundamento do subdesenvolvimento, como o definiria Celso
Furtado, isto é, a desigualdade estrutural entre os brasileiros aprofundou-se
em proporções inéditas na moderna sociedade capitalista brasileira.
Cremos que é somente através
desta longa narrativa da republicanização que podemos bem compreender o
clássico “A revolução burguesa” de Florestan Fernandes. Isto é, ao contrário da
imaginação pecebista da “revolução democrático-burguesa”, a revolução burguesa
aqui – retardatária, dependente e pressionada pelas classes trabalhadoras e
populares - era autocrática e instalava no plano social o “circuito fechado” do
poder e da riqueza. As formas modernas do capitalismo foram geradas e geridas pela ditadura em um sentido
anti-reformas de base, isto é, anti-republicano.
Compreender isto é decisivo.
Usando a linguagem de Gramsci, o “Estado fabrica o fabricante”. Isto é, a
ditadura fabricou o moderno capitalismo brasileiro em suas dimensões
estruturais, tal como o conhecemos hoje. Para ser mais preciso:
- a ditadura fundou o Banco
Central e organizou as fusões bancárias que originaram os grandes bancos
privados no país (não o capital financeiro, isto é, fusão entre grande capital
e bancário, como nos ensinou Maria da Conceição Tavares);
- a ditadura cercou a reforma
agrária por baixo e por cima, atingindo o campnêss e o latifundiário improdutivo,
introduzindo a previdência rural e criando, através de financiamento massivo a
fundo perdido pelo Banco do Brasil e pela criação da Embrapa, as bases do
moderno agro-business brasileiro;
- a ditadura consolidou a opção
não pública ou anti-republicana no setor dos meios de comunicação, investindo
na formação da grande mídia concentrada e empresarial, em particular na Rede
Globo;
- a ditadura utilizou a tradição
corporativa dos direitos fragmentados na direção inversa de Vargas, isto é,
para privatizar e vincular ao mercado a oferta de serviços na área da educação
e da saúde, formando legal e historicamente o moderno mercado da saúde e da
educação;
- a ditadura fez a associação
funcional tripartite empresa multinacional-empresa estatal- grande empresa
privada nacional, formando a moderna empresa capitalista no Brasil, de cuja
base social emergiria , em outro período, a liderança histórica de Lula.
Enfim, a ditadura não apenas
reprimiu o movimento histórico pela republicanização. Ela criou o moderno
capitalismo brasileiro anti-republicano, isto é, com um viés autocrático e
cioso da desigualdade estrutural de acesso aos direitos e deveres.
Transição conservadora e “teoria
dos dois demônios”
A disputa e a transação política
na transição da ditadura para a democracia se fez, em um primeiro momento no
Colégio Eleitoral e, depois, em um Congresso Constituinte eleito segundo as
regras do jogo definidas pela própria ditadura em seu ciclo final de
auto-reformas. Não houve nem diretas já nem Assembléia constituinte Exclusiva e
soberana, como reivindicavam as forças políticas mais interessadas e
comprometidas com o aprofundamento da democracia. A morte de Tancredo Neves e a
assunção de Sarney, ex-presidente do PDS, certamente acentuou as tendências
continuistas na transição conservadora.
Esta transição conservadora
trouxe três conseqüências anti-republicanas duradouras para a nova democracia.
A primeira delas foi a relegitimação
dos atores políticos civis orgânicos fundamentais que criaram e nutriram a
ditadura militar em sua longa temporalidade. Que estes atores tivessem direito
de expressão e voto na nova democracia faz parte do pluralismo. Mas que
passassem, assim, de uma condição a outra, de coveiros da democracia a
co-autores de seu renascimento, isto é obra do transformismo
liberal-conservador. Os “mortos-vivos” da ditadura atualizaram a sua
legitimidade como os “vivos-mortos” da nova democracia, atualizando nela até
hoje as suas razões e interesses anti-republicanos.
A segunda conseqüência
anti-republicana duradoura foi o transporte para a nova democracia de
instituições e leis amalgamadas em forças econômicas dominantes, criadas
durante a ditadura militar. Aqui funcionou o mecanismo chamado na ciência
política de veto-player: se não há mais força e legitimidade para ser maioria,
formar coalizões para impor veto às decisões das maiorias.A Constituição de
1988 foi, por excelência, o terreno desta guerra de posições e manobras, na
qual muitos direitos republicanos foram conquistados – em particular no
capítulo dos direitos sociais e da cidadania ativa – mas cristalizaram-se o que
se poderia chamar de impasses estruturais da republicanização do Brasil: o
Banco central e seus poderes rentistas, o grande negócio no campo e seus vetos
à reforma agrária, a semi-autarquia das Forças Armadas e a militarização da
segurança pública, os quase-monopólios midiáticos e suas interdições aos
direitos democráticos de comunicação pública, os poderes do grande capital e
seus vetos a uma estrutura tributária progressiva ou à democracia no local de
trabalho.
Em terceiro lugar, o circuito da
auto-reforma se fechou com a manutenção de uma estrutura legal e institucional
de eleições, partidos e sistema de representação, na qual as energias
transformadoras da soberania popular deveriam ser represadas pelas distorções
da representação e pela concorrência eleitoral de tipo americano, isto é,
fortemente assentada na força do dinheiro e dos lobbies de interesse das
grandes corporações. Todas estas três
heranças duradouras da ditadura militar na nova democracia brasileira
atualizavam não apenas os bloqueios a uma distribuição de renda como também a
formação dos direitos das mulheres e dos negros vitimados pela moral
conservadora e pelo racismo, atualizado na cultura brasileira pelas culturas da
apartação liberal-conservadoras.
A “teoria dos dois demônios “,
liberal-conservadora, ao proteger a nova democracia da “esquerda anti-democrática”
e dos “militares golpistas”, estendendo o manto de perdão a seus erros
históricos, havia feito o seu trabalho. Mas, com ele, renovaram-se os impasses
históricos da republicanização na nova democracia.
A chegada ao Brasil do
neoliberalismo, de modo trânsfuga por Collor e depois solidamente
programatizado por Fernando Henrique Cardoso, criaria um novo pacto histórico
entre liberais e conservadores, desta
vez atando não autocracia e mercado mas
as teorias elitistas da democracia aos novos imperativos da globalização
financeira. Aí já entramos na cena contemporânea da democracia brasileira.
A Justiça de Transição e o
exorcismo da “teoria dos dois demônios”
Afirmadas estas duas teses
analíticas – o entendimento da ditadura militar como uma contra-revolução
republicana e a transição conservadora como
a maximização dos vetores anti-republicanos para a nova democracia –
terminamos este ensaio com uma tese normativa. A cultura da Justiça de
transição é necessária para construir na democracia brasileira contemporânea as
condições de superação dos impasses à plena republicanização do país.
O fundamento da Justiça de
Transição é justamente o direito republicano dos povos a resistir, pelos meios
necessários, inclusive a violência, aos regimes despóticos ou tirânicos. Este
direito republicano de resistência foi firmado claramente nas revoluções
fundadoras da Modernidade por John Milton (“Em defesa do povo inglês” de 1651,
no qual justificava o julgamento e o enforcamento do rei despótico), Por Thomas
Paine (em “Senso comum” e “Os direitos do homem”, editados em favor da luta dos
revolucionários norte-americanos contra os opressores ingleses) e por Rousseau
( em “Contrato social”, onde firma o direito e até o dever de lutar contra os
Estados ilegítimos, baseados na força e não no princípio da soberania popular).
No estado brasileiro
contemporâneo, a cultura e as ações da Justiça de Transição estão sendo
ativadas e desenvolvidas pelo Comitê Brasileiro de Anistia, vinculado ao
Ministério da Justiça, e pela Comissão da Verdade. Elas incidem potencialmente
sobre cinco questões decisivas, que compõem a agenda da Justiça de Transição: o
direito à memória, o direito à verdade, o direito à reparação dos que foram
vítimas ou vitimados pela ditadura militar, o direito de julgar e condenar,
através do devido processo legal, os crimes contra a humanidade e a reforma
cidadã das leis e instituições repressivas criadas pela ditadura militar.
Se antes falamos dos mortos-vivos
da ditadura militar na democracia brasileira, é hora de chamar aqui a presença
dos personagens ausentes da democracia brasileira e que foram assassinados pela
ditadura militar. O povo de Salvador deu um grande exemplo ao povo brasileiro
ao nomear um colégio estadual de ensino de Carlos Mariguella ao invés de se
chamar fulano de tal da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici). A
república democrática se constrói nomeando e honrando os filhos da liberdade.
Assim, como fizemos de Zumbi dos Palmares e de Tiradentes, símbolos permanentes
de nosso amor à liberdade, façamos agora dos que morreram lutando contra a
ditadura os heróis cívicos da república democrática brasileira que resta ainda
a construir.
(*) Juarez Guimarães é professor
de Ciência Política da UFMG, pós-doutorado em Filosofia na USP, e pesquisador
do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras)
FOTO: Cinquenta anos do golpe
civil-militar de 1964 foram lembrados em São Paulo nesta segunda-feira, dia 31
(Paulo Pinto/Fotos Públicas)
Créditos da foto: Paulo
Pinto/Fotos Públicas
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