Luís Roberto Barroso *
Especial para o UOL
No recente julgamento da Ação
Penal 536, propus um diálogo institucional entre o Supremo Tribunal Federal
(STF) e o Congresso Nacional a propósito do chamado foro por prerrogativa de
função. Também conhecido como foro privilegiado, trata-se de uma reminiscência
aristocrática genuinamente nacional, sem réplicas de abrangência comparável em
outras democracias.
A Constituição brasileira prevê
que um conjunto amplo de autoridades federais responda, nas ações penais,
perante o STF ou o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Todos os demais cidadãos
são processados perante um juiz de primeiro grau. O sistema é muito ruim, por
variadas razões. E só o Congresso Nacional pode mudá-lo.
A primeira objeção a que
parlamentares, ministros, governadores e outros tenham foro especial é o seu
caráter não republicano. Nas Repúblicas, todos os cidadãos são iguais e devem
estar sujeitos às mesmas normas.
A desequiparação deve ser medida
excepcional e justificada. Em segundo lugar, o julgamento em instância única
suprime o duplo grau de jurisdição (o direito de recorrer a uma instância
superior), o que suscita tensões com tratados internacionais dos quais o Brasil
é signatário.
O foro privilegiado é uma
reminiscência aristocrática genuinamente nacional, sem réplicas de abrangência
comparável em outras democracias
Por fim, um tribunal como o STF
não deve ter por papel produzir provas e analisar questões de fato. Cortes
supremas, em todo o mundo, têm a destinação de interpretar a Constituição e
definir teses jurídicas que possam orientar e inspirar os demais juízes e
tribunais do país.
Além de problemas ligados à
filosofia constitucional, o foro privilegiado dá lugar a distorções exóticas e
a espertezas diversas. Há os que procuram se eleger para mudar a competência do
órgão que vai julgá-los, que passa do primeiro grau para o STF. Há os que
deixam de se candidatar, depois de processados no STF, com o propósito inverso:
fazer o processo baixar para sua área de influência. E há os que renunciam ao
mandato aos 45 minutos do segundo tempo, igualmente manipulando o sistema e
alterando o órgão competente para julgamento.
Um cidadão que se eleja prefeito,
deputado e, depois, governador, faz o processo saltar três vezes: do Tribunal
de Justiça para o STF e daí para o STJ. Tudo isso produz investigação fragmentada,
prescrição e impunidade.
Daí a proposta que fiz durante o
julgamento referido, que depende de uma emenda constitucional. Pouquíssimas
autoridades deveriam conservar o foro especial no STF, como o presidente da
República e o Vice, os presidentes do Senado, da Câmara e do STF, e o
procurador-geral da República.
Vara federal
Para o julgamento das autoridades
que hoje têm foro por prerrogativa de função poderia ser criada uma vara
federal de primeiro grau, em Brasília. O juiz titular seria escolhido pelo STF,
para um mandato improrrogável de quatro anos. Ao final desse período, seria
automaticamente promovido para o Tribunal Regional Federal, na primeira vaga
aberta, o que o imunizaria contra qualquer retaliação. Haveria tantos juízes
auxiliares quantos necessários. Das decisões dessa vara especializada caberia
recurso ordinário diretamente para o STF ou para o STJ, conforme a autoridade.
Há algumas razões que justificam
e legitimam a criação de uma vara federal especializada, em lugar da regra
geral, que seria a justiça estadual de uma das unidades da Federação. A
primeira delas é não deixar a autoridade pública sujeita à má-fé ou ao
oportunismo político de ações penais em qualquer parte do país, consumindo-lhe
tempo e energia.
Para o julgamento das autoridades
que hoje têm foro por prerrogativa de função poderia ser criada uma vara
federal de primeiro grau, em Brasília
A segunda é promover a
uniformidade de critério, que poderia ser calibrado por meio dos recursos
ordinários. Detalhe importante: a vara especializada continuaria competente
mesmo após a autoridade deixar o cargo, assim se eliminando as idas e vindas do
processo.
Por outro lado, uma vara federal
em Brasília neutralizaria a eventual influência do poder local, impedindo
perseguições e favorecimentos. Um modelo simétrico poderia ser aplicado às
ações de improbidade administrativa.
Naturalmente, esse conjunto de
ideias é apenas um esboço, a ser aperfeiçoado com a contribuição do Congresso
Nacional, de entidades representativas (como OAB, AMB, Ajufe, ANPR) e do debate
público amplo. Democracias maduras não nascem prontas. Seu aperfeiçoamento
constante exige mobilização da sociedade e autocrítica das instituições.
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