O rádio e a alfabetização
exerciam nos anos 60 o mesmo papel que a quebra do monopólio da mídia
desempenha hoje na disputa pelo desenvolvimento.
por: Saul Leblon – Carta Maior
Em audiência no Senado dos EUA ,
em 1966, o embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, indicado então para o posto de
subsecretário de Assuntos Interamericanos - regalo pelos serviços prestados na
derrubada de Jango dois anos antes-- ao ser arguido sobre a arbitrariedade do
golpe respondeu:
‘Até fins de janeiro eu ainda considerava ser
possível desviá-lo (Jango) de subverter o regime (...) entre janeiro e a
deposição eu me convenci de que já não havia maiores possibilidades (...) Ele
estava terminantemente resolvido a derrubar o regime -- a menos que outros o
impedissem de faze-lo’. (07/02/1966; Comissão de relações Exteriores do Senado
norte-americano)
As transcrições disponíveis não
revelam se Lincoln Gordon sorria ou tinha as faces ruborizadas ao concluir o
raciocínio.
A dúvida persiste, em escala
ampliada, cinquenta anos depois.
A exemplo de Lincoln Gordon, o
dispositivo midiático local, que esteve tão equidistante do golpe quanto o ex-embaixador
norte-americano, adota a mesma revisão histórica nas efemérides sobre os
acontecimentos de 1964.
Não se trata mais o golpe de
revolução.
Nem se tenta mais – o que seria
ridículo - esconder o grau de repressão intrínseco ao regime .
Foram anos duros, admite-se.
Mas justificáveis, acodem as
entrelinhas e os destaques seletivos.
Afinal, Jango ‘estava terminantemente resolvido a derrubar
o regime - a menos que outros o impedissem de fazê-lo’.
O cinismo da tese foi devidamente
escrachado na mídia alternativa.
Mas cumpre destacar aspectos nem
sempre realçados no ‘golpismo’ de Jango.
Um dos mais paradoxais era a sua
esperança na universalização do voto democrático.
O Presidente decidido a se
perpetuar no poder - ‘como um Péron, ou um Vargas’, sugeriu Lincoln Gordon aos
senadores gringos — tinha fixação em estender o direito do voto aos mais
penalizados pela desigualdade brasileira: os iletrados.
O Brasil de 1964 tinha cerca de
80 milhões de habitantes.
O índice de analfabetismo entre
as pessoas com 15 anos ou mais era de 39,6% em 1960.
Significa que na faixa à qual era
facultado o voto chegava a 50%.
No Nordeste ia muito além disso.
A Constituição de 1946 em vigor
cobrava o bilhete da alfabetização para o ingresso na cabine eleitoral.
Quase a metade da população em
idade de voto ficava do lado de fora da urna, na soleira da porta da democracia
e do país.
Como seria possível mudar pelo
voto a realidade dramática de um país em que os mais penalizados não tinham
direito à expressão eleitoral?
A alfabetização e o direito de
voto ao analfabeto – associados ao rádio -
representavam para a agenda progressista dos anos 60 aquilo que a quebra
do monopólio midiático representa hoje para a democracia brasileira.
Sem mexer nesse dente a
engrenagem gira em falso. A luta em torno do passo seguinte do desenvolvimento
patina na disjuntiva: ou arrocha, ou sobe o juro.
A reversão do impasse começou a
ser tateada em Recife, em 1959.
Com a vitória de Miguel Arraes na
prefeitura foi criado o Movimento de Cultura Popular que tinha entre outros
objetivos a educação de crianças e adultos.
Não era só um movimento
educativo, mas um espaço de (re)construção de identidade social e cultural.
O método tinha dono: Paulo Freire
(1921-1992). Em 1958, o autor da ‘Pedagogia do Oprimido’, coordenou um minucioso estudo sobre “A educação de Adultos e as Populações
Marginais’. Um trabalho feito com base em observações e experiências entre
populações de mocambos.
A proposta era alfabetizar com
lápis, papel e consciência social.
E fazê-lo de forma muito mais rápida
e consistente que o método tradicional. Não era uma iniciativa regressiva, como
se acusou, de trocar a educação republicana pela reiteração dos limites locais.
Era um alicerce de arranque, um
ponto de partida capaz de interessar e habilitar o alfabetizando a novos saltos
na escala do conhecimento e da cidadania.
Uma coisa puxando a outra.
O primeiro salto, o mais difícil,
era romper a linha de resistência da falta de sentido: o aprendizado para
jovens e adultos, pobres e miseráveis, carregava intrinsecamente um desafio de
mobilização pessoal, local e, no governo Jango, nacional.
Nas palavras de Freire, era
indissociável da incorporação da cultura e da história de vida ao processo.
O conjunto ensinaria não apenas a
ler e escrever, mas a pensar criticamente a realidade do alfabetizando.
Educação para quê?
Para liberdade; para a igualdade,
responderia o educador que ficou 72 dias preso após o golpe de 64 e foi
exilado.
Um testemunho ficou famoso e
alimentou justas esperanças naquele início.
Em Angicos, RN, Freire
alfabetizou 300 trabalhadores da cana em um mês e meio.
Angustiado com o labirinto de
contradições que paralisavam o país e o seu governo, Jango viu ali um atalho
para injetar alguma coerência ao processo de transformação democrática da
economia e a da sociedade.
Em 1963, o Presidente determinou
a criação de uma Comissão de Cultura Popular.
Objetivo: implantar novos
sistemas educacionais ‘de cunho eminentemente popular’ em áreas ainda não
abrangidas pela rede convencional.
O presidente da Comissão: Paulo
Freire.
Seu desafio agora era
nacionalizar o êxito de Angicos na luta
contra o analfabetismo brasileiro.
Era uma corrida contra o tempo.
Uma corrida contra o golpe em marcha.
Uma chance de levar o impasse até
as urnas e nelas dar espaço e voz aos que nunca tiveram espaço e voz na
politica nacional.
No dia 21 de abril de 1963 o
desafio ganhou recorte institucional com
a criação do Programa Nacional de Alfabetização.
Imediatamente iniciou-se a
mobilização para formar os monitores que vasculhariam o país na saga do século
contra o analfabetismo.
Milhares de jovens, estudantes,
sobretudo, mas também idosos e aposentados, inscreveram-se em todos os estados
do país para a etapa de capacitação deixando o conservadorismo de orelha em pé.
Transformar o Brasil com
alfabetização era uma bandeira de apelo irresistível em um país conflagrado
pelo cerco cada vez mais belicoso das elites.
A agenda da alfabetização com
consciência crítica virou tema da política nacional.
O plano para 1964 incluía a
capacitação de 18 mil a 20 mil círculos, que deveriam alfabetizar pelo menos
dois milhões de pessoas por ano.
O Brasil teria eleições em 1965.
Na progressão geométrica do
entusiasmo e da eficácia do método, milhões de novos eleitores estariam aptos a
influenciar o resultado das urnas na sucessão de João Goulart – que teria no
próprio um candidato favorito, como constataria então o Ibope em pesquisa
mantida em sigilo (leia ‘A exumação do
presente’).
Mas Jango queria ir além na
corrida contra o tempo para a reordenação da democracia e da economia
brasileira.
Quinze dias antes do golpe, e
três dias depois do comício na Central do Brasil, na mensagem anual ao
Congresso, de 15 de março de
1964,intitulada ’Os novos tempos e as
novas tarefas do povo brasileiro’, ele
faria a veemente defesa da extensão do voto ao analfabeto.
Trata-se de uma profissão de fé
no papel transformador do voto e da democracia das mais contundentes já
enviadas ao parlamento brasileiro.
Jango defendia algo que somente
se materializaria um quarto de século depois, com a Constituinte de 1988.
O que ocorreu nos 15 dias
seguintes é história.
Uma história ainda escrita predominantemente
pelos vencedores que golpearam a democracia para defende-la. E que hoje sentenciam
à la Lincoln Gordon:’ ele (Jango) estava
terminantemente resolvido a derrubar o regime -- a menos que outros o
impedissem de fazê-lo’.
Falta explicar por que um
caudilho assim decidido, um golpista tinhoso,
pretendia alfabetizar milhões de brasileiros pobres e estender o voto
aos analfabetos – e insistia em fazê-lo a dias de ser derrubado , consciente de
que viajava em um carro sem freio.
Essa talvez tenha sido a grandeza
e a franqueza do Presidente deposto: ele não
desprezava as urnas tal qual seus algozes mostraram desprezar e temer.
Ao contrário, Jango tentava
chegar às urnas de 1965 levando junto o protagonista que tinha mais interesse
em mudar o país: a metade do Brasil adulto e pobre, impedida de votar por ser
iletrada.
Leia abaixo a introdução da
derradeira mensagem de abertura da sessão legislativa de João Goulart ao
Congresso, na qual trata também da reforma universitária e das reformas de
base.
OS NOVOS TEMPOS E AS NOVAS
TAREFAS DO POVO BRASILEIRO
INTRODUÇÃO À MENSAGEM
PRESIDENCIAL DE ABERTURA DA SESSÃO LEGISLATIVA DE 1964.
Senhores Membros do Congresso
Nacional:
O amadurecimento da democracia
brasileira está a exigir que as nossas instituições políticas se fundem na
maioria do povo e que o corpo eleitoral, raiz da legitimidade de todos os
mandatos, seja a própria Nação.
A Constituição de 1946, entre
outros privilégios, consagrou, no campo eleitoral, normas discriminatórias que
já não podem ser mantidas, em razão da justa revolta que provocam e da
limitação numérica dos quadros eleitorais, que vem estimulando as atividades de
órgãos de corrupção, os quais, por [orça do poderio econômico, procuram
degradar a mais nobre das instituições democráticas: a representação popular.
São inadmissíveis, na composição
do corpo eleitoral, discriminações contra os militares, como os praças e os
sargentos, chamados ao dever essencial de defender a Pátria e assegurar a ordem
constitucional, mas privados, uns, do elementar direito do voto, outros da
elegebilidade para qualquer mandato.
Outra discriminação inaceitável
atinge milhões de cidadãos que, embora investidos de todas as responsabilidades
civis, obrigados, portanto, a conhecer e a cumprir a lei e integrados na força
de trabalho com seu contingente mais numeroso, são impedidos de votar, por
serem analfabetos.
Considerando-se que mais da
metade da população brasileira é constituída de iletrados, pode-se avaliar o
peso dessa injustiça, que leva à conclusão irrecusável de que o atual quadro de
eleitores já não representa a Nação, urgindo sua ampliação para salvaguarda da
democracia brasileira.
Acresce, ainda, a vizinhança
cultural entre o analfabeto e o simples alfabetizado, nesta era em que a
divulgação radiofônica estendeu a área de informações. A essas razões aliam-se
também as discriminações políticas, que impedem — por mero arbítrio policial —
concorram a quaisquer eleições ou se diplomem candidatos elegíveis ou que
alcançaram as mais expressivas votações.
A verdade, já agora irrecusável,
é que o nosso processo democrático só se tornará realmente nacional e livre
quando estiver integrado por todos os brasileiros e aberto a todas as correntes
de pensamento político, sem quaisquer discriminações ideológicas, filosóficas
ou religiosas, para que o povo tenha a liberdade de examinar os caminhos que se
abrem à sua frente, no comando do seu próprio destino.
Para esse passo essencial e
inadiável, é, a meu ver, imprescindível que se altere a Constituição da
República, a fim de nela incorporar, caso nisto aquiesça o Congresso Nacional,
no exercício de sua atribuição privativa, como princípios básicos de nossa vida
política, as seguintes normas:
São alistáveis os brasileiros que
saibam exprimir-se na língua nacional e não hajam incorrido nos casos do art.
135 da Constituição.
São elegíveis os alistáveis.
Reforma Universitária
Senhores Membros do Congresso
Nacional:
É também imperativa a reforma dos
dispositivos constitucionais, disciplinadores da educação nacional, a fim de
ampliarem-se as garantias da liberdade do docente e redefinir-se o instituto da
cátedra, retirando-lhe o caráter de domínio arbitrário e irresponsável de um
campo do saber, para possibilitar ao ensino superior a renovação de seus
quadros, o domínio da ciência e da técnica e maior eficácia na transmissão do
conhecimento.
Para esse efeito, sugiro seja
estudada pelo Congresso Nacional a conveniência de integrar no texto
constitucional os seguintes princípios:
É assegurada ao professor de
qualquer dos níveis de ensino plena liberdade docente no exercício do
magistério.
É abolida a vitaliciedade da
cátedra, assegurada aos seus titulares a estabilidade, na forma da lei.
A lei ordinária regulamentará a
carreira do magistério, estabelecendo os processos de seleção provimento do
pessoal docente de todas as categorias e organizará a docência, subordinando os
professores aos respectivos departamentos.
Às Universidades, no exercício de
sua autonomia, caberá regulamentar os processos de seleção, provimento e acesso
do seu pessoal docente, bem como o sistema departamental, ad referendum do
Conselho Federal de Educação.
Delegação Legislativa
Senhores Membros do Congresso
Nacional:
O cumprimento dos deveres do
Estado moderno não se concilia com uma ação legislativa morosa e tarda. São
incompatíveis, sobretudo nos instantes de crise social, a presença atuante e
responsável do poder público e as normas anacrônicas de uma ação legislativa
que são fruto de um sistema econômico ultrapassado e ainda se vinculam a uma
concepção abstencionista do Estado, apenas espectador do desenvolvimento e das
atividades sociais. Em nossos dias e em todas as nações, o poder público não
pode restringir-se a atitude cômoda de simplesmente manter a ordem e
administrar a justiça, indiferente ao destino do povo e desatento ao esforço de
construção de um país próspero.
A rapidez das mudanças e transformações
que a sociedade experimenta, em virtude da força incoercível das tensões
sociais e das inovações geradas pela ciência e pela tecnologia, exige do
Estado, sobretudo em países que travam a luta pelo progresso, procedimentos
legislativos que o habilitem a agir rápida, eficaz e corajosamente.
Assim, a semelhança do que já fez
a maioria das nações, impõe-se também ao Brasil suprimir o princípio da
indelegabilidade dos poderes, cuja presença no texto constitucional só se deve
aos arroubos de fidelidade dos ilustres constituintes de 1946 a preceitos
liberais do século XVIII.
A emenda poderia ter, caso assim o decida o
Congresso Nacional, a seguinte redação:
Fica revogado o § 2º. do art. 36
da Constituição Federal.
Soberania Popular
Senhores Membros do Congresso
Nacional:
Momentos há do desenvolvimento
histórico de um povo em que sua própria sobrevivência e a autonomia no comando
do seu destino se podem pôr em risco, caso se deixe abrir uma brecha entre as
aspirações populares e as instituições responsáveis pela ordenação da vida
nacional.
Para fazer face a esse risco,
permito-me sugerir a Vossas Excelências, Senhores Congressistas, se julgado
necessário para a aprovação das Reformas de Base indispensáveis ao nosso
desenvolvimento, a utilização de um instrumento da vida democrática, jurídico e
eficaz, que torne possível salvaguardá-la mediante consulta à fonte mesma de
todo poder legítimo que é a vontade popular.
Assim, peço a Vossas Excelências
que também estudem a conveniência de realizar-se essa consulta popular para a
apuração da vontade nacional, mediante o voto de todos os brasileiros maiores
de 18 anos para o pronunciamento majoritário a respeito das reformas de base.
Nossa Missão
Senhores Membros do Congresso
Nacional:
Atribuo a mais alta importância,
para os destinos da nossa Pátria, à alteração dos textos constitucionais, à luz
deste corpo de sugestões. Permitam-me os nobres Congressistas assinalar que a
meu juízo, esses princípios traduzidos em atos, contribuirão decisivamente para
libertar as energias nacionais juguladas pela estreiteza de uma estrutura
econômica inatual, cuja perpetuação somente serve a grupos privilegiados e já é
incapaz de abrir perspectivas de progresso a uma Nação de 80 milhões de
habitantes, que cresce num ritmo acelerado. Tais preceitos, se acolhidos pelo
Congresso Nacional na reformulação de nossa Carta Magna, haverão de emancipar o
povo brasileiro das peias institucionais que o aviltam, pois o mantém dividido
em dois grupos que se extremam pelo contraste: um, o reduzido núcleo dos
privilegiados; outro, a imensa massa dos deserdados dos quais tudo se exige,
sem assegurar-lhes sequer o calor da certeza de um futuro melhor.
É, pois, com o mais alto apreço
que me dirijo ao Congresso Nacional e fim de pedir-lhe o exame desapaixonado
das diretrizes aqui formuladas para as modificações do texto constitucional,
visando à consecução pacifica e democrática das Reformas de Base. Estou certo
de que os nobres Parlamentares do Brasil, deste ano de 1964, guardam fidelidade
às honrosas tradições dos nossos antepassados, que em conjunturas semelhantes
da vida nacional, como a Independência, a Abolição da Escravatura, a
Proclamação da República e, a Promulgação da Legislação Trabalhista, tiveram
sabedoria e a grandeza de renovar instituições básicas da Nação, que se haviam
tornado obsoletas, assim salvaguardando o desenvolvimento pacífico do povo
brasileiro.
O desafio histórico repete-se
outra vez. Agora, nossa geração é que está convocada para cumprir a alta missão
de ampliar as estruturas sócio-econômicas e renovar as instituições jurídicas,
a fim de preservar a paz da família brasileira e abrir à Nação novas
perspectivas de progresso e de integração de milhões de patrícios nossos numa
vida mais compatível com a dignidade humana.
Brasília, 15 de março de 1964
João Goulart
Presidente da República
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