O primeiro pré-requisito que Israel exigiu para os
palestinos foi a não assinatura de qualquer tratado internacional de direitos
humanos (sic!).
Maren Mantovani (*) – Carta Maior
Na semana passada, o prazo final do processo de negociação
entre Israel e a Autoridade Nacional Palestina terminou, longe de aproximar os
palestinos ao seu direito de autodeterminação ou de alcançar a paz. Esta
situação era previsível e lógica, até autoevidente, porém aqui aparentemente
termina a racionalidade.
Para começar, no ano passado quando a administração
americana foi puxando a "Iniciativa Kerry", ou seja, o período de 9
meses de negociações, supostamente, para alcançar uma solução para a questão palestina,
a maioria das pessoas sabiam que este era um filho nascido morto. A única
explicação dos EUA para insistir neste processo foi a tentativa de recuperar a
hegemonia diplomática temporária após o reconhecimento do Estado Palestino por
parte da Assembleia Geral da ONU, mostrando que o sul global pode - mais
efetivamente que os EUA – suceder em iniciativas internacionais a respeito do
Oriente Médio.
A equipa de negociações norteamericana não fez o papel de
"mediador", mas tomou o apoio integral do lado israelense: Kerry
nomeou o ex-funcionário da AIPAC, o lobby israelense nos EUA - Martin Indyk
como enviado especial ao Oriente Médio para liderar um grupo de outros
veteranos do lobby anti-Palestino. Rumores acerca de um plano norteamericano
para a "paz" de 1000 páginas vazaram, revelando que essa proposta não
tinha nada a ver com a implementação dos direitos palestinos. Era simples e
puramente uma solução à la Bantustão na forma de entidades territoriais
isoladas e com soberania limitada, semelhante ao escárnio da “autodeterminação”
negra promovida pelo regime de apartheid sul africano. No entanto, Israel foi
descarado o suficiente para implodir até mesmo esta charada de “processo de
negociações”.
A reação dos EUA foi dura e raivosa, sempre considerando os
limites da Casa Branca na frente do lobby anti-Palestina. Após de fracassar no
intento de entrar diretamente na guerra na Síria, o desafio aberto pelos
interesses ocidentais na Ucrânia feito por Putin e a incapacidade demonstrada
no lidar com a chamada Primavera Árabe e seus desdobramentos, a administração
Obama precisava de uma vitória diplomática, não de uma humilhação por parte de
Israel.
Kerry culpou explicitamente o lado israelense por frustrar a
sua iniciativa. Isso não acontecia desde o fracasso das negociações de Camp
David, no 2000, quando James Baker, secretário de Estado naquele período, leu o
número central da Casa Branca avisando o governo israelense que "quando
tivesse uma posição séria sobre a paz, ligasse para nós". Há poucos dias,
Kerry advertiu Israel que iria se transformar em um estado 'apartheid' se
continuasse a recusar uma solução de dois Estados. Isso é uma afirmação
pesadíssima vinda de um ministro das Relações Exteriores dos EUA.
Evidentemente, Kerry estava errado. Israel não vai se
transformar em um estado de apartheid, simplesmente porque já é um. Uma série
de estudos jurídicos de alto nível, bem como o Muro do Apartheid de 8 metros de
altura e 700 km de extensão e um regime de estradas segregadas, assentamentos
somente para judeus e leis diferentes para pessoas de diferentes grupos
étnico-religiosos são provas disso. De acordo com uma enquete israelense de
2012, a maioria dos cidadãos israelenses concorda com a afirmação de que Israel
pratica políticas de apartheid.
Então, como poderia Israel, sem rodeios, recusar a proposta
dos EUA, que tinha como objetivo garantir o reconhecimento por parte da
comunidade internacional e da Autoridade Nacional Palestina de uma solução
Bantustão à la apartheid da África do Sul?
Como a zona de conforto israelense mudou-se de Washington
para Brasilia
De fato, ocorreu uma divisão dentro da liderança israelense
sobre o assunto. A líder da equipe de negociações israelense, considerada
criminosa de guerra pelos palestinos e atual ministro da Justiça de Israel,
Tzipi Livni, e um número de líderes dos serviços de inteligência israelenses,
saíram em defesa de um compromisso com a Iniciativa de Kerry, que teria
incluído um congelamento parcial da atividade de colonização da Cisjordânia.
Seu argumento era simples: se Israel estava prestes implodir
as negociações, mais uma vez, os EUA não voltariam para promover novas
negociações no futuro previsível. Não que alguém desejasse que as negociações
alcançaram um acordo, mas como Tzipi Livni declarou incisivamente "as
negociações de paz são a parede que vai parar a onda [de pressão do boicote internacional]. Se há uma crise
nas negociações, [esta onda] irá acertar em cheio."
No entanto, a outra fação em Israel prevaleceu. Eles optaram
por matar 61 palestinos, aprovar mais de 13.000 unidades de assentamentos,
realizar quase 4.500 operações militares em território palestino, demolir 196
casas palestinas e permitir mais de 660 ataques de colonos contra os palestinos
durante o período de negociações. Seus cálculos são baseados na esperança de
que Israel vai encontrar uma maneira de sobreviver a pressão do boicote, ter
mais tempo para construir assentamentos e ao final dar ainda menos terra para o
povo palestino em uma solução futura de Bantustão.
Para garantir que a solução apartheid não perca força, o
primeiro-ministro Netanyahu propôs há poucos dias atrás uma nova lei que
reforça o caráter "judeu" do Estado de Israel como um pilar na
constituição. O objetivo é garantir que, aconteça o que aconteça, nem
palestinos ou qualquer outra pessoa não-judia serão capazes de alcançar a
cidadania igual a um judeu.
Embora ambos os campos principais em Israel concordarem que
as negociações não devem ser consideradas uma ferramenta para alcançar uma paz
justa ou um acordo com o povo palestino, eles diferem essencialmente na sua
consideração sobre o quão profunda é a zona de conforto de Israel antes que a
impunidade acabe.
O que deve ser preocupante com isso, pelo menos do ponto de
vista brasileiro, é que as pessoas que insistem que não há ameaça à impunidade
de Israel são as mesmas que estão discutindo desde o início deste ano que a
América Latina e os países de economias emergentes são a zona de conforto para
Israel. Em sua visão, esses países "não se preocupam com a questão
[palestina]. Eles querem falar sobre três coisas: Tecnologia israelense,
tecnologia israelense e tecnologia israelense".
Como se quisessem comprovar que os promotores do
colonialismo de Israel estão certos, o mais recente esforço de propaganda
israelense se alimenta dos contratos do Brasil para empresas militares e de
segurança de Israel. O diário Haaretz, na semana passada, desencadeou uma onda
de artigos nos jornais em torno do mundo apresentando uma reportagem sobre
"Israel no Brasil: para a segurança não para o futebol". Esta
campanha midiática que está promovendo a presença durante a próxima Copa do
Mundo da tecnologia do apartheid israelense, desenvolvida em guerras e
segregação racial do povo palestino, nada mais é do que um tapa na cara do
governo brasileiro que lançou nos jogos o lema "Copa do Mundo contra o
Racismo e pela Paz”.
Ou, mais simplesmente, o vilão pode ter dito a verdade:
cinco VANT da israelense Elbit, dois VANT e um Centro Integrado de Comando e
Controle da Israeli Airspace Industries, uma série de contratos com outras
empresas militares israelenses e numerosos treinamentos policiais e seminários
de anti-terrorismo e segurança pública organizados por Israel vão entrar em
operação durante a Copa.
Superar o absurdo: uma estratégia para a Libertação da
Palestina
Quando no final do período de nove meses o lado palestino
seguiu em frente, o clamor de Israel contra as "ultrajantes medidas
unilaterais” sendo tomadas desvenda um outro nível de aparentes absurdos
semânticos e políticos.
Em primeiro lugar, por que os palestinos são acusados de
tomar medidas "unilaterais"? Israel não expulsou a maioria da
população palestina de suas casas, tomou controle de cerca de 87 por cento das
terras palestinas, construiu assentamentos e muros do apartheid somente depois
que tiveram alcançado um consenso "bilateral". Além disso, não houve
um movimento de libertação nacional na história que tenha acordado suas
estratégias de libertação com os colonizadores e ocupantes antes de implementá-las.
O que a Palestina precisa é de uma estratégia multilateral, global para
alcançar uma paz justa com base na aplicação do direito internacional e dos
direitos humanos.
Em segundo lugar, o clamor de Israel sobre movimentos
palestinos revelou que não foi Israel, mas sim o lado palestino que teve que
aceitar pré-condições para ser autorizado a participar neste teatro do absurdo.
O primeiro pré-requisito que Israel exigiu para os palestinos foi a não
assinatura de qualquer tratado internacional de direitos humanos (sic!). Querer
fazer parte e respeitar os instrumentos de direitos humanos da ONU é
presumivelmente considerada uma ameaça à segurança nacional israelense. A
segunda condição era que a ANP na Cisjordânia não se reconcilie com a
administração do Hamas em Gaza. Como resultado, a equipe de negociações
palestina nunca foi, de fato, representante de toda a população palestina e,
com isto, teria sido praticamente impossível para eles ratificarem qualquer
acordo. Que após o colapso das negociações a “reconciliação” ocorreu quase
imediatamente mostra que o verdadeiro obstáculo nunca foi uma questão de
disputa interna palestina, mas sim a proibição externa de reconciliar além das
diferenças.
No entanto, para concluir, o absurdo de todo o que foi
exposto desaparece assim que se leva um elemento simples em consideração: o
pressuposto axiomático da impunidade contínua de Israel, apesar de seus crimes
e seu regime ilegal do apartheid, colonialismo e ocupação. Esta impunidade
transforma os EUA em refém de seu próprio protegido, Israel em uma potência
cheio de hybris e vê a liderança palestina forçada a privar-se de elementos
muito básicos de governança ou dos movimentos de libertação.
Frente a isso, ninguém deve se surpreender que há quase uma
década a sociedade civil e os partidos políticos palestinos têm chamado a
pessoas, instituições e governos de todo o mundo para responsabilizar Israel
por meio de uma campanha sustentada por boicotes, desinvestimento e sanções
(BDS). Igualmente, a campanha BDS tem crescido no Brasil debito ao compromisso
dos movimentos que opõem-se firmemente contra a invasão israelense ao mercado
brasileiro em forma de armamento, tecnologia e comércio livre - relações que
contribuem diretamente para o financiamento de crimes de guerra contra o povo
palestino. Israel tem que ser isolado internacionalmente, com sanções, para que
seja forcado a respeitar os direitos humanos do povo palestino e para a paz no
Oriente Médio. Até hoje, este movimento que cresce diariamente representa o
caminho mais coerente e de maior sucesso a ser seguido a partir deste último
ato do teatro do absurdo.
(*) Mestranda em Estudos Orientais, tem sida nos
últimos 10 anos, coordenadora de relações internacionais para 'Stop the Wall',
a campanha palestina contra o Muro de apartheid que Israel está construindo na
Palestina. Ela é a autora de "Relações Militares Entre Brasil e
Israel", um amplo estudo sobre o assunto.
Créditos da foto: Arquivo
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