Contrapor ao galope conservador
um salto da democracia participativa não é desprezível. Torná-lo uma referência
de avanços aos olhos da população é o desafio.
por: Saul Leblon / Carta Maior
Um dos maiores desafios das
forças progressistas em um embate político, a exemplo da disputa presidencial
em curso no Brasil, é dar transparência
aos campos em confronto.
Ao conservadorismo, ao contrário,
favorece a dissimulação por razões históricas
objetivas: sua agenda é intrinsecamente vulnerável ao escrutínio popular
democrático.
Aécio, como Serra em 2010, e
Alckmin, em 2006, amortece esse impasse recorrendo à velha promessa de
preservar ‘o que deu certo’, a exemplo dos programas sociais de massiva
abrangência e elevado prestígio criados desde 2003.
Sem verbalizar a mudança
estratégica embutida em sua candidatura o tucano sonega espertamente seu custo
às grandes maiorias.
A dissimulação é favorecida pelo
confortável espaço de indiferenciação propiciado por uma correlação de forças
local e global que dificulta uma agenda crível, não apenas exclamativa, de
superação estrutural do conflito entre os interesses da ‘Internacional
Financeira’, na feliz definição do governador Tarso Genro, e o desenvolvimento da sociedade.
É nesse limbo ideológico que o
martelete moralista opera com enérgica desenvoltura nas mãos do dispositivo
midiático.
Sua narrativa divide a sociedade
em dois gomos.
O doce reúne os que cometem
irregularidades pontuais – por exemplo,
eventuais aeroportos erguidos em propriedades familiares, com dinheiro público.
O gomo azedo condensa a corrupção
‘lulopetista’.
Esta, como se sabe, será sempre
sistêmica, não importa que de 2003 a
maio deste ano a Polícia Federal tenha efetuado 24.881 prisões em 2.226
operações anticorrupção.
No ciclo do PSDB?
Apenas 48.
Cerca de quarenta vezes menos
empenho em investigar e punir.
Não importa.
Essa é apenas uma ilustração dos dilemas embutidos na fixação de uma
diretriz eleitoral progressista, no âmbito de uma crise em que os mercados e
seus ventríloquos ainda desfrutam de espaço para asfixiar a democracia e
repetir à exaustão, à moda Tatcher: “não há alternativa”.
O fatalismo que esbanja tal
resistência, reconheça-se, não é obra do improviso.
Ele foi sedimentado ao longo de
décadas de derrotas políticas, mas também de recuos programáticos e
organizativos, de concessões aos mercados e a seus dogmas, com correspondente renúncia e desarmamento das
fileiras progressistas.
Desse ovo vingou o paradoxo de
uma hegemonia em frangalhos que ainda dá as cartas do jogo.
Na crise de 29, quando a Bolsa de
Nova Iorque derreteu e o desemprego atingiu um em cada quatro norte-americanos
(em 1933 a taxa de desemprego foi de 24,9%), a relação de forças existente no
mundo era distinta.
Doze anos antes uma revolução
operária havia instalado o primeiro governo revolucionário em uma das maiores
nações do planeta. A Alemanha escalpelada pelas reparações da Primeira Guerra
produziu um poderoso movimento socialista que quase tomou o poder. Sua derrota
‘resolveu’ a crise alemã pela ascensão do nazismo.
Desempregados e veteranos da
Primeira Guerra Mundial ergueram um acampamento na principal avenida de
Washington e enfrentaram o Exército quando o governo tentou removê-los.
Entre 1929 e 1933, o PIB dos EUA
recuou 27%. Nove mil bancos quebraram. A taxa de desemprego só retornaria a um
dígito com o esforço de mobilização provocado pela Segunda Guerra, em 1941.
Um tempo de miséria e desmonte
econômico, mas simultaneamente, também, de vigoroso florescimento da
organização social, com expansão do sindicalismo e das ideias socialistas em
todo o mundo.
Foi essa relação de forças que
impôs uma solução heterodoxa para a crise de 29, que hoje seria taxada como
irrealista e intervencionista.
O New Deal estabeleceu a dura
regulação estatal dos mercados financeiros, abriu frentes de trabalho,
multiplicou direitos operários, incentivou a sindicalização em massa, criou
bônus de alimentos, financiou maciçamente a moradia popular e o investimento
público em infraestrutura.
É a ausência dessa mesma
correlação de forças na esfera global e local, bem como das estruturas
organizativas a ela correspondentes, que facilita a dissipação dos reais
interesses em confronto nas eleições presidenciais de outubro próximo.
Se naquela crise se assistiu à
pavimentação do Estado do Bem Estar Social, extraído à fórceps pelas ruas,
nessa o que se verifica é o virulento cerco contra direitos econômicos e
sociais onde quer que eles ainda resistam.
O Brasil, desde 2003 –com todas
as limitações e contradições intrínsecas a um governo de base
heterogênea-- tem figurado aos olhos do
mundo como uma da estacas de resistência à retroescavadeira ortodoxa de
direitos.
O que o conservadorismo sibila nos salões
elegantes –embora Aécio Neves desconverse
à luz do sol-- é a necessidade imperiosa de silenciar esse ruído.
Ou seja, de reconduzir a agenda
do desenvolvimento brasileiro aos fundamentos estritos de sua
autorregulação pelas forças dos mercados
globais.
Não é uma acusação eleitoreira; é
uma operação em marcha promovido por massas de forças ferozes.
Curto e grosso: seu intento é colocar o Estado esfericamente à serviço
dos interesses privados e asfixiar a participação da sociedade para que o
sistema democrático seja integralmente capturado para o mesmo fim.
Os sinais da ofensiva são
noticiados pelo jornalismo abestalhado como evidencias do trunfo conservador.
Tome-se o intercurso entre a
especulação nas bolsas e as pesquisas eleitorais.
O Ibovespa, principal bolsa de
valores do país, assumiu sua condição de palanque de quem promete facilitar a
vida dos endinheirados.
A Bolsa sobe quando Dilma
supostamente cai nas pesquisas; cai quando ela sobe.
Não importa a manipulação no
trato das tendências que mostram forte probabilidade de uma vitória da
candidatura progressista no 1º turno.
Antigamente dava-se a isso o nome
de pouca vergonha.
Hoje dá manchete eufórica.
Recapturar integralmente o Estado
brasileiro, ao que tudo indica, é uma operação de potencial lucrativo tão
elevado que compensa as cenas de aviltamento ético cometidas com não
desprezível dose de sofreguidão pelos atores envolvidos nesse tour de force.
Diante do mutirão galopante,
dizer ‘somos uma democracia, não um
anexo do sistema financeiro’, não é algo desprezível.
Torná-lo uma referência
pertinente de avanços sociais aos olhos da população é que é o desafio.
Juscelino Kubitschek empolgou a
sociedade brasileira nos anos 50/60 transformando Brasília na meta síntese de
uma aspiração por desenvolvimento.
Hoje, a democracia participativa
talvez seja a meta síntese mais consequente para as urgências, demandas e políticas inscritas na proposta
progressista para o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.
Não há exagero e dizer que o
salto da participação popular nas decisões que vão modelar o destino brasileiro
é a ‘Brasília’ desta geração.
Nesse campo, por certo, a
dissimulação conservadora terá dificuldades em fagocitar o discurso
progressista.
Ele tem um ponto de partida
significativo para avançar –o decreto 8.243 que cria a Política Nacional de
Participação Popular; e uma hesitação a vencer: a regulação da mídia.
A ver.
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