terça-feira, 14 de outubro de 2014

ESPORTE E NAÇÃO - A crise do futebol brasileiro


A crise do futebol brasileiro é uma dimensão do dilema da formação nacional, e, como decorrência, seu enfrentamento é indissociável da superação da dupla articulação entre dependência externa e assimetria social


A partida mais extraordinária da Copa do Mundo foi certamente a semifinal contra a Alemanha. Eu entendo que nesse jogo se produziu uma aceleração do tempo histórico, fenômeno que, no terreno da política, caracteriza uma conjuntura revolucionária. Em alguns minutos durante o primeiro tempo condensaram-se as contradições e vulnerabilidades que marcam o futebol brasileiro contemporâneo, televisionadas ao vivo para o Brasil e o mundo.

A seleção começou o jogo mostrando iniciativa, mas também seu próprio limite: quando a bola estava na defesa, a equipe não conseguia conduzi-la ao ataque, o que denunciava a fragilidade do meio-campo, prenunciando um jogo em que o time não controlaria o ritmo. A situação se acelerou a partir do momento em que Marcelo perdeu outra bola, resultando em um gol de bola parada que sintetizou nossas recentes eliminações: em um escanteio como em 1998 (Zidane duas vezes), a bola atravessou a área como em 2010 (Sneijder, que mede 1,70 m, primeiro com o pé e depois de cabeça), para Müller fuzilar solitário, como em 2006 com Thierry Henry. O segundo gol, logo a seguir, levou o time da apatia de 2006 ao descontrole de 2010. Subitamente, o elemento motivacional inerente à ideologia da “Família Felipão” ruiu. E o que sobrou em campo foram as fragilidades emocionais, táticas e técnicas desse grupo.

Em primeiro lugar, as limitações técnicas: Júlio César, encostado no Canadá, não sabe sair do gol; Daniel Alves foi tarde; Maicon chegou tarde; David Luiz precisa entender que não existe salvador da pátria, tanto no futebol como na política; Thiago Silva, o capitão, literalmente deu as costas para o time nos momentos difíceis; Marcelo entregou várias rapaduras e não criou nenhuma; Luiz Gustavo destrói, mas não constrói; Paulinho sumiu; Hulk é o camisa 7 mais grosso que já passou pela seleção; Fernandinho e Ramires tentaram; William não pôde tentar; Oscar foi que nem crédito de filme, apareceu no começo e depois do fim; Bernard, um menino no meio dos alemães; Fred e Jô, todo mundo conhecia; Neymar, após garantir a classificação, faltou três vezes na prova dos nove. Na última, com atestado.

O que essa resenha sumária e provavelmente injusta indica é que, para além das muitas limitações técnicas e táticas do treinador, o Brasil teve um elenco pouco talentoso em comparação com seleções passadas e de outros países. Pode ser sazonal, mas também é plausível que seja um sintoma de que a crise do futebol brasileiro atinge a raiz de sua projeção mundial: a produção de talentos.

Essa constatação problematiza o aspecto técnico mais criticado em Felipão e Parreira, que armaram um time no qual o meio-campo não cultivava a posse de bola nem armava jogadas, resultando em recorrentes “ligações diretas” de iniciativa dos zagueiros. Para todos aqueles que prezam o futebol técnico e valorizam a tradição desse esporte no Brasil, isso significa uma heresia, uma vez que o meio-campo é, ao mesmo tempo, o cérebro e o coração de uma equipe. Historicamente sempre abundaram talentos no meio-campo e no ataque brasileiro, de modo que a seleção de 1970 jogou sem centroavante, e em 1982 Telê Santana foi criticado por insistir em Serginho, no time que tinha Falcão, Sócrates e Zico. Mais recentemente, o “quadrado mágico” não funcionou em 2006, mas era composto por talentos indiscutíveis. Em 2010, pela primeira vez, apresentou-se a defesa como principal trunfo da equipe, e meio-campistas disponíveis foram preteridos em nome de um futebol espelhando seu treinador. Em 2014, no entanto, a seleção convocada foi aceita com quase unanimidade pela imprensa esportiva brasileira, indicando que, diferentemente de outras circunstâncias, não havia muitos outros talentos a serem considerados.

A limitação do elenco foi agravada pela pobreza inventiva da comissão técnica, além de seu atraso técnico e cultural. O descompasso entre jogadores que atuam na Europa e técnicos informados pela realidade futebolística nacional em declínio aguçou-se. Nunca houve alternância de esquema, e as substituições trocavam seis por meia dúzia. Mais além da escalação, para a qual cada brasileiro tem uma ideia própria, preocupou a irritação que emanava do treinador nas entrevistas coletivas, sugerindo que ele próprio sucumbia à pressão, traindo a principal virtude que lhe era atribuída. A incapacidade de liderar uma equipe submetida a expectativas maiores que ela foi escancarada na partida contra a Alemanha, quando os limites técnicos do voluntarismo de Felipão somaram-se à apatia que caracteriza as equipes de Parreira, atingindo o paroxismo.

Leituras da crise: o jornalismo esportivo crítico

Houve diversas chaves de leitura sobre a derrota e a resposta a ser construída. Felipão saiu-se com a noção de “pane”, que corresponde na economia política a leituras que atribuem as crises do capitalismo a fatores conjunturais que, portanto, poderiam ser evitados. Essa perspectiva nem sequer admite a necessidade de alterar o comando técnico da seleção, quanto menos mudanças profundas na condução do esporte nacional.

No extremo oposto, comentaristas esportivos vinculados principalmente à ESPN, que realizou uma cobertura por momentos crítica e corajosa em relação à seleção brasileira, defenderam a tese da “modernização” do futebol. O comando da equipe deveria ser entregue a um técnico estrangeiro, como Guardiola, e mudanças na estrutura de poder do esporte no país seriam necessárias. O caminho seria a profissionalização da gestão esportiva, que é um eufemismo para a ulterior mercantilização do esporte. O horizonte civilizatório dessa proposta é que o país deixe de ser um exportador de jogadores, voltando a ser um produtor de futebol. O clamor por um empresariado esportivo profissional em oposição à cartolagem presente remete à procura de uma burguesia nacional como ator histórico da revolução brasileira.

No contexto atual, a saída empresarial para a crise do futebol brasileiro ressoa o discurso neodesenvolvimentista de ideólogos do petismo, caracterizado por uma retórica descolada do movimento objetivo da realidade. Em consonância com essa perspectiva, o debate nessa emissora sobre a dimensão política da Copa aceitou os termos colocados pelo governo, que por sua vez replicava a visão da Fifa, resumindo-se a avaliar se a Copa deu ou não certo do ponto de vista da infraestrutura. Esse enfoque oculta os nexos entre realização mercantil e exploração do trabalho, insinuando uma identificação entre sucesso mercantil da Copa e interesse nacional, questionável em numerosas dimensões, como fizeram milhares de brasileiros nas ruas. Nessa perspectiva, o sucesso da Copa esteve associado ao silenciamento do protesto popular, cujo espectro esteve sempre presente.

Os comentaristas esportivos progressistas não são alheios às ambiguidades inerentes a uma saída empresarial para o futebol brasileiro, mas são incapazes de radicalizar a crítica, uma dificuldade que permeia o pensamento crítico no país em todas as esferas. Aqueles que defendem a mudança social e conhecem os bastidores do esporte são obrigados a reconhecer que não houve esforço das gestões petistas em modificar o padrão CBF de fazer negócios; ao contrário, houve cumplicidade. O desinteresse do governo federal em mexer nas relações de poder no esporte, brasileiro e mundial, corresponde à sua impotência para modificar a política econômica, as relações de trabalho, a devastação ambiental, a corrupção, entre outras. Em suma, é apenas mais uma expressão do caráter conservador das gestões petistas, que ambicionam fazer do Brasil um global playerna geopolítica contemporânea sem alterar as relações de produção e o padrão de inserção internacional da economia nacional.

Confrontada com a promiscuidade das relações entre PT e CBF, a plataforma modernizadora dos comentaristas críticos foi encolhendo ao longo do debate que eles mesmos estabeleceram, redundando, ao final, em uma discussão em torno de um novo técnico e quem sabe, um novo dirigente. De todo modo, a discussão foi abreviada pela dinâmica da indústria do entretenimento, uma vez que, apesar do protesto de Juca Kfouri e José Trajano, o balanço da Copa foi retirado da pauta no dia seguinte ao final do evento, posto que o Campeonato Brasileiro recomeçaria três dias depois. São os limites do debate crítico em um canal que pertence à Disney.

Futebol brasileiro e formação nacional

Entendo que a crise do futebol brasileiro está ligada à problemática da formação nacional, que se coloca para os países latino-americanos como a necessária superação do legado colonial, consubstanciado na articulação entre dependência externa e assimetria social, como condição para o estabelecimento de sociedades relativamente homogêneas do ponto de vista social, democráticas no plano político, autodeterminadas na esfera econômica e autorreferidas na dimensão cultural. Na história recente, o movimento orientado a assumir o controle sobre o próprio destino retrocedeu dramaticamente, com a generalização de políticas associadas ao neoliberalismo no Brasil e na América Latina a partir dos anos 1990. Os reflexos desse processo sobre o futebol brasileiro resultaram em uma intensificação da exportação de jogadores em detrimento da formação de equipes enraizadas no espaço futebolístico nacional, em consonância com o movimento de exportação de gêneros primários e a desindustrialização que afeta a base produtiva do país. A volatilidade dos times é a expressão, no futebol, da instabilidade que caracteriza o espaço econômico nacional em tempos de dominância do capital financeiro. Em suma, a crise do futebol brasileiro é uma dimensão da crise da própria nação.

Em consonância com esse diagnóstico, a revitalização do futebol brasileiro, assim como o enfrentamento da questão agrária, por exemplo, supõe retomar o processo de formação da nação, o que implica controlar o tempo e o ritmo da inovação social. Do ponto de vista do futebol, esse processo exige, em primeiro lugar, enfrentar a instabilidade que inviabiliza a consolidação de times. Esse propósito pede medidas em dois planos: cercear a penetração do capital estrangeiro no futebol brasileiro, ao mesmo tempo que se criam as condições para o desenvolvimento da cultura futebolística nacional. Altos tributos na venda de atletas para o exterior, tributação sobre os rendimentos auferidos por esse atleta, preferência de compra por clubes nacionais ou sul-americanos e cotas máximas para a exportação anual de jogadores por clube são algumas medidas na primeira direção.

Ideias que estimulam o enraizamento de uma cultura futebolística nacional incluem campeonatos organizados com antecedência e regularidade, em que o interesse do torcedor que frequenta o estádio prevaleça sobre o da televisão. Contratos de trabalho estáveis para técnicos e jogadores e um calendário que respeite o descanso semanal e as férias. Regulamentação de salários máximos e mínimos. Eleição direta do técnico da seleção brasileira, em votação de técnicos e jogadores. Instrumentos que estimulem a competitividade regional e nacional entre os clubes, apoiada em mecanismos distributivos das principais receitas. O processo de concentração de renda e torcida que levou inevitavelmente à conquista de uma Libertadores pelo Corinthians deve ser combatido em nome da competitividade do esporte e da integração nacional, ou regional: afinal, os dilemas que afligem o futebol brasileiro são comuns à Argentina.

É evidente que esse elenco de sugestões, que ocorrem a alguém que não conhece os meandros do futebol profissional, mas enxerga de modo cristalino a conexão entre as dimensões esportiva e social da crise nacional, é incompatível com a atual estrutura de poder que comanda o futebol brasileiro e exigiria sua democratização. Ao subordinarmos a dinâmica do esporte ao interesse nacional, em particular aos jogadores, técnicos e torcedores, podemos antecipar que a relação com a Fifa seria afetada. É desejável aliados em outros países, afinal muitos dos problemas que atingem o futebol contemporâneo, como as contusões por excesso de trabalho, são internacionais. Que jogador gostou de jogar a Copa no Brasil às 13 horas, voando de uma cidade a outra?

Dizer o que precisa ser feito não significa que seja fácil, e sim que existe alternativa. O caminho aqui esboçado se contrapõe à saída empresarial, avançada sob a égide da modernização. Porque a “modernização”, ainda que bem-sucedida, pode resgatar a competitividade da seleção brasileira, na medida em que um treinador europeu organize com sucesso uma equipe de brasileiros, que joguem como europeus. No entanto, pouco fará para restabelecer o futebol brasileiro, que, como sugere Romário, é um patrimônio cultural imaterial do país.

Na perspectiva da formação nacional, Celso Furtado criticou a ideologia da modernização, que definia como a adoção de padrões de consumo sofisticados sem o correspondente processo de acumulação de capital e progresso nos métodos produtivos. Em sua visão, o subdesenvolvimento é caracterizado por um descolamento entre padrão de consumo e base produtiva, enquanto a integração nacional supõe um movimento em sentido contrário: a adequação dos anseios do conjunto da população à sua base material.

Entendo que não há outro caminho para cultivar o futebol nacional, assim como não o há para a própria nação. O Brasileirão nunca será a NBA nem a NFL, embora um campeonato bem jogado certamente atrairá o interesse de telespectadores de outros países. Não é possível um campeonato brasileiro disputado por vinte Real Madrids, já que nem a economia europeia comporta esse padrão. Podemos, porém, ter vinte Borussia Dortmunds: equipes entrosadas e talentosas, que cultivam o futebol nacional de alto nível, em salários compatíveis com a realidade nacional.

Conclusão

A Copa deu certo para a Fifa e o PT: estádios em pé, aeroportos funcionando, turistas se divertindo. Brancos badalando nas arquibancadas, negros sossegados na TV. Nos gramados, jogos disputados e com gols, surpreendendo a todos. E, quando a Copa parecia “dar certo” dentro e fora de campo, produziu-se um desenlace paradoxal e inesperado para os brasileiros, que escancarou uma crise profunda de sua expressão cultural mais querida.

Pode ser que o futebol brasileiro não volte a ser o melhor do mundo, não importa. Tampouco importa ser global player, pois, como canta Noel Rosa, “a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também”. Mas é preciso reviver esse futebol, porque faz parte do viver brasileiro. É a nação que pede passagem.

Este texto foi escrito em memória de Plínio de Arruda Sampaio, craque da política nacional que pediu passagem no momento em que a derrota para a Alemanha acontecia, consumando a associação entre sua trajetória pessoal e a nação brasileira, até no luto.

Fabio Luis

Fabio Luis é professor do curso de Relações Internacionais da Unifesp.


Ilustração: Reuters/Brasil

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