A crise do futebol brasileiro é uma dimensão do dilema da
formação nacional, e, como decorrência, seu enfrentamento é indissociável da
superação da dupla articulação entre dependência externa e assimetria social
por Fabio Luis - http://www.diplomatique.org.br/
A partida mais extraordinária da Copa do Mundo foi
certamente a semifinal contra a Alemanha. Eu entendo que nesse jogo se produziu
uma aceleração do tempo histórico, fenômeno que, no terreno da política,
caracteriza uma conjuntura revolucionária. Em alguns minutos durante o primeiro
tempo condensaram-se as contradições e vulnerabilidades que marcam o futebol
brasileiro contemporâneo, televisionadas ao vivo para o Brasil e o mundo.
A seleção começou o jogo mostrando iniciativa, mas também
seu próprio limite: quando a bola estava na defesa, a equipe não conseguia
conduzi-la ao ataque, o que denunciava a fragilidade do meio-campo,
prenunciando um jogo em que o time não controlaria o ritmo. A situação se
acelerou a partir do momento em que Marcelo perdeu outra bola, resultando em um
gol de bola parada que sintetizou nossas recentes eliminações: em um escanteio
como em 1998 (Zidane duas vezes), a bola atravessou a área como em 2010
(Sneijder, que mede 1,70 m, primeiro com o pé e depois de cabeça), para Müller
fuzilar solitário, como em 2006 com Thierry Henry. O segundo gol, logo a
seguir, levou o time da apatia de 2006 ao descontrole de 2010. Subitamente, o
elemento motivacional inerente à ideologia da “Família Felipão” ruiu. E o que
sobrou em campo foram as fragilidades emocionais, táticas e técnicas desse
grupo.
Em primeiro lugar, as limitações técnicas: Júlio César,
encostado no Canadá, não sabe sair do gol; Daniel Alves foi tarde; Maicon
chegou tarde; David Luiz precisa entender que não existe salvador da pátria,
tanto no futebol como na política; Thiago Silva, o capitão, literalmente deu as
costas para o time nos momentos difíceis; Marcelo entregou várias rapaduras e
não criou nenhuma; Luiz Gustavo destrói, mas não constrói; Paulinho sumiu; Hulk
é o camisa 7 mais grosso que já passou pela seleção; Fernandinho e Ramires
tentaram; William não pôde tentar; Oscar foi que nem crédito de filme, apareceu
no começo e depois do fim; Bernard, um menino no meio dos alemães; Fred e Jô,
todo mundo conhecia; Neymar, após garantir a classificação, faltou três vezes
na prova dos nove. Na última, com atestado.
O que essa resenha sumária e provavelmente injusta indica é
que, para além das muitas limitações técnicas e táticas do treinador, o Brasil
teve um elenco pouco talentoso em comparação com seleções passadas e de outros
países. Pode ser sazonal, mas também é plausível que seja um sintoma de que a
crise do futebol brasileiro atinge a raiz de sua projeção mundial: a produção
de talentos.
Essa constatação problematiza o aspecto técnico mais criticado
em Felipão e Parreira, que armaram um time no qual o meio-campo não cultivava a
posse de bola nem armava jogadas, resultando em recorrentes “ligações diretas”
de iniciativa dos zagueiros. Para todos aqueles que prezam o futebol técnico e
valorizam a tradição desse esporte no Brasil, isso significa uma heresia, uma
vez que o meio-campo é, ao mesmo tempo, o cérebro e o coração de uma equipe.
Historicamente sempre abundaram talentos no meio-campo e no ataque brasileiro,
de modo que a seleção de 1970 jogou sem centroavante, e em 1982 Telê Santana
foi criticado por insistir em Serginho, no time que tinha Falcão, Sócrates e
Zico. Mais recentemente, o “quadrado mágico” não funcionou em 2006, mas era
composto por talentos indiscutíveis. Em 2010, pela primeira vez, apresentou-se
a defesa como principal trunfo da equipe, e meio-campistas disponíveis foram
preteridos em nome de um futebol espelhando seu treinador. Em 2014, no entanto,
a seleção convocada foi aceita com quase unanimidade pela imprensa esportiva brasileira,
indicando que, diferentemente de outras circunstâncias, não havia muitos outros
talentos a serem considerados.
A limitação do elenco foi agravada pela pobreza inventiva da
comissão técnica, além de seu atraso técnico e cultural. O descompasso entre
jogadores que atuam na Europa e técnicos informados pela realidade
futebolística nacional em declínio aguçou-se. Nunca houve alternância de
esquema, e as substituições trocavam seis por meia dúzia. Mais além da
escalação, para a qual cada brasileiro tem uma ideia própria, preocupou a
irritação que emanava do treinador nas entrevistas coletivas, sugerindo que ele
próprio sucumbia à pressão, traindo a principal virtude que lhe era atribuída.
A incapacidade de liderar uma equipe submetida a expectativas maiores que ela
foi escancarada na partida contra a Alemanha, quando os limites técnicos do
voluntarismo de Felipão somaram-se à apatia que caracteriza as equipes de
Parreira, atingindo o paroxismo.
Leituras da crise: o jornalismo esportivo crítico
Houve diversas chaves de leitura sobre a derrota e a
resposta a ser construída. Felipão saiu-se com a noção de “pane”, que
corresponde na economia política a leituras que atribuem as crises do
capitalismo a fatores conjunturais que, portanto, poderiam ser evitados. Essa
perspectiva nem sequer admite a necessidade de alterar o comando técnico da
seleção, quanto menos mudanças profundas na condução do esporte nacional.
No extremo oposto, comentaristas esportivos vinculados
principalmente à ESPN, que realizou uma cobertura por momentos crítica e
corajosa em relação à seleção brasileira, defenderam a tese da “modernização”
do futebol. O comando da equipe deveria ser entregue a um técnico estrangeiro,
como Guardiola, e mudanças na estrutura de poder do esporte no país seriam
necessárias. O caminho seria a profissionalização da gestão esportiva, que é um
eufemismo para a ulterior mercantilização do esporte. O horizonte civilizatório
dessa proposta é que o país deixe de ser um exportador de jogadores, voltando a
ser um produtor de futebol. O clamor por um empresariado esportivo profissional
em oposição à cartolagem presente remete à procura de uma burguesia nacional
como ator histórico da revolução brasileira.
No contexto atual, a saída empresarial para a crise do futebol
brasileiro ressoa o discurso neodesenvolvimentista de ideólogos do petismo,
caracterizado por uma retórica descolada do movimento objetivo da realidade. Em
consonância com essa perspectiva, o debate nessa emissora sobre a dimensão
política da Copa aceitou os termos colocados pelo governo, que por sua vez
replicava a visão da Fifa, resumindo-se a avaliar se a Copa deu ou não certo do
ponto de vista da infraestrutura. Esse enfoque oculta os nexos entre realização
mercantil e exploração do trabalho, insinuando uma identificação entre sucesso
mercantil da Copa e interesse nacional, questionável em numerosas dimensões,
como fizeram milhares de brasileiros nas ruas. Nessa perspectiva, o sucesso da
Copa esteve associado ao silenciamento do protesto popular, cujo espectro
esteve sempre presente.
Os comentaristas esportivos progressistas não são alheios às
ambiguidades inerentes a uma saída empresarial para o futebol brasileiro, mas
são incapazes de radicalizar a crítica, uma dificuldade que permeia o pensamento
crítico no país em todas as esferas. Aqueles que defendem a mudança social e
conhecem os bastidores do esporte são obrigados a reconhecer que não houve
esforço das gestões petistas em modificar o padrão CBF de fazer negócios; ao
contrário, houve cumplicidade. O desinteresse do governo federal em mexer nas
relações de poder no esporte, brasileiro e mundial, corresponde à sua
impotência para modificar a política econômica, as relações de trabalho, a
devastação ambiental, a corrupção, entre outras. Em suma, é apenas mais uma
expressão do caráter conservador das gestões petistas, que ambicionam fazer do
Brasil um global playerna geopolítica contemporânea sem alterar as relações de
produção e o padrão de inserção internacional da economia nacional.
Confrontada com a promiscuidade das relações entre PT e CBF,
a plataforma modernizadora dos comentaristas críticos foi encolhendo ao longo
do debate que eles mesmos estabeleceram, redundando, ao final, em uma discussão
em torno de um novo técnico e quem sabe, um novo dirigente. De todo modo, a
discussão foi abreviada pela dinâmica da indústria do entretenimento, uma vez
que, apesar do protesto de Juca Kfouri e José Trajano, o balanço da Copa foi
retirado da pauta no dia seguinte ao final do evento, posto que o Campeonato
Brasileiro recomeçaria três dias depois. São os limites do debate crítico em um
canal que pertence à Disney.
Futebol brasileiro e formação nacional
Entendo que a crise do futebol brasileiro está ligada à
problemática da formação nacional, que se coloca para os países
latino-americanos como a necessária superação do legado colonial,
consubstanciado na articulação entre dependência externa e assimetria social,
como condição para o estabelecimento de sociedades relativamente homogêneas do
ponto de vista social, democráticas no plano político, autodeterminadas na
esfera econômica e autorreferidas na dimensão cultural. Na história recente, o
movimento orientado a assumir o controle sobre o próprio destino retrocedeu
dramaticamente, com a generalização de políticas associadas ao neoliberalismo
no Brasil e na América Latina a partir dos anos 1990. Os reflexos desse
processo sobre o futebol brasileiro resultaram em uma intensificação da
exportação de jogadores em detrimento da formação de equipes enraizadas no
espaço futebolístico nacional, em consonância com o movimento de exportação de
gêneros primários e a desindustrialização que afeta a base produtiva do país. A
volatilidade dos times é a expressão, no futebol, da instabilidade que
caracteriza o espaço econômico nacional em tempos de dominância do capital
financeiro. Em suma, a crise do futebol brasileiro é uma dimensão da crise da
própria nação.
Em consonância com esse diagnóstico, a revitalização do
futebol brasileiro, assim como o enfrentamento da questão agrária, por exemplo,
supõe retomar o processo de formação da nação, o que implica controlar o tempo
e o ritmo da inovação social. Do ponto de vista do futebol, esse processo
exige, em primeiro lugar, enfrentar a instabilidade que inviabiliza a consolidação
de times. Esse propósito pede medidas em dois planos: cercear a penetração do
capital estrangeiro no futebol brasileiro, ao mesmo tempo que se criam as
condições para o desenvolvimento da cultura futebolística nacional. Altos
tributos na venda de atletas para o exterior, tributação sobre os rendimentos
auferidos por esse atleta, preferência de compra por clubes nacionais ou
sul-americanos e cotas máximas para a exportação anual de jogadores por clube
são algumas medidas na primeira direção.
Ideias que estimulam o enraizamento de uma cultura
futebolística nacional incluem campeonatos organizados com antecedência e
regularidade, em que o interesse do torcedor que frequenta o estádio prevaleça
sobre o da televisão. Contratos de trabalho estáveis para técnicos e jogadores
e um calendário que respeite o descanso semanal e as férias. Regulamentação de
salários máximos e mínimos. Eleição direta do técnico da seleção brasileira, em
votação de técnicos e jogadores. Instrumentos que estimulem a competitividade
regional e nacional entre os clubes, apoiada em mecanismos distributivos das
principais receitas. O processo de concentração de renda e torcida que levou
inevitavelmente à conquista de uma Libertadores pelo Corinthians deve ser
combatido em nome da competitividade do esporte e da integração nacional, ou
regional: afinal, os dilemas que afligem o futebol brasileiro são comuns à
Argentina.
É evidente que esse elenco de sugestões, que ocorrem a
alguém que não conhece os meandros do futebol profissional, mas enxerga de modo
cristalino a conexão entre as dimensões esportiva e social da crise nacional, é
incompatível com a atual estrutura de poder que comanda o futebol brasileiro e
exigiria sua democratização. Ao subordinarmos a dinâmica do esporte ao interesse
nacional, em particular aos jogadores, técnicos e torcedores, podemos antecipar
que a relação com a Fifa seria afetada. É desejável aliados em outros países,
afinal muitos dos problemas que atingem o futebol contemporâneo, como as
contusões por excesso de trabalho, são internacionais. Que jogador gostou de
jogar a Copa no Brasil às 13 horas, voando de uma cidade a outra?
Dizer o que precisa ser feito não significa que seja fácil,
e sim que existe alternativa. O caminho aqui esboçado se contrapõe à saída empresarial,
avançada sob a égide da modernização. Porque a “modernização”, ainda que
bem-sucedida, pode resgatar a competitividade da seleção brasileira, na medida
em que um treinador europeu organize com sucesso uma equipe de brasileiros, que
joguem como europeus. No entanto, pouco fará para restabelecer o futebol
brasileiro, que, como sugere Romário, é um patrimônio cultural imaterial do
país.
Na perspectiva da formação nacional, Celso Furtado criticou
a ideologia da modernização, que definia como a adoção de padrões de consumo
sofisticados sem o correspondente processo de acumulação de capital e progresso
nos métodos produtivos. Em sua visão, o subdesenvolvimento é caracterizado por
um descolamento entre padrão de consumo e base produtiva, enquanto a integração
nacional supõe um movimento em sentido contrário: a adequação dos anseios do
conjunto da população à sua base material.
Entendo que não há outro caminho para cultivar o futebol
nacional, assim como não o há para a própria nação. O Brasileirão nunca será a
NBA nem a NFL, embora um campeonato bem jogado certamente atrairá o interesse
de telespectadores de outros países. Não é possível um campeonato brasileiro
disputado por vinte Real Madrids, já que nem a economia europeia comporta esse
padrão. Podemos, porém, ter vinte Borussia Dortmunds: equipes entrosadas e
talentosas, que cultivam o futebol nacional de alto nível, em salários
compatíveis com a realidade nacional.
Conclusão
A Copa deu certo para a Fifa e o PT: estádios em pé,
aeroportos funcionando, turistas se divertindo. Brancos badalando nas
arquibancadas, negros sossegados na TV. Nos gramados, jogos disputados e com
gols, surpreendendo a todos. E, quando a Copa parecia “dar certo” dentro e fora
de campo, produziu-se um desenlace paradoxal e inesperado para os brasileiros,
que escancarou uma crise profunda de sua expressão cultural mais querida.
Pode ser que o futebol brasileiro não volte a ser o melhor
do mundo, não importa. Tampouco importa ser global player, pois, como canta
Noel Rosa, “a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba
também”. Mas é preciso reviver esse futebol, porque faz parte do viver
brasileiro. É a nação que pede passagem.
Este texto foi escrito em memória de Plínio de Arruda
Sampaio, craque da política nacional que pediu passagem no momento em que a
derrota para a Alemanha acontecia, consumando a associação entre sua trajetória
pessoal e a nação brasileira, até no luto.
Fabio Luis
Fabio Luis é professor do curso de Relações Internacionais
da Unifesp.
Ilustração: Reuters/Brasil
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