A segunda maior
economia da América Latina passa por grave crise relacionada à explosão da
violência
Estamos no México, mas não se trata de uma novela
produzida no país, embora pareça. A hipótese cada vez mais factível de a
segunda chacina em cinco meses, desta vez de 43 estudantes, contar com a
participação direta da polícia levou milhares de mexicanos às ruas em revolta
contra o colapso do sistema de segurança pública, a certeza da impunidade e o
conchavo descarado entre autoridades locais e os cartéis de tráfico de drogas.
Enquanto o presidente Enrique Peña Nieto viajava à
Austrália para participar da reunião dos líderes das 20 maiores economias do
planeta, populares atearam fogo no prédio da Assembleia Legislativa do estado
de Guerrero e na sede do PRI, o partido governista. Aeroportos e rodovias de
grandes centros foram ocupados e os manifestantes chegaram a fazer de refém por
algumas horas, na terça-feira 11, o secretário estadual de Segurança. Trata-se
da maior crise relacionada à explosão da violência na segunda maior economia da
América Latina, com pressão local e internacional, o Vaticano e a ONU
incluídos, para uma investigação minuciosa da morte dos estudantes e o
desbaratamento dos grupos armados e organizados a serviço do tráfico,
responsáveis, desde 2006, segundo a ONG Humans Right Watch (HRW), por 22 mil
cidadãos desaparecidos e 100 mil mortos.
O auge da barbárie deu-se em 26 de setembro em
Iguala, município com pouco mais de 100 mil habitantes localizado a 193
quilômetros ao sul da Cidade do México. De acordo com as autoridades federais,
o prefeito José Luis Abarca Velázquez temia que estudantes da Universidade
Rural Raul Isidro Burgos atrapalhassem o discurso programado para o mesmo dia
pela primeira-dama durante a conferência anual do principal braço assistencialista
do governo federal. Maria de los Ángeles Pineda Villa queria aproveitar o
evento para lançar sua candidatura à sucessão do marido. O sonho político
acabou. Depois de fugir da cidade, a senhora Villa e o prefeito foram
capturados. Estão presos em companhia do chefe de polícia local e outros 70
acusados de planejar e executar a chacina, em conluio com uma das gangues mais
temidas do país, a Guerreros Unidos.
Desde o anúncio de Peña Nieto em fevereiro de 2013
de uma reforma do sistema de educação pública, com apoio da agremiação
governista e dos dois maiores partidos de oposição, o PRD de Velázquez e Villa
e o direitista PAN, professores e estudantes universitários iniciaram uma série
de protestos e greves no México. Os primeiros denunciam a asfixia das escolas
rurais, criadas em sua maioria durante a revolução zapatista, enquanto os
últimos se recusam a ser avaliados por critérios elaborados pelo governo
federal.
Para o protesto de setembro, cem alunos da Raúl
Isidro confiscaram um par de ônibus, prática comum nas ações do movimento
estudantil mexicano, e partiram para Iguala com o objetivo de angariar dinheiro
em prol de novas manifestações. Foram recebidos à bala pela polícia e seis
morreram na hora. Outros 43 foram, apontam as investigações federais, entregues
aos traficantes, que os assassinaram, queimaram seus corpos e tentaram destruir
as evidências do crime. O paradeiro dos outros 51 ainda é desconhecido. Os
protestos subiram de tom na sexta 7, quando o advogado-geral Jesús Murillo
Karam anunciou a descoberta de pedaços de corpos queimados no lixão de uma
cidade próxima, Cocula, possivelmente dos 43 estudantes assassinados. Os
primeiros testes de DNA, realizados por especialistas argentinos, deram
negativo, mas um laboratório na Áustria começa a analisar o material nos
próximos dias.
Em junho, militares mataram 32 cidadãos em Tlataya,
em uma ação na tríplice fronteira dos estados do México, governado por Peña
Nieto antes de assumir a Presidência da República, Guerrero e Michoacán, em um
confronto com os Guerreros Unidos. Dois sobreviventes foram torturados e
forçados a afirmar em juízo que os militares não tinham responsabilidade pelo
massacre e que todos os mortos eram criminosos. “Estas são duas das piores
atrocidades que presenciamos nos últimos anos, mas elas não são, de forma
alguma, cenas isoladas da guerra às drogas. Chacinas, assassinatos e
desaparecimentos refletem um padrão de abuso e são consequência direta do
fracasso das autoridades mexicanas em lidar com o problema”, afirma José Miguel
Vivanco, diretor da Humans Right para as Américas.
O enredo ficou ainda mais complicado para o governo
após a denúncia da jornalista Carmen Aristegui de que o presidente e a
primeira-dama se revezam entre o palácio presidencial e uma mansarda avaliada
em 7 milhões de dólares, registrada em nome do Grupo Higa. Trata-se de uma
empreiteira que abocanhou 652 milhões de dólares em contratos com o Estado do
México durante a administração Peña Nieto, entre 2005 e 2011. Ao assumir a
Presidência do país, anunciou um leilão para a construção de um trem de alta
velocidade entre o Distrito Federal e a cidade de Querétaro. A obra, avaliada
em 3,7 bilhões de dólares, foi arrematada no início do mês por um consórcio
liderado justamente pelo Higa.
Depois da denúncia e em meio ao acirramento dos
protestos populares, o governo federal anunciou a suspensão provisória do
contrato e a primeira-dama afirmou a intenção de comprar a casa ainda neste
ano, com seus próprios recursos. Angélica Rivera, que teria pedido ao arquiteto
um projeto modernista para a residência, com quartos para abrigar os seis
filhos do primeiro casal, de casamentos anteriores, é uma famosa atriz de novelas
mexicanas. Faz sentido.
*Reportagem publicada originalmente na edição 826
de CartaCapital, com o título "Uma novela de segunda"
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