A 'treta' Boechat x Malafaia diz muito sobre nossos
tempos. Freud e Lacan nos ajudam a entender o sentido do que disse Boechat.
Rita Almeida / www.cartamaior.com.br
Freud funda a psicanálise a partir do mal-estar.
Sua grande questão é: o que fazemos com nossos mal-estares? Lacan vai retomar o
tema freudiano para dizer que nosso mal-estar é sempre o da linguagem, já que
ela sempre fracassa na sua tentativa de dar conta do real. Em outras palavras,
a linguagem é sempre falha, equivocada imperfeita e sempre desliza por caminhos
dos quais não temos o controle. Nossos atos falhos – aquilo que dizemos sem
querer dizer ou dizemos sem pensar – demonstram o quanto a linguagem escapa a
qualquer controle racional. A linguagem denuncia o tempo todo nossa falha,
nossa divisão e faz emergir o inconsciente. Quer dizer, por mais que relutemos
em admitir, o inconsciente nos atravessa o tempo todo, ele fala por nós e a
revelia de nós, jogando por terra nossa pretensão de ser um in-divíduo (um ser
sem divisão). Para usar as palavras de Freud: o eu não é o senhor da nossa
casa.
Feito este preambulo gostaria de falar sobre o que
vou chamar de moda do politicamente correto, um dos modos de tentar dar conta
desse mal-estar presente na linguagem. Quando o inconsciente fala, evidenciando
nosso equívoco e nossa divisão, a onda politicamente correta vai tentar fazer
UM reparando a falha. A tentativa é criar um modo correto, verdadeiro ou universal
de melhor dizer alguma coisa, com o objetivo de evitar que o inconsciente
apareça e denuncie aquilo que não queremos admitir: o fracasso da linguagem em
dar conta do real.
O filme Minority Report dirigido por Spielberg, que
já se tornou um clássico, é magnífico para retratar esta forma contemporânea
que inventamos para lidar com nossos mal-estares. Obviamente que de uma forma
mais radical e drástica, a proposta contida no filme é a mesma perseguida pela
polícia politicamente correta, a de que seja possível lidar com o erro
inventando um modo de evitar que ele aconteça. O filme se passa num futuro
próximo no qual seria possível prever e evitar um assassinato antes que ele se
consuma. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu,
porque foi impedido de fazê-lo por uma divisão policial chamada pré-crime.
Entretanto, a suposta infalibilidade do sistema autorizaria a condenação do
sujeito pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Resumindo, o sujeito não
é condenado pelo seu ato, mas pelo seu desejo. E o filme é brilhante nesse
ponto porque está corretíssimo: o que nos põe em perigo, o que nos desconcerta,
que nos tira da razão é mesmo o desejo. É o desejo que nos divide e que emerge
a revelia do nosso controle. O desejo é o diabo!
Não por acaso o lema do pré-crime é: o que nos
mantém seguros também nos mantém livres. Tal como no filme nossa sociedade
também acredita em tal promessa, de que encontraremos a liberdade quando
pudermos nos manter seguros do fracasso, do equívoco e, sobretudo, do desejo. O
mundo ideal que buscamos prevê o apagamento ou o controle total do desejo, o
que é o mesmo que apagar toda a singularidade e, consequentemente, por fim às
diferenças. Visualizamos num mundo de iguais o fim de todo o conflito e a
resposta para todas as nossas mazelas.
Lacan vai dizer que o homem tenta com a linguagem
produzir laço social, e a isso ele chama discurso. O discurso seria, portanto,
toda a tentativa que fazemos para recobrir com a linguagem nossa falha
fundamental e constitutiva. Em outras palavras, é na medida em que não somos UM
(inteiro e perfeito) que precisamos nos relacionar com o OUTRO, fazendo laço,
produzindo discurso.
Dentre as formas discursivas trabalhadas por Lacan
destacaremos a que ele chama de Discurso Universitário para explicar a moda do
politicamente correto. Toda vez que, na tentativa de fazer laço, criamos
normas, regras, métodos, receitas e protocolos, estamos fazendo uso do Discurso
Universitário. Muito presente no discurso religioso fundamentalista, nos livros
de autoajuda, na burocracia, nos preceitos morais, na educação capturada pelos
métodos e na ciência dogmática, o Discurso Universitário privilegia os
enunciados universais que são criados para que todos sejam tratados de maneira
unificada e universalizada, não havendo lugar para as diferenças e as
singularidades. O objetivo seria encontrar uma única verdade que se aplique a
todos a fim de evitar o mal-estar.
Esta perseguição desenfreada por um ideal de
linguagem politicamente correta, livre de qualquer equívoco, é um bom exemplo
do uso do Discurso Universitário, que domina muitos grupos que militam em favor
das chamadas minorias. A justificativa desses grupos é que determinadas formas
de uso da língua são efeito do machismo, do racismo, da homofobia ou de outro
tipo de preconceito e por isso devem ser evitadas ou banidas. É óbvio que se
estamos numa sociedade machista, racista, homofóbica ou preconceituosa nossa
linguagem vai denunciar isso. Mas é exatamente aí que está a beleza do inconsciente.
Na medida em que o desejo ali se faz presente, por mais que tentemos poli-lo
com a razão, ele sempre escapa e nos denuncia. É o inconsciente que não nos
impede de sermos machistas mesmo quando tentamos fazer um discurso contra o
machismo, é o inconsciente que não nos impede de sermos homofóbicos mesmo
quando estamos fazendo um discurso para condenar a homofobia. É isso meus
caros! Não somos unívocos!
Esta semana o jornalista Ricardo Boechat virou
notícia ao fazer uma intervenção inflamada contra o Pastor Silas Malafaia e seu
já tradicional discurso de ódio contra homossexuais. Em programa ao vivo na
rádio BandNewsFM, Boechat notadamente perde a paciência com uma provocação
de Malafaia no tuíter e o aconselha a
“procurar uma rola”.
As manifestações na internet foram imediatas e
junto com aqueles que “lavaram a alma” com o desabafo do jornalista, tivemos
também os que denunciaram a própria fala de Boechat como machista e homofóbica.
“Procurar uma rola” foi considerado um comentário tão equivocado quanto a
postura tradicional de Malafaia para com os homossexuais. Em seguida vieram as
sugestões para banirmos da linguagem comentários e xingamentos deste tipo, que
seriam machistas e que provocariam e ofenderiam minorias sexuais.
É neste ponto que, a meu ver, a moral politicamente
correta se perde na panaceia do Discurso Universitário. Quando ela tenta, tal
como no filme Minority Report, criar um modo de pre-ver e pre-venir o fracasso
da linguagem. O equívoco da linguagem é efeito do inconsciente. (Lembrando que
o inconsciente não é aquilo que está dentro, mas aquilo que já estava lá antes
de nós, o caldo cultural onde fomos mergulhados quando nascemos). Então é ótimo
quando podemos escancarar e denunciar um ato falho para dizer da nossa disjunção,
dos nossos equívocos. Foi isso exatamente que Freud propôs com a invenção da
psicanálise: acessar o inconsciente por meio do equívoco manifesto da nossa
linguagem, que aparece nos atos falhos, nos chistes e sonhos, por exemplo. Mas
ao contrário do Discurso Universitário – presente nas propostas de terapia
comportamental – a psicanálise trabalha pela via do Discurso do Analista. Nesse
sentido ela não se dispõe de silenciar ou adestrar o equívoco, mas fazer o
sujeito trabalhar no seu processo de subjetivação a partir de seus equívocos. A
proposta de Freud seria, então, escutar o equívoco e lhe atribuir valor ao
invés de eliminá-lo.
Já proposta do discurso politicamente correto é
silenciar e adestrar os equívocos. Na tentativa de evitar o conflito que emerge
nessas falhas discursivas, a proposta é apagar as diferenças fazendo com que
todos se submetam a um ideal de linguagem único e universal. Diante do
insuportável de conviver com o desejo na sua diversidade e singularidade, a
saída proposta seria um modelo único de linguagem que nos proteja das nossas
diferenças e que evite os conflitos.
Sendo assim, ao invés da tão sonhada liberdade, o
que o Discurso Universitário consegue é tão somente inventar regras e modelos
que nos aprisionam e endurecem. E como não consegue sucesso em sua proposta que
é a de adestrar o desejo, pois que isso é impossível, tal discurso consegue
apenas semear o medo do conflito. Sob o jugo do Discurso Universitário temos
medo de que tudo o que dissermos se volte contra nós. Resta-nos afastarmos uns
dos outros ou escaparmos por uma tendência muito comum nas redes sociais que é
a nos relacionar apenas com nossos iguais, com nossos guetos, com nossos
partidos, com aqueles que pensam como nós. Vamos progressivamente desaprendendo
a lidar com nossos atos falhos e os dos outros, desaprendemos a debater, a
discutir e a experienciar o conflito, tão saudável e necessário para o nosso
processo de subjetivação. E se não podemos falar a partir de nossas diferenças,
nos resta atacar o outro na sua diferença, com ofensas, ameaças ou em ato. Só
para exemplificar um ato extremo nesta direção, temos o famoso ataque à sede de
Chalie Hebdo por adeptos do fundamentalismo islâmico e cujos atos foram
justificados pela insatisfação destes com as charges de humor publicadas no
jornal, que teciam críticas às religiões islâmicas. Neste caso, não faltou quem
defendesse que o massacre poderia ter sido evitado se os jornalistas tivessem
se esquivado do tema espinhoso da crítica ao Islã. O humor é constante alvo da
polícia politicamente correta, que sempre cobra dele um limite prévio, como se
fosse possível fazer humor sem provocar algum tipo de mal-estar ou
mal-entendido.
Por outro lado, podemos sim nos manifestar contra
os mal-estares da linguagem. É óbvio que podemos destacar o equívoco na fala de
alguém e fazer uma crítica, mas também precisamos estar abertos a escutar
quando o outro denuncia nosso equívoco. É claro que podemos achar uma piada de
mau gosto, mas também podemos acha-la engraçada e nos interrogar por que ela
nos provoca o riso. É claro que podemos optar por excluir um palavrão do nosso
vocabulário na medida em que tomamos consciência do seu sentido implícito. É
claro que podemos travar um debate cara a cara ou virtual, sempre que nossas
diferenças emergirem em nossos discursos, marcados pela singularidade dos
nossos desejos. Perante os equívocos da linguagem, entendo que podemos até
mesmo acionar a justiça, caso os limites legais compartilhados sejam
ultrapassados, por um ou por ambas as partes. O importante é que em todas essas
situações partimos do equívoco, para experimentar e elaborar o conflito, para
lidar com a diferença, escutá-la, se incomodar com ela e sair de nossa zona de
conforto.
Mas o que a polícia politicamente correta pretende
é tentar evitar o equívoco e o conflito antes que ele aconteça e faz isso às
custas da burocratização da linguagem, do empobrecimento dos nossos laços e da
chatice generalizada. E aprisionado no Discurso Universitário o inconsciente
escapa pela única via que lhe resta, a violência. Esquadrinhada pelo excesso de
modelos e regras de como fazer e como dizer, nos tornamos uma sociedade
extremamente careta, quadrada, chata ou violenta.
Existe antídoto pra isso? Acredito que sim. É a
lição freudiana, que é a seguinte: Não há cura para nosso mal-estar, mas por
outro lado podemos atenuá-lo por meio das nossas relações com os outros. A
lição lacaniana é a mesma, mas dita de outro modo: É importante que não nos
aprisionemos em um determinado discurso, a saída é sempre fazê-lo girar. No
caso do Discurso Universitário a saída seria dar um passo atrás em direção ao
Discurso do Analista. Assim sairíamos do campo do Universal para o campo do
singular, do cada um. Dito de outro modo é fundamental considerar que possa
existir uma resposta para uma única situação e que não seja uma resposta
Universal para todas as situações semelhantes.
O caso da “treta” Boechat x Malafaia, vou propor
que façamos tal giro discursivo para escapar das concepções universais do que
significaria “procurar uma rola” e enxerga-la no seu componente singular. Em se
tratando do Malafaia e do discurso de ódio que ele representa e reproduz
“procurar uma rola” poderia, sim, lhe fazer um bem enorme. “Procurar uma rola”
neste caso em particular, significaria fazer com que o referido pastor se
enverede para além de si mesmo, a fim de fazer laço e se permitir ser afetado
pelo outro. Afinal, para “procurar rola” para além de si mesmo, é necessário
admitir que não se tenha, e ninguém melhor para fazer laço do que aquele que
encara sua própria castração, sua limitação. Porque quem aceita sua própria
castração aceita a do outro também.
Por fim, oxalá todos nós nos abríssemos para
“procurar uma rola” nas nossas relações com os outros ao invés de achar que a
possuímos ou que podemos compra-la e fazer uma prótese! Nesses termos, repito o
conselho de Boechat: - Malafaia, meu caro, vá “procurar uma rola”! Isso faria
muito bem a você assim como pode fazer bem a qualquer um de nós.
Créditos da foto: reprodução
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