Dilma
teimou e não cumpriu o script da Folha de cortar os gastos sociais. Ao criar
uma CPMF para garantir a aposentadoria, resgatou o princípio da solidariedade
por:
Saul Leblon / www.cartamaior.com.br
O
óleo da frigideira política fervia na manhã desta segunda-feira.
Estava
tudo pronto para o suicídio.
A
Presidenta da República deveria cumprir o derradeiro capítulo do roteiro que o
conservadorismo prepara meticulosamente para ela, desde a sua vitória nas urnas
em outubro de 2014.
A
precipitada adesão de sua equipe ao diagnóstico do descalabro fiscal, foi o
ponto de partida.
O
arrocho improcedente adotado então, a contrapelo do discurso de campanha, sancionou o clima de juízo final construído
pelo jogral do Brasil aos cacos.
Ao
endossar o alarmismo, o governo reforçou uma espiral autodestrutiva (queda de
receita, juros siderais, queda de investimento, dívida pública em estirão
altista cujo epílogo seria o anúncio suicida de um pacote de arrocho, nesta 2ª
feira.
O
corte na nota de risco do Brasil pela impoluta Standard & Poor’s funcionou
como a ordem unida na dispersão golpista.
Catalisou
a expectativa do tiro de misericórdia.
O
arrocho suicida tornara-se incontornável, urgente, imperativo --faiscava o noticiário isento como as
sentenças de Gilmar Mendes.
Na
véspera da eutanásia, todos ajudaram a ajustar a corda no pescoço presidencial.
A Folha quis roubar a cena.
Com
o exibicionismo característico da frivolidade do seu jornalismo, o diário dos
Frias imitou o dos Marinhos na véspera do golpe de 1964.
O
editorial de domingo, levado à primeira página emparedava a Presidenta da
República na disjuntiva do ultimato: anunciar um ‘arrocho sem precedente, ou
renunciar’.
Parecia
coisa de horas.
O
golpe avançava em cada linha do texto na marcha batida de uma articulação
gordurosamente explícita, na melhor tradição democrática da Marcha com Deus
pela Família e, depois, da faxina patriótica urdida pela OBAN.
Simples
assim: Dilma assumiria um arrocho antissocial, antipopular e antinacional.
Ato
contínuo, sua cabeça –e depois todo o corpo-- despencaria para dentro da
frigideira fervente.
Escorraçada
pelo movimentos sociais, então, ela possivelmente perderia o apoio do próprio
Lula, que já rechaçara a agenda do arrocho, seguidas vezes, na semana anterior.
Sem
chão, nem ar, Dilma despencaria, finalmente no vazio do cadafalso.
O
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, está aí para isso.
O
melhor dos mundos viria em seguida para o golpismo.
A
vítima fez o serviço sujo (por eles exigido, mas temido) e saiu da cena em
seguida.
É
ruim?
A
manhã prevista para ser apoteótica, porém, de repente teimou em desandar.
O
cheiro de óleo fervente cedeu lugar ao de fio queimado.
O
curto circuito aos poucos se derramou em manchetes impacientes, incrédulas –irritadiças, melhor
dizendo.
A
moça do Painel da Folha, casada com o rapaz da Veja, aquele que se licenciou da
revista para servir mais diretamente à campanha de Aécio em 2014, soou o alarme
vermelho.
Em
nota extraordinária às 6:23 da manhã, na Folhaonline, alertou a tropa ainda
sonolenta:
‘Insistência
de Dilma em poupar o social dificulta o corte de mais de R$ 20 bilhões’, dizia
a manchete. E a impaciência se derramava pelo texto a escandir desdém e
irritação com a teimosia em ignorar o editorial do dia anterior: ‘Não, não e
não; a maior dificuldade de fechar no fim de semana a lista de cortes de
despesas do governo federal é que Dilma Rousseff ainda se mostrava inflexível
na determinação de preservar os programas sociais. A presidente não admitia
reduzir dotações ... ---‘mesmo para programas de menos visibilidade’,
indignava-se.
A
irritação foi num crescendo ao longo dia e com o passar das horas.
Replicada
na mesma toada em diferentes veículos (‘mas como, ela resiste?’) atingiu o auge do desrespeito no final da
tarde, quando o anticlímax explodiu no espetáculo grotesco da entrevista
coletiva concedida pelos ministros Joaquim Levy e Nelson Barbosa para explicar
as medidas.
Jornalistas
(sic) cobravam do ortodoxo Levy o porquê de um pacote tão brando em relação aos
‘gastos’ sociais. Uma moçoila adestrada na vassalagem à pauta da hora –qualquer
pauta-- foi às vias de fato com o Bolsa Família, inexplicavelmente poupado das
tesouradas, segundo a sua douta avaliação.
Nessa
hora, mesmo as orelhas amigáveis do impassível Levy, esboçaram um tique de
estupefação.
O
fracasso da operação ‘Dilma, de hoje não passa’ tornou pedagogicamente
explícita a qualidade do material humano produzido nas redações atualmente.
O
fato é que Dilma passou.
O
ajuste que o Brasil precisa para retomar seu crescimento, evidentemente, não é
esse que tanta decepção causa a repórteres ansiosas por razões opostas.
O
país vive um divisor histórico.
É
mais que uma pauta.
O
ajuste da retomada econômica brasileira requer uma repactuação política do
desenvolvimento.
Não
é obra para Levy.
É
desafio para uma articulação social dotada de força e consentimento para
impulsionar o passo seguinte da nossa história.
Coisa
só cabível se liderada por uma frente popular, ainda em formação.
O
que tanta irritação causou no golpismo é que o pacote de Dilma ganha tempo para
que esse instrumento político avance.
Mais
que isso: não se contrapõe a esse estirão. E ao não se opor reabre espaço, por
exemplo, para um protagonismo ativo de Lula antes emparedado, mas agora
liberado em duas frentes articuladas.
Cabe
a ele atuar para conseguir a aprovação do ajuste no Congresso, mas faze-lo
arregimentando, simultaneamente, base social para um segundo estirão de medidas
destinadas a pactuar garantias de emprego, controle da inflação, barateamento
do crédito, retomada das grandes obras públicas, capitalização da Petrobras
(contra a entrega do pre-sal) e a taxação da riqueza financeira, entre outras
providências que Dilma sozinha simplesmente não tem como abraçar.
O
ajuste anunciado na segunda feira, repita-se, não é isso.
Mas
ganha tempo para isso na medida em que tira o governo do corner em que se
encontrava por conta do cerco golpista e de seus próprios erros.
O
golpismo não teve o que queria, cobrado pela Folha com requintes de amadorismo
e petulância, típicos de uma redação de segundo escalão em que se converteu o
jornal que um dia teve Antonio Callado e Otto Lara Resende como colunistas.
Dilma
teimou e não arrochou como estava escrito no script que lhe foi enviado como
ultimato público, na manhã de domingo.
Com
isso dificultou –ou pelo menos adiou- a operação golpista.
O
governo realocou fontes de recursos no valor de R$ 8,6 bilhões mas não cortou ‘na carne’, as áreas
da Saúde e no Minha Casa e manteve intacto o Bolsa Família, para desgosto
profissional e político da Folha e da Veja, que ‘antecipou’ a tesourada no
programa.
Mais
que isso.
Dilma
devolveu a batata quente, fervendo, às mãos do conservadorismo ao criar uma
CPMF de 0,2% para garantir a aposentadoria dos velhinhos.
Quem
vai vetar um imposto financeiro para a aposentadoria dos velhinhos?
Quem
vai rechaçar a consagração do princípio da solidariedade no cuidado dos idosos?
Aécio
Neves, por exemplo.
Em
demonstração explícita do nível político e cognitivo do conservadorismo, o
tucano caiu de boca na isca lançada habilmente por Dilma.
Em
nota apressada para satisfazer a varanda gourmet e o tanquinho de areia de kim
catupiry & imberbes ultraneoliberalis, o candidato da derrota conservadora
em 2014 afirmou: a) é 'inaceitável'
taxar ganhos de capital (em vendas de imóveis acima de R$ 1,5 milhão); b)
inaceitável igualmente para ele é a CPMF, que fortalece o princípio segundo o
qual toda a sociedade é responsável pelo amparo à velhice.
O
conceito de solidariedade nasceu com a Revolução Francesa, em 1789, mas ainda
não chegou ao mecanismo da gente polida do PSDB.
O
uivo pioneiro do tucano estendeu-se pelos telejornais noite adentro da
segunda-feira; e amanheceu quase rouco nas manchetes idôneas da terça-feira.
Estropiado
com o revés, o colunismo aposta na guerra porta a porta no Congresso para
reverter a ducha fria em que se transformou o encontro programado entre a
guilhotina e o pescoço de Dilma Roussef.
A
nova CPMF, com alíquota de 0,2% --assim
rebaixada para permitir que governadores e prefeitos pressionem o Congresso a
elevar o percentual em benefício dos demais orçamentos federativos-- destinará
R$ 32 bilhões por ano ao idoso e ao pensionista.
Corrige-se
assim, por vias tortas, uma inconstitucionalidade sedimentada contra o espírito
da Carta de 1988 .
A
‘lamparina dos desgraçados’, como a classificou Ulysses Guimarães, consagrou a
responsabilidade compartilhada de todo o corpo social no cuidado dos mais
frágeis, os idosos entre eles.
A
Constituinte de 1987 endossaria assim, a contrapelo da ascensão neoliberal em
marcha naquele momento, o ‘espírito de
45’, como diria Ken Loach, do direito
universal ao bem-estar e à segurança social.
Trata-se
de algo muito distinto da privatização que transforma direitos em serviços pagos. Ou desse remendo que se adotou
na prática no país, em que as despesas da previdência rural e urbana passaram a
ser cobertas integralmente com a receita das contribuições individuais.
Não
é uma questão semântica.
É
uma escolha em relação à sociedade que se quer construir com o esforço do
desenvolvimento econômico.
Cada
vez mais, com o envelhecimento demográfico, o Brasil será chamado a fazer
escolhas nessa direção tendo a sorte e o destino dos idosos como esfinge a
decifrar.
Não
por acaso, o colunismo isento (ideológico são os blogueiros) tem piscado
diuturnamente sua nova ordem unida: ‘a Constituição de 1988 não cabe no
equilíbrio fiscal’.
Em
linguagem cifrada o que se está dizendo é que os pobres não cabem na sociedade,
sobretudo quando são crianças, doentes ou velhos. Enfim, quando não servíveis
no modo mão de obra barata.
A
senha reflete uma determinação de blindar o privilégio das elites e
endinheirados.
O
conjunto dos benefícios que hoje compõem o sistema de Seguridade Social
brasileira (aposentadorias, pensões, benefícios, assistência social, Bolsa
Família, seguro desemprego, entre outros) é uma ameaça ao cofres recheados.
A
sustentação dessa rede de proteção social exige romper o privilégio tributário
atual, em que os ricos, os acionistas, bancos e
rentistas pagam menos IR que os
assalariados da classe média, e que os pobres, via consumo.
A
Seguridade Social acolhe direta ou indiretamente (filhos e dependentes), a
metade da população brasileira.
São
cerca de 100 milhões de homens, mulheres e crianças, a metade mais pobre da
nação, que de outro modo vegetaria no degredo, como refugiado dentro do próprio
país.
Ao
olhar conservador, repugna a 'escala insustentável do assistencialismo'.
Transformar
pobres em cidadão, porém, pode significar outra coisa muito distinta daquilo
que se dardeja como ‘gastança’.
Cerca
de 2/3 dos pagamentos da seguridade social no país estão indexados ao salário
mínimo.
Seu
poder de compra aumentou cerca de 60%, acima da inflação, nos últimos 12 anos.
É
caro? Sim.
Mas
um inédito mercado de massa emergiu do cruzamento entre essas duas curvas desde
2003, com desdobramentos sabidos na geografia da produção e do consumo.
O
desequilíbrio cambial vazou um pedaço desse trunfo para as fábricas e empregos
asiáticos, na forma de importações.
O
furo está sendo calafetado, algo tardiamente para a industrialização, com uma
desvalorização cambial de quase 50% em nove meses.
Visto
assim da ponte do desassombro, o panorama ajuda a entender por que as medidas
desta segunda-feira decepcionaram tanto o jornalismo isento.
Não
se omita o erro no acerto: há lacunas, contradições e limites no que foi
anunciado.
Adiar
o reajuste do funcionalismo (R$ 7 bilhões) , por exemplo. Essa concessão ao
jogral do ‘Estado mínimo’ poderia ser evitada
com maior progressividade no IR, atingindo o núcleo duro da riqueza no país.
Não
está descartada a possibilidade, porém.
O
pacote de 2ª feira apenas tirou o
governo da guilhotina.
Ao
fazê-lo, reabriu o trânsito na enorme avenida da repactuação do desenvolvimento
brasileiro.
Cabe
à construção de uma frente popular democrática providenciar a mudança na
correlação de forças existente.
Somente
assim a democracia social ganhará a envergadura necessária para ser o GPS
hegemônico do novo ciclo de expansão do país.
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