Contra
a corrupção, os ditames da burocracia europeia e os grandes projetos inúteis: a
multiplicidade das mobilizações contrasta com o sentimento de impotência
política. Como juntar batalhas particulares em uma luta coletiva? Cultivando
uma forma renovada de populismo, sugere o intelectual argentino Ernesto Laclau
por Razmig
Keucheyan, Renaud Lambert // http://www.diplomatique.org.br/
Por
que eles conseguiram e nós não? Desde o surgimento do Podemos na Espanha, o
tema ronda a esquerda radical. Ao serem questionados sobre isso, os dirigentes
da jovem formação espanhola explicam de bom grado as razões da escolha de um
populismo assumido, alimentado pelos trabalhos do intelectual argentino Ernesto
Laclau (1935-2014) – ex-estudante de Oxford e professor de Teoria Política na
Universidade Britânica de Essex, entre 1973 e 1997. Essa opção facilitou uma
singular oportunidade: a capacidade de se apropriar da natureza proteiforme das
reivindicações ligadas ao movimento do 15-M (15 de maio, essa imensa
mobilização popular que começou em 2011) para recuperar a noção de interesse
geral. A iniciativa, contudo, vem acompanhada de diversos questionamentos.
Em
1985, Laclau publicou Hégémonie et stratégie socialiste,1 em coautoria com a
filósofa belga Chantal Mouffe, sua esposa. O ensaio – cuja erudição explicita
um saber universitário muitas vezes indigesto – nasceu de uma constatação: os
“fracassos” da experiência soviética e a emergência de novos movimentos sociais
(feminismo, lutas de minorias étnicas, nacionais e sexuais, oposição à energia
nuclear etc.) teriam agravado as crises da esquerda. Superá-las implicaria
resolver, enfim, um debate que se desenrola há mais de um século: as
“categorias do marxismo” são realmente aplicáveis às sociedades contemporâneas?
Não,
respondem diretamente os autores. Se a organização da sociedade e as lutas que
ocorrem atualmente dependessem efetivamente de dados puramente sociológicos,
argumentam a filósofa e seu marido, “não haveria lugar para a política como
atividade autônoma”. Apesar de sua infinita diversidade (e divisões sobre essa
questão), o marxismo teria como marca comum em todas as suas vertentes o
“‘essencialismo de classe’, segundo o qual as identidades políticas dependem da
posição dos agentes sociais nas relações de produção”, resume Mouffe em um
livro de diálogos (publicado em 2015) com o secretário político do Podemos,
Iñigo Errejón.2
Para
os dois autores, as classes não existem para além de uma “luta” que as opõe.
“Estereotipada”, a fórmula seria ainda “quase esvaziada de seu sentido”.3 As
identidades políticas não decorreriam de relações econômicas e sociais
concretas, e sim unicamente de construções forjadas pelos “discursos”. Sobre o
peso dos meios de comunicação na produção desses discursos, contudo, os autores
não dizem nada. Apesar de desenvolverem uma reflexão sobre o papel político
determinante dos meios de comunicação de massa nas democracias, Laclau e Mouffe
evocam o tema apenas para marcar sua capacidade de “abalar profundamente as
identidades tradicionais” e construir a “democratização cultural”.
Com
a noção de classe esvaziada e a centralização do discurso no jogo político, o
campo estaria livre para a estratégia que desenha Laclau em seu segundo livro,
La Raison populiste [A razão populista], publicado em 2005.
Segundo
o intelectual argentino, o populismo corresponde a uma configuração especial
das sociedades. Em tempos normais, os diferentes setores sociais interagiriam
com o Estado para reivindicar especificidades de suas categorias: professores
se manifestariam por salas de aula com menos estudantes, pequenos artesãos
pediriam a diminuição de sua carga fiscal, ecologistas se concentrariam na luta
contra a mudança climática, enquanto surgiriam movimentos que sugeririam
começar por mudanças na Constituição etc. Laclau fala da “lógica da diferença”.
UM
PRODUTO DO PERONISMO
Quando
o poder se recusa a (ou não pode) dar respostas a essas interpelações variadas
– sem necessariamente haver ligação umas com as outras –, o que acontece é “o
estabelecimento de uma série de relações de equivalência entre elas”. As
diferenças entre esses movimentos tornam-se menos marcadas e logo aparece uma
palavra de ordem capaz de encarnar, ao mesmo tempo, o conjunto dos protestos.
Quando o Terceiro Estado irrompeu no cenário político da Revolução Francesa,
por exemplo, ele não reivindicou apenas um lugar na ordem existente; ele abalou
a própria noção de Estado ao mesmo tempo que se apresentou como um verdadeiro
depositário de legitimidade nacional. Na perspectiva de Laclau, o Terceiro
Estado falaria em nome de toda a sociedade, e não apenas daqueles que
representava diretamente.
Sem
hesitar ao sugerirem que dão continuidade à reflexão do intelectual sardo
Antonio Gramsci4 com “conclusões às quais ele teria chegado se estivesse vivo
até agora [sic]”,5 Laclau e Mouffe pontuam: “Essa relação, pela qual certa
particularidade assume a representação de uma universalidade incomensurável, é
o que chamamos de relação hegemônica”. O fenômeno transformaria, de uma hora
para outra, a “plebe” (uma população fragmentada) em “povo”: um “nós” que
encontraria a unidade na luta que opõe os setores contra o poder estabelecido,
“eles”.
Como
todos os intelectuais, Laclau é produto de uma história: antes de qualquer
outra, a Argentina, e particularmente o peronismo, fenômeno político
considerado um exemplo clássico de populismo ao qual se referem, com a mesma
facilidade, dirigentes de esquerda e neoliberais.6 Próximo a Jorge Abelardo
Ramos, uma figura do peronismo progressista, o jovem Laclau militava no seio da
esquerda revolucionária nacional. Algumas décadas depois, apoiou ativamente os
governos, também progressistas, de Néstor Kirchner (2003-2007) e depois os da
esposa deste, Cristina (no poder desde 2007).
Laclau
também sofreu influência dos pensadores pós-estruturalistas franceses. “Era a
época em que autores como Michel Foucault, Jacques Lacan e Jacques Derrida se
tornaram importantes”, conta Mouffe em diálogo com Errejón. “Esses trabalhos
nos ofereceram ferramentas teóricas que permitiram [...] elaborar uma concepção
do mundo social como espaço discursivo, produto de articulações políticas
contingentes, não necessárias, que puderam se apresentar de outra forma.”
Ao
insistir na “não fixidade” como “condição de toda identidade social”, ambos os
autores se propõem a superar um dos obstáculos dessa corrente de pensamento.
Levada ao extremo, a lógica que visa “desconstruir” as identidades poderia
conduzir a um impasse: a ação política se tornaria problemática porque
implicaria forjar categorias gerais a priori incompatíveis com o respeito pela
diversidade de temas. “Nossa contribuição é unir o pós-estruturalismo e o
pensamento de Gramsci. Reconhecer a existência da diversidade de lutas não é
suficiente, seria preciso tentar uni-las. [...] Avançamos na ideia de que, para
poder agir politicamente, seria preciso articular essas diferentes lutas e
criar vontades coletivas”, continua Mouffe em seu diálogo com Errejón. Em outros
termos, o mecanismo de equivalência permitiria superar a oposição entre
identidade e universal.
Trinta
anos depois, o secretário político do Podemos conclui que o interesse do livro
mudou: se por um lado convida a esquerda a “renunciar ao discurso universal”,
seu interesse residiria menos na crítica do essencialismo que na crítica,
implícita, de um “pós-modernismo estéril” – segundo o qual tudo é válido porque
existem tantas realidades quanto indivíduos. “O espírito da época evoluiu a tal
ponto que atualmente o livro permite, na perspectiva oposta, defender a ideia
de que o interesse geral existe sim, apesar das dispersões e fragmentações da
sociedade”.7
Para
funcionar, essa “superação populista” das diferenças exigiria de um lado um
chefe, um “líder”, capaz de encarnar cada uma das reivindicações; e, de outro,
a disponibilidade de “significantes vazios”, símbolos, linguagens ou outros
elementos que pudessem ser apropriados com sentidos diversos. Laclau admite
sobre si mesmo: o populismo implica certo grau de indeterminação ou de fluidez
política. A emergência do “povo” adquire aqui uma dimensão miraculosa. E
precária: pela construção, os momentos de equivalência (a convergência
temporária de diversos particularismos) estão destinados a desaparecer.
Da
mesma forma, a heterogeneidade do mundo desenhado por Laclau não lhe permite
identificar aquilo contra o que “o povo” se organizaria. Falar em la casta (a
casta), como faz o Podemos, permitirá realmente distinguir a responsabilidade
dos diferentes setores que a compõem na crise espanhola? A indeterminação do
termo se coloca como um obstáculo à análise das alianças táticas com algumas de
suas frações. Como constatou o Podemos durante as eleições municipais de maio,8
a questão é relevante, a não ser na hipótese de o movimento tornar-se
imediatamente majoritário.
No
entanto, a injunção de Laclau em rejeitar qualquer forma de jacobinismo reflete
também o esforço de uma parte da esquerda de reabilitar a ideia de um
socialismo livre da herança da experiência soviética. Os autores de Hégémonie
et stratégie socialiste denunciam o leninismo – apesar de sensíveis à
importância do combate político – como intrinsecamente autoritário e
responsável por um “empobrecimento considerável do campo da diversidade
marxiana”. Resumir a luta social a duas forças entre as quais uma sai vitoriosa
sobre a outra consistiria, para eles, uma “tentativa totalitária” de deixar
passar por alto o caráter constitutivo dos antagonismos na sociedade e de
“negar a pluralidade para restaurar a unidade”. Dessa forma, “a tarefa da
esquerda não pode ser renunciar à ideologia liberal-democrática [a da defesa e
da satisfação dos direitos individuais], mas, ao contrário, aprofundá-la e
estendê-la na direção de uma democracia radical e plural”. Certos socialistas
consideram que a democracia não é o meio, e sim o resultado. Para Laclau, é o
contrário: a democracia é o ponto de partida da estratégia socialista.
Permanece
a questão do ponto de chegada. Laclau se mostra pouco eloquente sobre a etapa
que se segue à vitória – eleitoral, por exemplo. Apesar de sua derrota ser
evocada, o sistema capitalista não é objeto de uma análise profunda, assim como
sua capacidade de contaminar todas as esferas da vida social. Difícil imaginar
as alternativas vislumbradas por Laclau. Sem as ferramentas de análise de
classe, os projetos que visam construir “outro mundo” permanecem vagos. Crítico
dessa perspectiva, o cientista político britânico Andrew Gamble vai mais longe:
“Retira-se a noção de classes, e o socialismo se funde com o liberalismo”.9
Se
por um lado Laclau descreve habilmente esses momentos de efervescência política
em que um líder é capaz de mobilizar setores importantes de uma população, por
outro abandona a questão da inscrição da emancipação no tempo e nas instituições
democráticas novas. Ou quais organizações colocariam em prática as
transformações sociais implicadas em satisfazer as reivindicações de redes de
equivalência? Que alianças momentâneas deveriam ser reativadas? Experiências de
partidos “populistas” demonstram que, ao escamotear qualquer interferência
entre “líder” e “povo”, essas formações facilitam os desvios mais aventureiros.
FLUIDEZ
PROGRAMÁTICA
Uma
reflexão sobre as instituições permitiria igualmente constatar que algumas
formas de “populismo” eficazes na América Latina – onde as instituições da
democracia representativa são recentes, e os Estados, pouco construídos – não
seriam necessariamente eficazes também em países de tradições democráticas mais
antigas.
Na
Espanha, a aposta de Podemos consiste, sem dúvida, em conservar essa fluidez
programática. Professores de Ciência Política, os dirigentes da formação
analisaram o impacto do desenvolvimento da sociedade espanhola desde meados da
década de 1980. Inúmeros filhos de operários chegaram à universidade e já não
se identificam com a origem social de seus pais, apesar de a geração mais nova
viver pior que a anterior. A constatação dessa já conhecida confusão de classe
sem dúvida conduziu o Podemos a privilegiar a construção do referencial “povo”
antes de quaisquer outros, mesmo que esses outros pudessem ser mais justos de
um ponto de vista sociológico.
Uma
vez o “povo” constituído, contudo, como organizar as prioridades de forma a
contemplar as reivindicações às vezes contraditórias dos professores, artesãos
e ecologistas citados anteriormente? A decisão (questionada) do partido de
apoiar o plano de “auxílio” à Grécia, formulado no dia 13 de julho último,10
teria sido possível com um projeto ideológico mais sólido?
Em
um momento em que o movimento operário está fragilizado e a maior parte dos
movimentos sociais está recuada, Laclau dotou o Podemos de ferramentas
retóricas que encontraram eco na sociedade espanhola. Mas os dirigentes do
jovem partido não estão equivocados ao sublinhar que o sucesso da agrupação se
explica principalmente pela singularidade do contexto em que se inscrevem: o de
um fracasso econômico somado a uma crise política; o da emergência do movimento
potente do 15-M. Sem dúvida, é sobre esse aspecto – o contexto – que deveriam
se debruçar todos aqueles que quiserem seguir os passos do Podemos.
Razmig
Keucheyan
Conferencista
de Sociologia da Universidade Paris-Sorbonne
Renaud
Lambert é jornalista.
Ilustração:
Otra Vuelta de Tuerka
1 Ernesto Laclau e Chantal Mouffe,
Hégémonie et stratégie socialiste. Vers une politique démocratique radicale
[Hegemonia e estratégia socialista. Rumo a uma política democrática radical],
Les Solitaires Intempestifs, Paris, 2009. Salvo indicação contrária, todas as
citações foram extraídas dessa obra.
2 Iñigo Errejón e Chantal Mouffe,
Construir pueblo. Hegemonía y radicalización de la democracia [Construir povo.
Hegemonia e radicalização da democracia], Icaria Editorial, Barcelona, 2015.
3 Ernesto Laclau, La Raison
populiste [A razão populista], Seuil, Paris, 2005.
4 Ler Razmig Keucheyan, “Gramsci,
une pensée devenue monde” [Gramsci, um pensamento que se tornou mundo], Le
Monde diplomatique, jul. 2012.
5 Construir pueblo, op.cit.
6 Juan Domingo Perón foi presidente
da Argentina de junho de 1946 a setembro de 1955 e depois de outubro de 1973 a
julho de 1974.
7 Construir pueblo, op.cit.
8 Ler Pablo Iglesias, “Podemos,
‘notre stratégie’” [Podemos, nossa estratégia], Le Monde diplomatique, jul.
2015.
9 Andrew Gamble, “Class politics and
radical democracy” [Políticas de classe e democracia radical], New Left Review,
Londres, jul.-ago. 1987.
10 Ler Yanis Varoufakis, “Leur seul objectif
était de nous humilier” [O único objetivo deles era nos humilhar], Le Monde
diplomatique, ago. 2015.
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