Verificam-se mudanças nos próprios sentidos e conteúdos da palavra
política. Ela foi deixando de designar o domínio da ação do poder legítimo de
organizar a vida coletiva e passou a ser associada à função de gerir as
condições para o exercício de um poder que lhe é superior, o poder financeiro –
como vimos na Grécia
por Henri Acselrad / http://www.diplomatique.org.br/
Num documento redigido no exílio, em 1972, Betinho discutia as
dificuldades da ação política em condições de clandestinidade: “Ao se
restringirem as possibilidades de viver direta e amplamente as situações onde
as lutas, as reivindicações, a prática social se manifestavam, operou-se um
distanciamento, às vezes até um desligamento da sociedade enquanto objeto de
conhecimento, daí originando-se situações de refração, de distorção onde
aparecem ‘substitutos’ dessa realidade”.1 Isolamento e dessintonia foram
imagens frequentemente mencionadas para descrever, no Brasil, a dificuldade de
a militância contra a ditadura fazer “a realidade política aparecer” ou
torná-la transparente, permitindo à sociedade entrar na “cena política real”.
Essas imagens procuravam exprimir a perda de sentido do real por parte dos
militantes: “faltava a realidade, faltava a política”; “a realidade política
desapareceu”. Hannah Arendt já assinalara como ser privado da liberdade de
expressão e de meios de discussão significa “ser privado da realidade”.2
No entanto, se as organizações que combatiam a ditadura dispunham de
conhecimentos limitados para formular suas estratégias, é importante não
esquecer que essa situação afetava, à época, a sociedade em seu conjunto. A
censura à imprensa e o empobrecimento do debate público geravam um manto de
obscuridade sobre esse “real”. Todos foram então, de algum modo, obrigados a
conviver com “substitutos do real”. É que toda fala crítica ao regime de exceção,
quando expressa em lugar público, era considerada suspeita: um comentário
questionador efetuado diante de uma banca de jornal podia ser visto como
provocação policial. O silenciamento da vida política foi sendo internalizado –
“não se falava de política com desconhecidos”. A própria militância, por sua
vez, devia vigiar-se para, ao evocar questões políticas em espaços públicos,
não ser confundida com policiais provocadores. Eis o que podemos chamar de
“paradoxo da clandestinidade”: se, por um lado, o povo silenciava sua fala
política, referindo-se apenas a “como a vida estava difícil”, os próprios
opositores ao regime viam-se levados a restringir sua fala, prevenindo-se de
serem confundidos com agentes provocadores.
Foi assim que a grande política transformadora, aquela investida no
questionamento das estruturas orgânicas econômico-sociais vigentes,teve de se
abrigar na clandestinidade, tornando-se pouco visível. A “pequena política” –
aquela que se restringia à administração cotidiana de estruturas já
estabelecidas –, por sua vez, apequenou-se ainda mais, submetida ao poder de
exceção. Com a destruição das instituições da democracia formal, no âmbito do
sistema político controlado pelo aparato burocrático do autoritarismo, a
política “encolheu”. A palavra transformadora não pôde mais se fazer audível na
esfera pública, passando a ser sussurrada em espaços privados e semipúblicos
ou, então, buscando sua audiência por meio das irrupções violentas e
episódicas, mediadas pelas ações armadas de oposição ao regime.
O espaço do exercício da política, nas condições excepcionais do
arbítrio, desviou-se para as margens, ao custo de ter de fazer-se por “sinais
de fumaça”, metáfora utilizada pelo militante Herbert Daniel para descrever a
prática corrente a que os clandestinos se viam obrigados – de, por razões de
segurança, queimar papéis contendo anotações e ideias. A fala política fora,
pelo poder do arbítrio, substancialmente emudecida, ainda que a força crítica
da militância subterrânea não deixasse de emitir seus sinais.
A política passava a se exercer em espaços frágeis, lugares onde as
conversas poderiam veladamente introduzir e exercitar alguma reflexão crítica
no seio da vida cotidiana. Isso porque, em regimes autoritários, a circulação
do debate político é obrigada a restringir-se a enclaves que operam como micro
públicos, contra espaços, esferas de autonomia e interstícios da vida social
que podem propiciar atividades de resistência, formação e mobilização de redes
de apoio à luta contra o arbítrio.
Em contexto de liberdade de expressão, as arenas públicas são os
espaços onde atores sociais definem e discutem situações percebidas como
problemáticas. A restrição à constituição de tais arenas é constante nas
sociedades que vivem sob o autoritarismo. A forma “comício relâmpago”, por
exemplo, realizada com frequência por organizações clandestinas nos “anos de
chumbo”, fazia o que não podia ser objeto de contestação no espaço público
oficial e vigiado ser, de algum modo, debatido. O movimento em direção a uma micro
arena pública emergente, porém, era com frequência abortado, deixando de se
constituir. As ditaduras operam um movimento permanente de destruição de tais
arenas públicas emergentes, seja pela censura à imprensa, a dissolução de
organizações populares, o encarceramento de críticos e oponentes, a exposição
exibicionista do poder arbitrário da máquina repressiva ou a internalização do
medo em larga escala na população.
O poder arbitrário, ao mesmo tempo que estreitava o espaço do debate
público, promovia uma degradação do sentido das palavras: a quebra da
legalidade democrática foi feita em nome da democracia; a censura foi
justificada como requisito da proteção da liberdade; a produção cultural foi
cerceada a pretexto da defesa de valores; a justiça era encenada em tribunais
militares de exceção que pretendiam encarnar uma suposta legalidade; um
simulacro de Congresso operava sob a ameaça permanente de cassações de mandato.
Foi ao longo dessa escalada obscurantista que se lançou na ilegalidade
o contingente mais substantivo de opositores que procuravam reinventar espaços
para a política, redefinindo suas identidades, pertencimentos e modos de ação.
As organizações clandestinas constituíram formas políticas que experimentaram
dramaticamente os efeitos da “política antipolítica” do regime. A questão que
então se colocava era: como investir na conquista da palavra quando esta estava
restrita em sua capacidade crítica e se via emudecida pelo terror de Estado?
Cinquenta anos após o golpe de 1964 e trinta após o fim da ditadura,
voltou-se a discutir o que dela restou: a violência de Estado; a militarização
das polícias; a impunidade dos torturadores; a Lei da Anistia, pela qual os
responsáveis pela ditadura perdoaram a si próprios; as evidências de que
grandes interesses econômicos lucraram com o golpe, além de terem se envolvido
no apoio à sua realização, à continuidade do regime que dele decorreu, e, em
certos casos, no financiamento direto à repressão e à tortura. Mas restou
também, sob novas formas, a degradação da política, mergulhada em um tipo de
realismo que parece negar a possibilidade de o povo mobilizar sua inteligência
coletiva para pensar sua própria condição, seu devir e os meios de construí-lo.
É que a partir dos anos 1990 novas modalidades de restrição ao exercício da
grande política foram se apresentando. Verificaram-se mudanças nos próprios
sentidos e conteúdos da palavra política. Ela foi deixando de designar o
domínio da ação do poder legítimo de organizar a vida coletiva e passou a ser
associada à função de gerir as condições para o exercício de um poder que lhe é
superior, o poder financeiro – como mostrou a recente usurpação da soberania
grega.
Vale a pena, neste contexto, tentar observar, com um mesmo olhar, essas
duas décadas que vão do autoritarismo até a vigência do neoliberalismo, sem
perder de vista que, sob a ditadura ou sob a governança neoliberal, os meios de
restrição à reflexão e ao debate são, sem dúvida, de ordens completamente
distintas. É que, em lugar da antipolítica repressiva, exercida pelo regime de
exceção até meados dos anos 1980, entraram em ação, desde os anos 1990, os
mecanismos de uma antipolítica de mercado.
A operação de uma esfera pública, em que se garanta a livre expressão
da fala política, significa a possiblidade de construir diferentes tipos de
redes, relações e fóruns de elaboração de pontos de vista e crenças partilhadas
a respeito do mundo. Mas esses espaços são sempre objeto de disputa – de ações
políticas de caráter inventivo, em condições de litígio sobre o objeto dos
litígios, sobre a existência de litígio e sobre as partes que nele se
defrontam. No contexto da “governança” neoliberal, porém, passou a vigorar o
que Bourdieu chamou de “políticas de despolitização”,3 ações que procuram
destruir a ideia da política como modo de exercício da inteligência coletiva na
tentativa de superação da desigualdade.
O esforço em oferecer vantagens para os capitais internacionais –
consenso social, segurança, sustentabilidade ecológica – passou a justificar
que todos os projetos em disputa, nos diferentes espaços sociais, viessem a se
anular em favor de uma competição entre as localidades por investimento. O
empresariado, por sua vez, começou a adotar, com muito mais frequência, a
tática da ameaça de fechar o negócio como forma de desmobilizar as
reivindicações dos trabalhadores. Com a aquisição de maior mobilidade do
capital – da capacidade de as empresas se deslocarem, a baixo custo, entre
diferentes pontos do espaço –, aumentaram os efeitos da ameaça empresarial de
saída, reduzindo a disposição dos trabalhadores de exercerem seus direitos de
associação e de pressão sobre os acordos salariais.4
O economista polonês Michael Kalecki5 já havia caracterizado, nos anos
1940, as razões pelas quais o estado de laissez-faire é o preferido do
empresariado: por meio da retração ou relocalização de seus próprios
investimentos, os empresários podem gerar desemprego e disciplinar os trabalhadores.
E, para impor suas regras aos governos, manejam o clima dos negócios, seu
“estado de confiança”, acenando com as possibilidades de instabilidade social
para constranger os governantes a adotar políticas que os favoreçam. Com as
reformas neoliberais, as grandes corporações tornaram-se quase sujeitos das
políticas governamentais, pressionando pela flexibilização de regulações
políticas e impondo as condições mais desejáveis para a realização de seus
negócios.
Eis, pois, que o período em que a política havia sido fortemente
constrangida pela violência da ação repressiva foi seguido por uma conjuntura
em que a política passou a ser esvaziada, dado o poder excepcional adquirido
pelos capitais em detrimento dos demais atores. Esse poder reside na possibilidade
de ameaçar retirar os investimentos dos espaços sociais onde vigora maior
respeito a direitos e regulações para localizar-se em áreas onde esses direitos
se encontram menos assegurados. Por meio dessa “chantagem locacional”, as
grandes corporações colocam todos os trabalhadores do mundo em competição,
favorecendo, com a criação de empregos, aqueles – menos organizados e menos
protegidos por leis – que aceitem menores salários e menos direitos. O mesmo
ocorre no que diz respeito às normas ambientais e urbanísticas – aquelas que
deveriam, em princípio, estabelecer limites aos impactos destrutivos de grandes
projetos sobre o espaço de vida de trabalhadores, de grupos étnicos, assim como
de moradores de cidades hipertrofiadas pela chegada maciça de habitantes atraídos
por promessas de emprego.
Durante a ditadura, a questão foi como, em condições de risco,
politizar as conversas, dar densidade política a relações e situações, sob a
vigilância e a violência do aparato repressivo. No caso presente, processos de
despolitização foram se configurando por meio de dispositivos que previnem a
politização dos conflitos. Uma naturalização da desigualdade alimenta as
ilusões de que o mercado premia os que trabalham. O consumismo promove a
organização maciça de indivíduos atomizados, que não percebem as estruturas de
reprodução da desigualdade no acesso a recursos econômicos, territoriais,
ambientais, judiciais e educacionais, de proteção social, de saúde, saneamento
e urbanidade, assim como a apropriação privada e oligárquica dos meios
políticos e dos espaços de informação e discussão públicas. A esfera de
deliberação, no âmbito do sistema político formal, viu-se crescentemente
absorvida pelo realismo de um debate entre o que “nós podemos” e o que “nós não
podemos”. Isso sem falar do pragmatismo, que, em nome da “governabilidade”,
favorece a privatização do Estado em mãos de cartéis empresariais, organizações
religiosas ou oligárquicas.
Pouco resta da política quando a ordem das coisas é apresentada como
inelutável. Como é possível fazer política usando palavras que pretendem, ao
mesmo tempo, dizer tudo e seu contrário, quando se trata de definir que tipo de
sociedade convém melhor a seus membros e como chegar lá? Diante das
manipulações do marketinggovernamental e da mídia comercial, movimentos como os
ocorridos em junho de 2013 nas grandes cidades do Brasil deram mostras, ao
menos no que diz respeito a uma parte dos que protestaram, de pretender recusar
a instalação do cinismo como forma de racionalização das interações sociais e
políticas. Em meio à diversidade de manifestantes, havia os que mostravam ter
perdido a crença no valor da fala política, assim como outros que nunca a
haviam valorizado em seu poder transformador. Mas estavam presentes também
aqueles que procuraram fazer das ruas um território para a reivindicação de
igualdade. Ou, como nos termos que Betinho usou para descrever os dilemas da
clandestinidade, fazer “a realidade política aparecer” ou torná-la
transparente, permitindo à sociedade entrar na “cena política real”.
Coloca-se assim, como em outras circunstâncias históricas se havia
colocado para a militância clandestina contra a ditadura, a questão da busca
desse espaço movente que precisa ser reinventado constantemente, no qual se
definem identidades, pertencimentos e modos de ação. Só que essa reinvenção
concerne aos próprios sujeitos políticos que procuram liberdades públicas e
bens coletivos para todos, sem discriminação de classe ou raça, de modo que
todos possam participar, em igualdade de condições, do debate sobre a
construção de futuros.
Henri Acselrad
Henri Acselrad é professor do Ippur/UFRJ e pesquisador do CNPq. O
presente artigo retoma questões debatidas no recém-lançado livro Sinais de
fumaça na cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura
no Brasil, Editora Lamparina, Rio de Janeiro, 2015.
Ilustração: Daniel Kondo
1 Herbert de Souza (Betinho), A situação
da clandestinidade e os processos de formação dos partidos-seitas, Santiago do
Chile, 1972. Mimeo. Documento CPDOC/FGV, p.2.
2 Hannah
Arendt,The Human Condition[A condição humana], University of Chicago Press,
1958, p.199.
3
Pierre Bourdieu, Contre-feux 2 [Contrafogos 2], Raison d’Agir, Paris,
2001.
4
Kate Bronfenbrenner, Uneasy Terrain: the Impact of Capital Mobility on
Workers, Wages and Union Organizing [Terreno incerto: o impacto da mobilidade
de capital sobre trabalhadores, salários e organização sindical], US Trade
Deficit Review Commission, Nova York, 2000. Mimeo.
5 Michael Kalecki, “Aspectos políticos
do pleno emprego”. In: Crescimento e ciclo nas economias capitalistas, Hucitec,
São Paulo, 1983 [1944], p.54-60.
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