Três discursos de momentos distintos nos mostram
três elementos de sua formação: a recusa dos extremos ideológicos, o
trabalhismo e o antiliberalismo.
Lincoln Secco // www.cartamaior.com.br
Noticiou-se em algum lugar que Dilma Rousseff teria
levado para ler num fim de semana a biografia de Getúlio Vargas escrita pelo
jornalista Lira Neto. Então, a associação da crise política de 2015 com a de
1954 se tornou inevitável.
A própria estratégia comercial e os paratextos da
edição nos levavam a isso. A obra publicada pela Companhia das Letras em três
volumes tem comentários na contracapa feitos por Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula.
O primeiro atacou a legislação trabalhista e,
enquanto professor da USP, já tinha questionado o “populismo”; o segundo
parecia a própria reencarnação deste tema. Lula parou as privatizações
fraudulentas de seu antecessor, mas sequer as investigou.
Dilma, apesar do passado brizolista, não presidiu
estatizações, rupturas com os Estados Unidos ou aumentos “escandalosos” de
salário mínimo. Ela foi acusada de ter cometido fraude contábil para pagar
programas sociais com recursos de bancos públicos e de ter tido sua campanha
paga por dinheiro da corrupção da Petrobrás. No entanto, a responsabilidade direta
dela não apareceu em nenhum documento. O que pode nos remeter a outra crise
mais próxima do que a de 1954.
Em 1999, FHC estava em seu segundo mandato sob
baixa popularidade e com o passivo de ter aprovado sua própria reeleição
mediante a compra de deputados. A folha de S. Paulo (25/5/1999) divulgou o
áudio de conversas que revelavam que o “presidente Fernando Henrique Cardoso
não só sabia como também autorizou e participou de uma operação para favorecer
empresas no leilão de privatização da Telebrás”. Nada tão grave se apresentou
em 2015. No entanto, a crise política foi muito maior neste ano...
Sabem os historiadores que tais associações são
armadilhas. Mas como toda arapuca, elas são incontornáveis ou não existiriam.
Por isso devemos dialogar com o presente. É intelectualmente honesto revelar
suas opções teóricas e ideológicas porque isso fornece instrumentos de controle
ao interlocutor. Interpretações mudam e nós não leríamos a biografia de Getúlio
há vinte ou trinta anos da mesma forma que em 2015.
Nós sabemos, por outro lado, que diferentes
leituras modificam a ideia que temos do que passou, mas não o que efetivamente
aconteceu. E neste quesito é preciso empregar as técnicas mais tradicionais de
nosso ofício. Eric Hobsbawm dizia que podemos discutir as causas das guerras
púnicas (264-146 a.C.), mas não o seu resultado. Afinal, Roma venceu Cartago.
Perry Anderson nos recordou que em qualquer abordagem materialista séria o
passado não pode ser modificado.
Retomar a trajetória de Getúlio, ler nela o que
possui de inescapavelmente seu e de seu tempo, é o que as biografias de Getúlio
nos concedem. A de Lira Neto é baseada em extensa pesquisa empírica do próprio
autor e de auxiliares que lhe propiciaram uma massa documental impressionante,
embora a maioria das informações já fosse conhecida. Mas é mérito só dele ter
conseguido escrever de maneira elegante um livro que não se perde num cipoal de
fatos e que persegue não a neutralidade, mas sim a isenção, a apresentação de
dados que podem até contrariar suas inclinações pessoais.
Formação
Muitas delas só aparentemente são inúteis porque
não deixam de ajudar o leitor a compor o homem por inteiro. A infância, a
violência como traço constitutivo da solução de desavenças entre famílias
rivais e mesmo o longo romance que Getúlio Vargas manteve com Aimmée, esposa de
um auxiliar de seu governo, revelam os riscos calculados que ele desejou correr
em sua trajetória pública. O costume de, em situações limite, aparentar calma e
sorrir. De andar na rua sem escolta. De resistir com o revólver na cintura. De
preparar a carta testamento diante de um cerco sem saída, tudo isso é
documentado por Lira Neto. Ou seja, o político pragmático e conciliador também
concebe a possibilidade da ruptura definitiva. De outro modo não teria escrito
um bilhete suicida já em 1932.
Ainda assim, o excesso de detalhes por vezes fez o
biógrafo se estender em janelas que a história lhe abria, mas que deveria
servir apenas para vislumbrar a paisagem que rodeava seu personagem. E não para
saltá-la e percorrer caminhos que não eram os dele. Muitas vezes, o autor
descreve com minúcias eventos gerais de nossa história com detalhes já
sobejamente conhecidos. A Guerra do Paraguai, a Revolta Federalista, o primeiro
e o segundo cinco de julho etc. Por isso, terminamos o primeiro volume com a
impressão de que talvez o autor pudesse ter condensado a sua biografia.
Aliás, a primeira parte se baseia por largas
páginas nas memórias de João Neves da Fontoura. O autor soube, apesar disso,
equilibrar em todos os seus três tomos o uso de memórias de Afrânio Mello
Franco, João neves da Fontoura, Goes Monteiro, Eurico Dutra, Benedito Valadares
e muitos mais com a documentação do Centro de Pesquisa Documental da Fundação
Getúlio Vargas. Mobilizou a correspondência, o diário, a segunda parte
(inédita) das memórias da filha de Getúlio, os comunicados das embaixadas, a
historiografia já estabelecida e os jornais de época.
A trajetória
é a de um antiliberal convicto, cético, não religioso, positivista,
borgista (ou chimango). Seguidor de Julio de Castilhos e chefe de clã familiar
na fronteira gaúcha. Casou-se com uma mulher bem mais jovem que lhe pareceu
conveniente. Cumpriu o papel de adversário dos liberais gaúchos, os
federalistas ou maragatos.
Deputado estadual, representante do longevo
governador Borges de Medeiros na assembleia estadual e, depois, na liderança da
bancada gaúcha na câmara dos deputados, Vargas ainda passou pelo ministério da
fazenda de Washington Luiz e foi presidente do Rio Grande do Sul.
Getúlio foi leitor de Saint-Simon e do secretário
deste, o positivista-mor Augusto Comte. O Positivismo da época de Getúlio
Vargas era a visão de mundo que conferiu ao cientista o papel de reflexo da
realidade objetiva. Destarte, a política deveria ser científica e os
governantes seriam tecnocratas isentos de inclinações ideológicas. Sendo a
sociedade regida por leis universais assim como a natureza, os problemas
sociais poderiam ser resolvidos cientificamente e, portanto, dentro da ordem.
Onde há consenso científico não pode haver conflito.
Muitos positivistas incluíam as classes sociais na
Ordem, reconheciam os seus direitos, mas combatiam a luta entre elas. Em Vargas
veremos a perene busca da conciliação, de um governo forte e de uma ditadura
científica.
Revolução de 1930
À virtù maquiavélica se juntou a fortuna: o sorriso
do acaso. Em 1930 Getúlio traiu Washington Luiz e se aproveitou das dissensões
entre São Paulo e Minas Gerais para lançar-se ao lado de João Pessoa como
candidato da Aliança Liberal. A derrota seria certa se não houvesse o concurso
de uma oligarquia dissidente, de um movimento
capaz de sustentar militarmente a candidatura e do inesperado: a morte
de João Pessoa por desavenças locais, porém atribuídas ao governo federal, contribuiu para que os
tenentes e a ala radical gaúcha (João Neves
da Fontoura, Oswaldo Aranha e
Batista Luzardo) empurrassem Vargas a um movimento que ele evitou quase
até o fim.
Por trás dessa trajetória que parece linear vemos a
hesitação do personagem. Traços que o acompanharam a vida toda e registrados em
muitos estudos biográficos mostram um homem sempre reticente, de silêncios
desconcertantes e sorriso fácil.
Pragmático, ele soube unir os maragatos e os
borgistas em torno de si em 1930. Quando confrontou a revolta paulista de 1932,
os dois “partidos” se põem ao lado dos
paulistas, mas Getúlio obtêm o apoio decisivo de quem comandava a Brigada
Militar: o interventor Flores da Cunha.
Depois da pacificação e quando já caminhava para a
ditadura, Getúlio se aproximou dos constitucionalistas que haviam lutado contra
ele. Nomeou-os para o seu ministério (Macedo Soares, Vicente Rao), aceitou um
interventor civil e paulista (Armando Salles de Oliveira) e perseguiu seus
antigos aliados. Ele se afasta até mesmo dos mineiros Antonio Carlos e Olegário
Maciel a quem devia a sua candidatura em 1930 e o apoio decisivo de Minas em
1932. Abandona também Flores da Cunha, o
fiel da balança que lhe permitira colocar o Rio Grande contra os
paulistas.
Os exemplos de um equilibrista, do oportunista
sempre capaz de se dobrar ao vento das mudanças políticas de ocasião, de
abandonar velhos amigos e incorporar antigos adversários são muitos. Mas há uma
racionalidade em meio às indecisões que, ao
fim das contas, são o imponderável da história, o que há de mais humano
no personagem.
Estado Novo
Getúlio não acredita no liberalismo. Ele lê o
salazarista Antonio Ferro e as entrevistas de Mussolini a Emil Ludwig depois de
1930. E antes fora leitor de Oliveira Vianna. Assim, manipula os políticos
porque também os têm em baixa estima. Não por suas individualidades, mas pelo
jogo cansativo e deletério que, aos seus olhos, eles representam. O antípoda do
varguismo sempre foi o liberalismo.
Por trás do jogo, há a crença perene numa nação
abstrata que se confunde com o Estado totalmente centralizador. Nela habita um
povo que deve ser dirigido. E a direção não se exerce apenas sobre as massas
trabalhadoras, a quem “concede” direitos como o salário mínimo anunciado em
1930 e regulamentado em 1940 ou a Consolidação das Leis do Trabalho em 1942.
Ela se volta também às classes patronais e à economia como um todo. Vargas
tinha lido uma obra que denunciava o espírito de seu tempo: Économie Dirigée,
économie scientifique de Charles Bodin...
Não se pode dizer que Getúlio escolhera o caminho
ditatorial em 1937 apenas por interesse pessoal pelo poder. A vaidade é
intrínseca ao homem público. Mas Vargas foi sempre castilhista e servidor fiel da ditadura de Borges de
Medeiros no Rio Grande do Sul. Desde 1930 falou abertamente na necessidade da
ditadura para completar a obra da Revolução de 1930. E, embora ludibriando os
aliados e adversários com falsas promessas eleitorais desde que se tornara
governante constitucional e eleito indiretamente pela assembleia constituinte
em 1934, ele jamais deixou de crer que instituições democráticas eram apenas a
forma de perpetuação dos vícios republicanos.
Getúlio manipulou o sentimento anticomunista que se
avolumou nas Forças Armadas e, simultaneamente, cortou as pretensões de
integralistas civis e militares, o que culminaria na estranha tentativa de
golpe perpetrado pelos fascistas locais em 1938. Estranha porque, como nos
contam Helio Silva e Edgard Carone, sua vida correu perigo sem que tropas
militares fossem mobilizadas a tempo para sustar o ataque ao Palácio
Presidencial.
Getúlio era fascista? Em 1935 ele aproveita a onda
anticomunista para pedir à Câmara o estado de guerra, mas permite depois a
macedada (anistia a uma parte dos presos
políticos de 1935). Suas promessas a Plinio Salgado em 1937 de que ele seria o
ministro da educação num governo
ditatorial baseado na doutrina integralista foram solenemente
abandonadas logo depois do golpe que instalou o Estado Novo. Lira Neto inicia o
primeiro volume de sua biografia com a recepção que Getúlio deu ao
representante de Mussolini. Diante da saudação fascista com a mão erguida pelo
visitante, um incomodado Getúlio apenas olhou
e... sorriu... Mestre das acomodações? A relação com a gestualidade
fascista podia ser um índice de seu compromisso sempre moderado com homens,
mulheres e ideias.
Ao entrar no trem que o levaria de Porto Alegre à
tomada do Palácio do Catete no Rio de Janeiro
em 1930, uma menina lhe presenteou com o lenço vermelho característico
de seus adversários maragatos. Getúlio não teve pejo de enlaçá-lo ao pescoço.
Da mesma maneira, em sua vida pessoal
ele parece ter sofrido com o fim do romance adúltero que manteve com sua “bem
amada” Aimmée Sotto Mayor Sá, então esposa de seu auxiliar de gabinete da
presidência. Afinal, quando o falatório o expôs ao possível confronto com a
opinião conservadora e católica de seus aliados, abalando a imagem de “pai” dos
pobres, e expondo-o a possíveis reações de sua família e de seu próprio
auxiliar, ele deixou que a bien-aimée partisse para viver em Paris, mesmo ao
custo de sofrimento psicológico.
Não há novidade numa história negaças com os
Estados Unidos e a Alemanha em busca da construção de um usina siderúrgica e do
aparelhamento das Forças Armadas. Foi a dança de Getúlio. Com isso visava
assentar bases mais sólidas para a industrialização e contentar os reclamos dos
militares. Ao contrário do que se imagina, o ditador não foi o todo poderoso e
teve que se equilibrar perante mais de uma conspiração dos generais Dutra e
Goes Monteiro.
Trabalhadores
Em 1943 o tempo de Vargas começou a mudar. Líderes
da elite mineira lançaram o famoso
manifesto pela democracia e os estudantes de Direito em São Paulo começaram a
resistência contra o Estado Novo sob forte repressão policial. Fascistas
notórios como Dutra e Goes Monteiro,
cientes da virada na II Guerra a favor dos aliados, converteram-se
oportunamente à democracia e passaram a vincular a luta contra o fascismo da
Força Expedicionária Brasileira na Itália à queda de Vargas.
Mas Getúlio também mudara. Aproximara-se demais dos
trabalhadores para não lhes buscar apoio quando lhe faltava a concordância das
classes dominantes. Continuava a ter empresários fiéis, como Hugo Borghi que
ganhara dinheiro com algodão no Estado Novo (embora fosse veterano
constitucionalista de 1932). Mas dependia cada vez mais do apelo aos
trabalhadores para continuar no poder ou, ao menos, ter uma saída digna.
O queremismo (estudado recentemente por Michele
Reis de Macedo) foi um movimento surgido em março de 1945 a partir da
manifestação da Panela Vazia em São Paulo. Doravante as manifestações dos
estudantes paulistas pela volta do regime constitucional era atacada pelos
próprios trabalhadores, acusados de arruaceiros e bêbados.
Em maio, foi lançado como movimento queremista no
Rio de Janeiro em função da palavra de ordem gritada nas ruas: "Queremos
Getúlio". Os queremistas reivindicavam a permanência de Vargas no poder e
uma Assembleia Nacional Constituinte. Caso houvesse eleições defenderiam a
candidatura de Vargas, contrariamente à vontade da cúpula das forças armadas e
dos políticos liberais da UDN e outros partidos. Os comunistas aderiram ao
queremismo, propugnando a “constituinte com Getúlio”.
Visão de Mundo Modificada
Três discursos de momentos distintos nos mostram a
consolidação de três elementos de sua formação: a recusa dos extremos
ideológicos, o trabalhismo e o antiliberalismo.
Em 1936 Getúlio dizia que “o programa apregoado
pelos sectários do comunismo no Brasil, ignorantes do que vai pelo país e
vazios de ideias válidas, incluía, como aspiração do proletariado nacional,
reformas já executadas e em pleno vigor. O nosso operário nada teria a lucrar
com o regime soviético. Perderia, pelo contrário, as conquistas obtidas como
concessão espontânea dos poderes instituídos, em troca da submissão ao trabalho
forçado e coletivo”. Ou seja, o
programa comunista já fora realizado por ele como concessão.
Getúlio
costumava escrever as ideias centrais
dos seus discursos, os quais depois eram reescritos por auxiliares e
voltavam às suas mãos para correções e expressavam seu pensamento, obviamente
que dentro das necessidades da retórica
teatral da política. No discurso de 13
de maio de 1938, após o levante integralista de 11 de maio, ele diz: “Assim
como ontem, na defesa da integridade e da honra nacional, repelimos os
extremistas da esquerda, enfrentamos, hoje, sem vacilações, os extremistas da
direita. Ambos se equivalem nos seus meios e objetivos, e encontram igual repúdio
na opinião pública”. Em certo trecho revela a qual classe primeiro se dirige,
para em seguida dilui-la na ideia de povo: “eu esperava uma demonstração das
classes trabalhadoras e recebi uma demonstração de todo o povo brasileiro!”.
Em 29 de novembro de 1946, no Discurso pronunciado
em comício do PTB em Porto Alegre, ele diz: “A velha democracia liberal e
capitalista está em franco declínio porque tem seu fundamento na desigualdade.
A ela pertencem, repito, vários partidos com o rótulo diferente e a mesma
substância. A outra é a democracia socialista, a democracia dos trabalhadores.
A esta eu me filio. (…) E já que as nossas atividades na vida pública, por
imposição legal, devem orientar-se na órbita dos partidos, se um conselho posso
dar ao povo é que se integre na ação do Partido Trabalhista”. Ou seja, a
democracia de partidos é uma imposição legal, portanto, não é necessariamente o
melhor sistema, mas ele se adapta a isso recorrendo aos trabalhadores.
Mudança? Sim, sem dúvida. A aproximação com a
classe trabalhadora que se auto-organiza modifica o líder. Continuidade?
Decerto, posto que a democracia liberal continua sua inimiga.
A Democracia Racionada (1945-1964)
Este é o período mais conhecido da trajetória de
Getúlio Vargas. É o clímax das biografias, porém sem suspense. Registram-se a
fundação do PTB, a adesão do seu líder à doutrina social democrata europeia,
despida evidentemente de qualquer referência
marxista; a pífia participação dele no Senado; as derrotas de candidatos
apoiados por Vargas nas eleições estaduais; a oposição crescente da classe
média midiática a ele; e, finalmente, sua
volta em campanha triunfante em
1950.
A campanha foi muito bem coberta pelas memórias de
Samuel Wainer, o chefe do jornal getulista Última Hora. Aliás, vítima de uma
CPI do Congresso que descobriria que ele recebia verbas públicas... tanto
quanto os demais órgãos de imprensa.
Getúlio nomeou um “ministério reacionário”. Seu
ministro Horácio Lafer aumentou o imposto de renda e foi combatido pela própria
base aliada do governo; e o demissionário Ministro Danton Coelho (o único do
PTB!) clamou “Libertemos Getúlio”, pois ele estaria preso pela sua falsa
maioria no parlamento...
No fim de 1952 Getúlio fez três anúncios que
conformaram o seu campo inimigo: descartou o envio de tropas à Guerra da
Coréia; aumentou em 300% o salário mínimo; e limitou a remessa de lucros das
empresas estrangeiras. Os Estados Unidos passaram a se opor ao governo
brasileiro, a FIESP criticou publicamente os aumentos salariais e as Forças
Armadas passaram a ameaçar continuamente a legalidade.
No caso da Petrobras, as memórias de Almino Afonso
reconstituem o clima da época. Getúlio era favorável ao monopólio estatal, mas
enviara um projeto sem essa cláusula ao congresso. A empresa seria de economia
mista (51% da União). A esquerda o rotulou de “entreguista”, mas segundo
Tancredo Neves, então Ministro da Justiça, a ideia era não confrontar logo de
início o Congresso e dar margem para que uma proposta mais avançada viesse de
algum deputado “neutro”. Deu certo: a própria UDN aprovou o monopólio estatal.
Em 1952 o Clube Militar trocou de diretoria. Os
nacionalistas foram derrotados pelos entreguistas, afinados com a política
externa dos Estados Unidos. Foram 8288 sufrágios contra 4489. Diferentemente de
hoje, havia uma componente militar permanente na crise política.
O discurso de 1954, em que o presidente confirma o
novo aumento do salário mínimo é exemplar da radicalização ou da fuite en avant
de Getúlio Vargas. Ele homenageia o “ex-ministro do Trabalho João Goulart,
incansável amigo e defensor dos trabalhadores”, a construção de habitações
populares, “o merecido repouso aos 55 anos de idade”, participação de
representantes dos trabalhadores na gestão da previdência e o projeto que
estende aos empregados rurais os preceitos da legislação trabalhista.
O tom alarmou elites políticas, empresariais e
militares e desnorteou a esquerda. Ele mostra que seus inimigos não têm a arma
com que eles próprios legitimam seu regime: o voto. Além disso, conclama a
organização sindical e partidária dos trabalhadores: “Não tendes armas, nem
tesouros, nem contais com as influências ocultas que movem os grandes
interesses. Para vencer os obstáculos e reduzir as resistências, é preciso unir-vos
e organizar-vos. União e Organização devem ser o vosso lema. Há um direito de
que ninguém vos pode privar, o direito do voto. E pelo voto podeis não só
defender os vossos interesses como influir nos próprios destinos da nação. Como
cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao
vosso sufrágio a força decisória do número. Constituís a maioria. Hoje estais
com o governo. Amanhã sereis o governo”.
O tema era ameaçador porque Vargas passara seu
governo sendo acusado de defensor de uma República Sindicalista e de tramar uma
união com a Argentina de Peron. A defesa da solidariedade oposta à ideia de
caridade dos poderosos, a ausência de valores religiosos no discurso e o
convite a uma auto-organização eram chocantes para os de cima e até mesmo
aliados.
A Crise de
Agosto
Segundo Jacob Gorender em páginas iniciais de seu
“Combate nas Trevas" a política de Vargas assimilou trabalhismo e
industrialização (este seria um terreno de interesse comum entre burguesia e
trabalhadores). Com a crise do estado liberal-oligárquico o trabalhismo,
indesejado pelos empresários, seria o preço a se pagar por um
governo que precisava do apoio
eleitoral das massas e que, ao
mesmo tempo, apoiaria o projeto
industrialista.
Acrescente-se que Vargas não pretendia atacar a
ordem dos fazendeiros exportadores, já que o país continuava dependendo do café
para obter divisas. Vargas não se equilibra entre duas classes (burguesia
industrial e proletariado), mas entre três ou quatro (devemos acrescentar a
burguesia cafeeira e a classe média mobilizada). Tanto que só tardiamente
propôs a extensão da legislação trabalhista ao campo, sem nenhum resultado. Os trabalhadores rurais, considerados por ele “incultos” e que
não tinham direito ao voto, seriam passivos
e poderiam ficar por muito tempo ainda fora de seu projeto como preço a pagar pela manutenção da ordem.
Seu jogo, na ótica positivista, era de soma
múltipla e não de soma-zero, como nos diz Gorender. No entanto, ele sabia que
eram necessárias concessões, pois qualquer aliança tinha limites quando tocava o interesse fundamental das classes
dominantes: a taxa de lucro. Assim, quando crescem as greves, o líder não pode
mais ser a forma em que os contrários se movem sem ameaçar o todo.
André Singer em seu artigo “Cutucando Onças com
Vara Curta” aponta como uma das causas da crise política de Dilma Roussef o fato
de ela ter atacado em várias frentes simultâneas no primeiro. Não teria sido um
dos “erros” de Getúlio? Em desespero e com os próprios trabalhadores em
movimentos grevistas, Vargas atacou muitas frentes: os Estados Unidos, ao não
apoiar a guerra da Coreia e ao acabar com a comissão mista Brasil-EUA; os
exportadores de café, já que os EUA impõem restrições ao café brasileiro; as
companhias de eletricidade que se opõem à criação da Eletrobrás; as Forças
Armadas e a Fiesp, devido ao aumento de 100% do salário mínimo etc.
O maior intelectual trotskista, Mario Pedrosa,
associava-se a Carlos Lacerda nos ataques ao governo. O Partido Comunista
chamava Getúlio de entreguista e tinha a mesma opinião que parte do próprio
partido do presidente. Sobre a imprensa, basta ler a extensa pesquisa
comparativa do estudioso argentino Ariel Goldstein acerca do comportamento de O
Globo e de O Estado de S. Paulo no último mandato de Getúlio e no primeiro de
Lula.
No dia 19 de junho de 1954 o Editorial do jornal O
Estado de S. Paulo declarava que se Getúlio Vargas “escapou do impeachment,
graças à generosidade excessiva da Câmara, não deve escapar à condenação das
contas que apresentou”. O Jornal diz que no caso do impeachment prepondera a
interpretação política, já as contas ou estão certas ou não estão. O presidente
estaria atacando as liberdades políticas e as finanças da nação.
O mês de agosto de 1954 já é muito conhecido.
Recomenda-se a leitura do relato de José Sette Camara, assessor de Lourival
Fontes, ministro de Getúlio, apesar da recorrente antipatia do autor por Jango.
Lira Neto se debruçou mais sobre o atentado da Rua Toneleros e trouxe à baila a
suspeita de que o próprio Lacerda tenha atingido acidentalmente o Major Vaz (já
que ele nunca apresentou o seu revólver à polícia) e as incongruências da
investigação produzida pela Aeronáutica naquilo que ficou conhecido como a
República do Galeão.
A biografia de Getúlio aparece tal qual uma imensa
coleção de documentos. Em meio ao labirinto de dados Lira Neto navega com
segurança. Esmiuça os laços de continuidade entre o Estadista de 1930 e a
formação positivista e de culto ao Estado e à tecnocracia; entre o trabalhista
pós 1945 e a preocupação inicial com a integração dos trabalhadores na Ordem;
entre o homem disposto ao sacrifício da vida pessoal em 1930 e o
presidente sitiado em 1954.
O Populismo
Como demonstrou Angela Castro Gomes, populismo foi
uma categoria de longa trajetória nas Ciências Sociais, quase sempre acentuando
um suposto caráter passivo da classe trabalhadora. Depois disso, foram tantos
os historiadores que já demonstraram o contrário, como Paulo Fontes e Murilo
Leal sobre os anos 1950.
O trabalhismo nada mais foi do que a política
nacional popular da esquerda latino-americana de viés social democrata
correspondente à periferia do capitalismo. Originalmente, o termo designava uma
corrente teórica russa do socialismo agrário do século XIX. Na América Latina o
termo foi empregado para designar a relação direta entre líderes populares e as
massas urbanas supostamente desorganizadas sem a intermediação de partidos.
No próprio livro de Lira Neto os trabalhadores têm
uma presença ornamental. No entanto, ele deve ser elogiado por escapar ao
jornalismo retrospectivo, que trata os fatos uma vez encadeados cronologicamente
como se tivessem que ter acontecido daquela maneira. Assistimos em sua obra a
um líder cujo carisma estava em construção, jamais sendo um simples dom
natural; cujo maquiavelismo em 1930 foi feito mais de oportunidade do que da
matreirice que só viria com o tempo; e cujo poder absoluto depois de 1937 é
matizado pela instável sustentação militar.
O líder que emerge em 1950 nos braços do povo
seguramente é outro. Guarda muito do passado, mas foi profundamente modificado
pelo próprio “povo” que era ao mesmo tempo objeto e sujeito da Era Vargas,
sofrendo e modificando as políticas públicas.
O impasse do trabalhismo é que ele é uma ideologia
da conciliação que traz em seu ventre o conflito. Isso funciona enquanto o
crescimento econômico permite o jogo de soma múltipla de sua ótica positivista.
Quando a massa de mais valia social tributável se estreita, os capitalistas
atacam o Estado, a crise fiscal se instala, os trabalhadores aumentam o número
de greves e o jogo se torna de soma zero. O confronto latente explode e alui a
base de sua ideologia: a própria conciliação.
Ao contrário dos países centrais, na periferia a
massa de mais valia tributável (ou em termos políticos, a margem de manobra
para distribuição de benefícios sociais) é estreita e a duração da política
trabalhista instável e menor.
A crise de agosto de 1954 foi sustada pelo suicídio
de Getúlio. Mas seu gesto, expressão de um sistema incapaz de consolidar uma
democracia participativa, apenas adiou a solução definitiva. Esta, vinda dos
quartéis, destruiu as melhores potencialidades civilizatórias do Brasil e nos
legou o país que temos.
Créditos da foto: Leonard McCombe
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