Racionamento = 'rodízio de água';
Bumlai = 'amigo do Lula'; tucano condenado = 'ex-governador': com eufemismos e
outras técnicas, a mídia constrói opiniões
Léa Maria Aarão Reis* // www.cartamaior.com.br
A arrogância e a impunidade levam a
mídia hegemônica, corporativa e comprometida, que com hipocrisia se diz isenta
(!), a prosseguir, como um trator,
reforçando seu perfil de partido político inconfessado e espúrio em que
se transformou: o PIG.
Parece sem limites a audácia com a
qual falseia a realidade objetiva, perseguida, com esforço, no jornalismo
ético. A velha mídia usa palavras e expressões que fazem o papel de “agente
contaminador” como diz Zygmunt Bauman no seu livro, Medo Líquido. Manipula e asperge
mais medo e insegurança àqueles latentes em todos nós, neste mundo do século
21. Distorce significados com eufemismos; entorpece, envenena corações e
mentes, confunde os desavisados e silencia quando é conveniente aos interesses
dos seus proprietários. Ludibria e mente sem pudor.
Com os sinais trocados, a velha mídia
se vale da novilíngua de Orwell. Restringe ou anula as possibilidades de
raciocínio dos leitores, telespectadores/eleitores e vai além ao determinar aos
seus editores, redatores, repórteres e produtores de TV o silêncio, o registro
ou a ênfase de fatos, coisas e pessoas segundo parâmetros pré-determinados. Ela
busca o controle do pensamento, procura abolir a reflexão crítica e tenta
impedir que idéias para ela indesejáveis floresçam e dificultem o retorno de um
projeto de poder que se esvaiu, porque ficou velho, há 13 anos.
No entender de Venício Lima, professor
aposentado de Ciência Política e Comunicação da Universidade de Brasília (UnB),
a linguagem viciada da velha mídia
começa a ser questionada porque sua falta de credibilidade é crescente. “A
credibilidade é o seu freio,” ele diz. “A realidade dos fatos e das coisas e o
cotidiano das pessoas, cada vez mais, contradizem essa linguagem criada para
atender interesses específicos; mas as palavras nela usadas com insistência,
conotam, sobretudo, coisas que vêm dessa ‘seletividade jornalística’, uma visão
parcial dos acontecimentos - para se dizer o mínimo.”
“As pautas negativas, por exemplo. “A
especialidade dos noticiários locais que vão ao ar em três horários diários,
país afora, é desgraça. Elas abastecem os telespectadores de dejetos. Quem
chega ao Brasil, de repente, e escuta e vê esses jornais de TV não entende
nada. Só que este jornalismo ‘vale de lágrimas’ tem um limite. As pessoas se
cansam e percebem que nas suas vidas não há só desgraça; acabam não se
identificando.”
Na Av. Paulista, dia 13 passado, o
apocalipse era agora. O país, destruído, não contava com fio de esperança fora
do golpe. “(Foi) uma prova do serviço horroroso que a mídia presta para a
sociedade,” escreveu o jornalista Paulo Nogueira. “Jornais e revistas
desinformam, manipulam, escamoteiam. Cria-se uma realidade paralela, uma
distopia absoluta que mostra um país em processo de desintegração.”
O sorriso complacente do editor de
Economia da Globonews, esta semana, garantindo que “ninguém espera que a
economia do país vá se recuperar no ano que vem” conclui o serviço do
jornalismo seletivo ao qual se refere o professor Lima. O jornalismo do quanto
pior, melhor.
‘Cartão amarelo ao governo’;
‘atividades ilegais durante ação militar’; ‘técnicas avançadas de
interrogatório’ (tortura) são exemplos de expressões cunhadas pela mídia
hegemônica e corporativa daqui e de lá de fora. São eufemismos oficiais.
O jornalista americano Adam Gopnik diz
que é preciso coragem para eliminar o clichê e o eufemismo do nosso discurso e
chegar mais perto da verdade. Ele recorda
George Orwell: “Metáforas surradas não passam de uma sopa de palavras
destituídas de qualquer poder evocativo; servem de muleta ao orador sem
imaginação ou quem tem algo a esconder.”
O professor de Relações Internacionais
da Universidade do ABC, escritor e jornalista Gilberto Maringoni, do PSOL, acha
que os eufemismos, “algo encontrado na mídia de direita e de esquerda” não são
o principal problema da (des) informação.
Na mídia corporativa, no entanto, se
lê habitualmente “Bassar, ditador da Síria”, mas não “Aécio, o candidato
derrotado nas urnas.”
“Isto vai além de eufemismo,”
Maringoni argumenta. “É manipulação de informação mesmo. É o caso de trocar a
palavra "ocupação" por "invasão" no caso da luta pela
terra. (NR: ou da ocupação das escolas paulistas pelos estudantes.) “Isto se dá
não só na mídia corporativa, mas em vários blogs governistas, que propagam
notícias falsas ou apurações malfeitas. Foram dramáticos os casos durante as
manifestações de junho de 2013 quando blogueiros governistas tentaram imputar
ao PSOL, por exemplo, vínculos com os black blocs. E há os cortes de direitos
de aposentadoria, no governo Lula, que viraram reforma da Previdência.
Prioridade ao pagamento de juros se torna "responsabilidade fiscal".
Para ele, esta “é a luta pela
informação; faz parte do jogo. A direita, por exemplo, custou a admitir que em
1964 tenha havido um golpe. Mas foi uma batalha que os democratas venceram.
Ninguém mais fala em ‘revolução de 1964’ salvo alguns siderados.”
Até hoje, porém, a mídia hegemônica,
siderada, se refere ao golpe de 64 como militar e não civil-militar. E vai
trocando a embalagem dos mantras
despejados ao sabor dos ventos que sopram. Muda a forma da cantilena. O
conteúdo continua o mesmo. Refere-se ao novo golpe com que se pretende
destituir o governo atual, há um ano, como ‘impedimento’.
A incompetência do governo de São
Paulo no caso da falta d’água e do racionamento é, delicadamente chamada de
‘crise hídrica’. ‘Manobras regimentais’ de Eduardo Cunha, registradas na mídia,
na verdade são ataques flagrantes ao ordenamento jurídico, obstrução à
investigação e uso do cargo para processá-la como denuncia o jornalista e
professor Djair Galvão. O fiasco das manifestações do dia 13 de dezembro, para a mídia velha são
apenas um descompromissado ‘esquenta’. Modesto ensaio.
Já o tucano Eduardo Azeredo,
ex-presidente nacional do PSDB, perdeu
seu nome – mas por outros motivos, que não os do pecuarista Bumlai. Tratado
como "ex-governador de Minas" em reportagem da Veja, deixou perplexo
o escritor Fernando de Morais. "Como Minas Gerais teve dezessete
governadores nos últimos setenta anos, fiquei sem saber a qual deles a revista
se refere", reclamou Morais.
Para um colunista do Globo, num dia em
que os tucanos se empoleiraram, nervosos, em cima do seu muro, antes de decidir
se jogavam ou não, no lixo, o presidente da Câmara dos Deputados, o registro
foi cândido: “Cunha confunde as coisas.”
Expressões como ‘danos colaterais’,
‘guerra ao terrorismo’, ‘libertação do Iraque’, ‘arroubos patrióticos’ – esta,
usada pelo diretor de jornalismo da TV Globo, na época, se referindo ao comício
das Diretas Já, designado aliás pelos âncoras
como ’show de cantores’ - são malabarismos que maltratam o idioma,
insultam o cidadão e ocultam a realidade inconveniente. Estes contorcionismos,
porém, criam expressões
introjetadas em milhares de
indivíduos desavisados. E isto é grave.
“O foco da reportagem que o telejornal
de maior audiência do país, o Jornal Nacional, da Globo, levou ao ar naquela
noite das Diretas Já, aliás, foi a comemoração do aniversário dos 430 anos de
São Paulo,” lembrou a jornalista Najila Passos em Carta Maior.
A Linguagem do Terceiro Reich, livro
de Victor Klemperer, demonstra a importância dos usos da língua para apreensão
de uma cultura histórica assim como a linguagem foi usada pelos nazistas como
manipulação ideológica. Sua tese é a de que o nazismo se consolidou ao dominar
a linguagem: “Ele se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de
palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e
aceitas, inconsciente e mecanicamente”.’
“É grande a quantidade de palavras
absorvidas na linguagem corrente do cotidiano, produtos de repetições feitas à
exaustão. O poder da linguagem hegemônica é enorme. Para se ter uma ideia, ela
foi responsável pela unificação do estado italiano, ressaltou Gramsci. A
propósito: aqui, no Brasil, o ano de 2005 ficou conhecido como o ‘ano da crise
do mensalão’, comenta o professor Venício Lima.
Um eufemismo clássico se refere à
tortura e às ações militares ilegais. Na mídia americana elas se sofisticaram e
se transformaram em ‘técnicas de interrogatório avançadas’ e ‘conjunto de
procedimentos alternativos.’
Mas há outros recursos tão fortes e
tão ou mais sutis que os eufemismos: a harmonia das três manchetes idênticas
dos jornalões do eixo Rio/São Paulo no último dia 14 sobre os gatos pingados
que miaram pelas ruas a favor do impeachment: ’protestos em todos os estados’,
elas anunciaram. E a omissão, na capa do Globo do dia 17, sobre os milhares que
marcharam contra o impedimento no centro da capital paulista?
A construção da narrativa do caos, do
fracasso econômico e da incompetência do governo foi um dos vértices da
cantilena da mídia corporativa, em 2015. O segundo se refere à Lava Jato e à
corrupção tentando, de todas as formas, relacioná-las a Dilma e ao Lula, que
“começa a aparecer com maior frequência neste tipo de noticiário durante os
últimos meses”, informa pesquisa laboriosa da jornalista Tatiana Carlotti. O
terceiro, a construção, segundo o evangelho da velha mídia, da construção da
legitimidade do impeachment “abarcando uma narrativa “institucional”, diz
Carlotti. “TCU, Legislativo, e outra, de massas - o ‘Fora, Dilma’.
Um rápido levantamento deste
noticiário viciado mostra que no dia 17 deste mês, a manifestação contra o
impeachment não ganhou manchete nem a imagem panorâmica que merecia pela
consistência do protesto. No dia 15, o empresário José Carlos Bumlai perdeu seu
nome e sobrenome nas manchetes e se tornou ‘o amigo de Lula, denunciado sob
suspeita de corrupção’. Com a imagem em meia folha e não mais em folha inteira,
na primeira página da FSP, no dia 14, ’40 mil se reúnem no menor protesto
anti-Dilma em SP. Um dia antes: ‘Após 13 anos de PT, 68% não vêem melhoria de
vida.’
Dia 9 de dezembro, a imagem com a
legenda: ‘... governistas obstruíram as urnas’. Silêncio absoluto sobre a
eleição da chapa avulsa de Cunha.
‘Para brasileiros, corrupção é o maior
problema do país’ é uma das manchetinhas da capa do dia 29 de novembro com
destaque para uma chamada menor na mesma primeira página procurando – atenção
para a manobra - relacionar os dois
assuntos: ‘47% do eleitorado não votaria em Lula em 2018’.
Diante deste panorama infecto, a internet
e as plataformas digitais de informação, no médio prazo terão força para
reverter o garrote atual do jornalismo no Brasil? “Pelas pesquisas, sabe-se que
metade da população possui internet. Mas as principais formas de informação
provêm ainda da grande mídia que é predominante. Embora já haja alternativas na
internet, qual é o noticiário que cai no celular das pessoas e elas recebem
pela internet? Que internet é essa? É a dos sites da grande mídia que têm
dinheiro para contratar equipes de repórteres para coberturas 24 horas”,
lamenta o professor Venício Lima.
Para o sociólogo João Feres Jr.,
vice-diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e coordenador
do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), que faz o
levantamento do Manchetômetro, “seria muito otimismo concluir que esses sinais
de exaustão são o começo do fim do oligopólio da aristocracia midiática
brasileira.”
“Enquanto não criarmos canais de
financiamento viáveis para a produção de conteúdo na internet,” diz ele, “ e,
talvez, por meio de meios impressos, o jornalismo no Brasil vai ficar na mão
das mesmas empresas, ainda que economicamente decadentes. É preciso vontade
política para democratizar a comunicação em nosso país – coisa tão fundamental
para a saúde da democracia. É preciso ação governamental e políticas públicas
que incentivem a produção de conteúdo por canais que não passem pelos bolsos da
velha aristocracia.”
“Seu jornalismo marrom é cada vez mais
escancarado”, dispara Feres, “mais despudoradamente parcial, distorcido e
politizado, sem nunca assumi-lo. Isso é tão intenso que o público começa a
perceber. A internet ajuda muito, porque as distorções, farsas e mentiras são
desmascaradas quase que imediatamente por esse exército de anônimos que cisma
em defender a esfera pública brasileira dessa súcia de sicofantas – para usar
uma expressão de outra era.”
Para quem gosta de decifrar símbolos e
atos falhos: a Veja, esta semana, escolheu Sith como o seu autorretrato.
Símbolo das trevas, da ambição e dos projetos sombrios.
*Jornalista
Créditos da foto: reprodução
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12