Ao transformar donos de veículos
em choferes eventuais sem nenhuma proteção, o Uber não desperta apenas a fúria
de taxistas: seu nome simboliza cada vez mais a ligação entre novas tecnologias
e precarização. O sucesso de gigantes do Vale do Silício acompanha uma onda de
desregulamentações
por Evgeny Morozov // http://www.diplomatique.org.br/
Há quase dez anos somos reféns de
dois acontecimentos transformadores. O primeiro é a existência de Wall Street;
o segundo, do Vale do Silício. Um e outro se completam maravilhosamente no
papel do policial bom e do mau: Wall Street prega a penúria e a austeridade; o
Vale do Silício exalta a abundância e a inovação.
Primeiro acontecimento
transformador: a crise financeira mundial, que culminou no salvamento do
sistema bancário, deixou o Estado social em ruínas. Os serviços públicos que
sobreviveram aos cortes orçamentários tiveram de aumentar suas tarifas ou se
viram obrigados a experimentar novas táticas de sobrevivência. Algumas
instituições culturais precisaram então, por falta de alternativa, apelar para
a generosidade dos particulares, recorrendo ao financiamento participativo: já
que as subvenções públicas desapareceram, elas não tinham outra escolha, entre
o populismo de mercado e a morte.
O segundo acontecimento
transformador, ao contrário, é muito evidente. No caso, quando se trata de
digitalizar e conectar tudo à internet – fenômeno perfeitamente normal, se
acreditarmos nos investidores capitalistas –, as instituições devem escolher
entre a inovação ou a morte. O Vale do Silício garante que a magia da
tecnologia vai naturalmente se infiltrar no menor recanto de nossa vida. Se
acreditamos nisso, nos opormos à inovação seria o mesmo que renunciar aos
ideais do Iluminismo: os dirigentes do Google e do Facebook, Larry Page e Mark
Zuckerberg, seriam os Diderots e Voltaires de nosso tempo.
No entanto, aconteceu algo
esquisito: nós passamos a acreditar que o segundo acontecimento não tinha nada
a ver com o primeiro. Assim, pudemos observar o aumento dos cursos a distância
on-line (os Mooc: Massive Open Online Courses) sem evocar as reduções
orçamentárias que, ao mesmo tempo, atingiam as universidades. Não, a febre dos
Mooc seria apenas a consequência natural da inovação promovida pelo Vale do
Silício... Os hackers, que se tornaram empreendedores, decidiram “balançar” a
universidade, como antes tinham feito na música e no jornalismo. Do mesmo modo,
agimos como se não houvesse nenhuma relação entre, por um lado, a multiplicação
dos aplicativos concebidos para acompanhar nosso estado de saúde e, por outro,
os problemas que uma população cada vez mais velha, que já sofre com a
obesidade e outras doenças, acarreta para um sistema de saúde fragilizado. Os
exemplos são abundantes e mostram que o relato exaltante da transformação
tecnológica eclipsou aquele, bem mais deprimente, da transformação política e
econômica.
É preciso ressaltar que esses
dois fenômenos estão entrelaçados e que o pano de fundo do evangelho da
inovação não é mais reluzente. Ilustração em Barcelona: como muitas das
instituições culturais espanholas, um clube de stand-up, o Teatreneu, sofria
com uma diminuição da frequência desde que o governo, procurando
desesperadamente cobrir suas necessidades de financiamento, tinha decidido
aumentar a taxa sobre a venda dos ingressos de 8% para 21%. Os administradores
do Teatreneu encontraram então uma solução engenhosa: fazendo uma parceria com
a agência de publicidade Cyranos McCann, eles equiparam a parte de trás de cada
poltrona com um tablet de última geração capaz de analisar as expressões faciais.
Com esse novo modelo, os espectadores podem entrar “gratuitamente”, mas devem
pagar 30 centavos a cada risada reconhecida pelo tablet – a tarifa mínima é
fixada em 24 euros (ou seja, 80 risadas) por espetáculo. De súbito, a média do
ingresso subiu 6 euros. Um aplicativo de celular facilita o pagamento. Em
outras palavras, você pode compartilhar com seus amigos suas próprias selfies
gargalhando.
Do ponto de vista do Vale do
Silício, temos aí um perfeito exemplo de boa “transformação”: a proliferação de
captadores inteligentes conectados à internet cria novos modelos de empresas e
novas fontes de renda. Em outras palavras, ela gera diversos empregos para os
intermediários, fabricantes de material e inventores de aplicativos. Nunca foi
tão simples comprar serviços e produtos: nossos smartphones se encarregam disso
por nós. Logo, nossas carteiras de identidade poderão fazer a mesma coisa: a
MasterCard já fechou um acordo com o governo nigeriano para lançar um RG que
também funciona como cartão de crédito.
PROBLEMAS NÃO COLOCADOS
Para o Vale do Silício, nada além
de renovação tecnológica. Trata-se de “transformar” o dinheiro líquido. Ainda
que essa explicação possa satisfazer, ou até mesmo atrair, empreendedores e
investidores, por que todo mundo deveria aceitá-la sem discussão? É preciso ser
totalmente cego pelo amor à inovação – a verdadeira religião dos nossos tempos
– para não ver seu verdadeiro preço: o fato de que, ao menos em Barcelona, a
arte se tornou mais cara. O ambiente tecnocêntrico, dissimulando a existência
da transformação financeira, oculta a natureza e as razões das transformações
em curso. Ficamos felizes em poder comprar mais, mais facilmente. Mas não
devemos nos preocupar com o fato de que, graças a essa infraestrutura, também é
infinitamente mais fácil debitar em nossa conta bancária?
Sem dúvida há muito dinheiro para
ganhar ao “transformar” as moedas. Seria isso realmente desejável? O dinheiro
líquido, que não deixa rastros, representa uma barreira significativa entre o
cliente e o mercado. A maioria das transações efetuadas com a moeda em papel é
singular, no sentido de que elas não se ligam entre si. Quando pagamos com o
telefone celular, produzimos um rastro que os publicitários e outras empresas
podem explorar.
Não é por acaso que uma companhia
publicitária está na origem da experiência de Barcelona: a gravação de cada
transação é um bom meio de recuperar os dados que servirão para personalizar as
publicidades. Isso significa que nenhuma de nossas transações eletrônicas
realmente termina: os dados que elas geram permitem não apenas seguir nossos
rastros, mas também estabelecer uma ligação entre atividades que talvez
preferíssemos que permanecessem separadas. De repente, seu momento de
gargalhadas em um clube de stand-up se aproxima dos livros que você comprou,
dos sites que você frequentou, das viagens que você fez, das calorias que você
consumiu. Em suma, com as novas tecnologias, todos os seus atos e gestos se
integram em um perfil único, monetizável e otimizável.
Ainda que essa transformação
passe pela tecnologia, suas origens se encontram em outro lugar. Favorecida
pelas crises políticas e econômicas, ela terá uma profunda incidência sobre
nosso modo de vida e nossas relações sociais. Parece difícil preservar valores
como a solidariedade em um ambiente tecnológico fundado nas experiências
personalizadas, individuais e únicas. O Vale do Silício não mente: nossa vida
cotidiana se encontra muito bem transformada; mas por forças bem mais
desonestas do que a digitalização e a conectividade. O fetiche da inovação não
deve servir de pretexto para nos fazer pagar os custos das recentes
turbulências econômicas e políticas.
Foi o que entenderam os
motoristas de táxi diante do crescimento acelerado do Uber, uma empresa que
propõe a particulares que procuram um complemento de renda transformar seu
carro em táxi, colocando estes em contato com clientes. Sufocados, os
profissionais protestaram. Como as autoridades de regulamentação, da Índia à
França, atacaram o Uber, a empresa californiana se lançou em uma operação de
sedução. Seus chefes, conhecidos como virulentos e surdos às críticas, clamam
agora, em alto e bom som, que é preciso regulamentar o setor. Eles parecem
também ter entendido por que sua empresa é um alvo fácil: suas práticas são simplesmente
ignóbeis demais. No início deste ano, sob o fogo alimentado pelas críticas, o
Uber teve de renunciar a fazer os clientes pagarem tarifas exorbitantes quando
a demanda aumentava em horários de pico. Mas isso não foi tudo. Em um golpe
publicitário genial, a empresa também propôs a um de seus mais ferozes
adversários, a prefeitura de Boston, acesso ao tesouro que constituem os dados
(anônimos) relativos aos itinerários, para ajudá-la a limitar os
engarrafamentos e melhorar a organização urbana. Claro que foi mera
coincidência o estado de Massachusetts, onde se encontra Boston, recentemente
reconhecer as plataformas de partilha de táxis como um meio de transporte
legal, eliminando com isso um dos principais obstáculos do Uber...
Este se inscreve na continuidade
das start-ups mais modestas que tornam seus dados acessíveis aos urbanistas e
às municipalidades, e ficam felizes em afirmar que com essas informações o
planejamento urbano se tornará mais empírico, participativo e inovador. Em
2014, a Secretaria de Transportes Públicos do Oregon fechou um acordo com a
Strava (aplicativo para smartphone muito popular que acompanha os movimentos de
corredores e ciclistas) e pagou uma grande soma para ter acesso aos dados que
diziam respeito aos itinerários empregados pelos ciclistas usuários do
aplicativo, com o objetivo de melhorar as ciclovias e conceber trajetos
alternativos.
O fato de que o Uber apareça como
uma reserva de dados indispensáveis aos urbanistas está completamente de acordo
com a ideologia solucionista do Vale do Silício, que consiste em resolver na
urgência pelo caminho digital problemas que não são colocados, não nesses
termos. Como as empresas de tecnologia monopolizaram um dos mais preciosos
recursos atuais, os dados, elas passaram à frente das municipalidades, tão
desprovidas de dinheiro quanto de imaginação, e podem posar de salvadoras
benevolentes dos gentis burocratas que povoam as administrações.
O problema é que as cidades que
se aliam ao Uber correm o risco de desenvolver uma dependência excessiva de
seus fluxos de dados. Por que aceitar que a empresa se torne o único
intermediário nessa matéria? Em vez de deixá-la aspirar à totalidade das
informações relativas aos deslocamentos, as cidades deveriam procurar obter
esses dados por si próprias. Em seguida, elas poderiam autorizar as empresas a
utilizá-los para introduzir seu serviço. Se o Uber se mostra eficiente, é
porque controla a fonte de produção dos dados: nossos telefones lhe dizem tudo
o que precisa saber para planejar um itinerário. Mas, se as cidades tomassem o
controle desses dados, a empresa, que não possui quase nenhum ativo, não
atingiria os US$ 40 bilhões de seu valor atual. Podemos duvidar que seja tão
custoso conceber um algoritmo capaz de relacionar oferta e demanda... Sem dúvida,
sob a pressão das companhias de táxi, cidades como Nova York e Chicago parecem
enfim ter compreendido que era preciso reagir: tanto uma como a outra tentam
lançar um aplicativo centralizado, capaz de enviar táxis tradicionais com a
eficiência do Uber. Além de impedir a dominação deste, o programa impedirá que
os dados relativos aos itinerários se tornem uma mercadoria cara – a qual as
cidades devem comprar.
O verdadeiro desafio, porém,
consiste em saber como fazer funcionar esses aplicativos com outros meios de
transporte. A visão do Uber agora aparece claramente: você lança o aplicativo
no seu telefone e um carro vem te buscar. Dizer que isso não traduz uma
imaginação transbordante seria muito abaixo da realidade. Essa abordagem
funciona nos Estados Unidos, onde ninguém mais anda a pé e os transportes
públicos são, na maior parte do tempo, inexistentes. Mas por que esse modelo
deveria ser utilizado no resto do mundo? Não é porque caminhar não traz
dinheiro para o Uber que deve ser excluído como meio de transporte. A crítica
do solucionismo se aplica aqui perfeitamente: não apenas este dá uma definição
muito estreita dos problemas sociais, mas geralmente o faz em termos que
beneficiam antes de tudo os que conceberam a “solução”.
QUEM POSSUI OS DADOS CONTROLA O
TRANSPORTE
Imagine que o aplicativo
desenvolvido por seu município pudesse informar todas as possibilidades de
transporte das quais você dispõe (excluindo o Uber): você poderia usar a
bicicleta que te espera na esquina, subir em um micro-ônibus cujo itinerário
seria adaptado ao seu destino e ao dos outros passageiros, depois andar o resto
do trajeto para saborear os charmes da feira de rua do bairro. Algumas cidades
já lançaram projetos desse tipo. Helsinki, em colaboração com a start-up Ajelo,
criou o Kutsuplus, intrigante cruzamento do Uber com um sistema de transporte
público tradicional. Os passageiros pedem uma van em seu telefone, e o
aplicativo calcula o melhor meio de conduzir todo mundo ao destino, com base em
dados em tempo real. Ele também dá uma estimativa do tempo de trajeto, tanto
com o Kutsuplus quanto com outros modos de transporte.
O sucesso de projetos como esse
depende de diversos fatores. Em primeiro lugar, os municípios não devem
considerar o Uber o único meio de melhorar a eficiência dos transportes
públicos e ainda menos de reduzir os engarrafamentos (e podemos ter certeza de
que nunca os dados que ele fornece indicarão que é preciso menos táxis e mais
ciclovias ou calçadas de pedestres). Em seguida, os combates relativos aos
serviços públicos serão vencidos pelos que possuem os dados e pelos captadores
que os produzem. Deixando tudo isso na mão do Uber – ou pior, na mão das
empresas de tecnologia gigantes que procuram monopolizar uma parte do suculento
mercado das “cidades inteligentes” –, nos privamos das experimentações que
permitirão às coletividades organizar seus transportes como bem entenderem.
A parceria entre o Uber e a
cidade de Boston levanta, entre outras, uma questão política: podemos autorizar
o Uber a “possuir” os dados de seus clientes, para que utilize como um trunfo
em suas negociações com os municípios ou para que queira simplesmente vendê-los
a quem oferecer mais? O Uber, sem realmente ter levantado a questão a quem quer
que fosse, respondeu afirmativamente. Como Google e Facebook tinham feito
antes.
A realidade tem, no entanto, mais
nuances, principalmente porque os captadores integrados nas infraestruturas
públicas podem facilmente reproduzir esses dados. Imagine o que seria capaz de
fazer uma rede que combinasse os leitores automáticos de placas de carro, das
estradas e dos faróis de sinalização inteligentes: ela poderia identificar e
seguir veículos Uber exatamente como fazem os smartphones de seus condutores e
passageiros. Não se trata de pregar o aumento da vigilância, mas simplesmente
de ressaltar que o Uber se pretende proprietário de dados que não lhe
pertencem.
Não é porque ele vem da
Califórnia, região conhecida pela péssima qualidade de seus transportes
públicos, que devemos acreditar que os veículos individuais motorizados são o
futuro dos transportes. É infelizmente o que poderia acontecer por causa da
diminuição dos investimentos em infraestruturas públicas. Mas, desse modo, a
solução seria restabelecê-los e, para isso, combater as políticas de cortes
orçamentários.
Evgeny Morozov
Evgeny Morozov é autor de To save everything,
click here. Technology, solutionism, and the urge to fix problems that don’t
exist [Para salvar tudo, clique aqui. Tecnologia, solucionismo e a
pulsão de consertar problemas que não existem], Allen Lane, Londres, 2013.
Ilustração: Bernardo França
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