A desembargadora Kenarik
Boujikian foi acusada de delito funcional por ter soltado 10 presos que haviam
cumprido suas penas mas se mantinham encarcerados.
Camila Spósito * // www.cartamaior.com.br
A desembargadora Kenarik
Boujikian, da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, está
sendo processada e pode sofrer punição por suposto delito funcional, ao decidir
monocrática e cautelarmente pela soltura de 10 presos que se mantinham encarcerados,
não obstante já tivessem cumprido suas penas.
Em termos jurídicos,
monocraticamente significa decidir sozinha, o que teria supostamente ofendido o
princípio da colegialidade de acordo com a visão do acusador de Kenarik, o
desembargador Amaro José Thomé Filho. Cautelarmente significa medida de
urgência, tendo em vista circunstâncias especiais.
A acusação (representação, para
os do ramo) foi feita perante a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São
Paulo em agosto de 2015, mas tornou-se pública apenas na última semana de
janeiro de 2016, em 28.01.2016, quando o desembargador Arnaldo Malheiros,
relator do caso, pediu sua rejeição e arquivamento. Isto é, que nem fosse
levada à julgamento a acusação.
Contudo, outros dois magistrados
pediram vista, o que demonstra que veem alguma razoabilidade nos argumentos de
Amaro. Ainda não há data marcada para a próxima sessão. Quem decidirá a
pendenga são 25 julgadores, colegas de trabalho dos envolvidos.
Ocorre que a possibilidade de
decidir como Kenarik está garantida no Regimento Interno do próprio Tribunal de
Justiça de São Paulo, em seu artigo n. 232, que concede poderes ao juiz relator
para proferir decisões sobre medidas cautelares no âmbito penal, como a prisão
preventiva. Justamente o caso.
Mais um detalhe: não era a
primeira vez que a juíza decidia dessa forma e nem é a única juíza que assim o
faz neste Tribunal. O acusador Amaro apresentou 11 processos nos quais ela
teria violado o princípio da colegialidade, mas seus advogados o corrigiram e
apresentaram 50 no período recente.
Mais: legar que o princípio da
colegialidade foi ofendido não passa de falácia. Tal princípio não prescreve
que todas as decisões devam ser tomadas em conjunto – apenas que elas devem ser
passíveis sempre de análise pelo colegiado, mesmo quando, por urgência,
precisam ser tomadas por algum juiz Relator individualmente.
Por fim, não há nenhum indício de
desentendimento pessoal entre Kenarik e Amaro e, ao que tudo indica, ambos são
juristas renomados, ou seja, conhecem bem os artigos explicitados acima.
Com o direito e o próprio costume
jurisprudencial ao seu lado, além a completa ausência de questões individuais
relevantes, o que explica a acusação de Kenarik?
Para entender bem um fato, não
basta descrevê-los com precisão. É preciso articulá-lo com o contexto sócio
histórico no qual está imerso, bem como com outros fatos que estão soltos por
aí, para que possamos tirar algum sentido, social e individualmente, desta
história.
A desembargadora Kenarik tem
reconhecida reputação de militante dos direitos humanos. Natural da Síria,
abrasileirou-se e ingressou na magistratura em 1989, tendo, desde o início,
denunciado o machismo que causava desequilíbrio expressivo no ingresso de
mulheres na área - em São Paulo, as primeiras juízas só apareceram em 1981 e
até hoje o órgão mantém a (des)proporção de três mulheres para 66 homens.
Sua fama cresceu em casos
emblemáticos, como o julgamento do médico Roger Abdelmassih, condenado a 278
anos de prisão por ter estuprado dezenas de suas pacientes enquanto estavam sob
efeito de sedativos.
Ela é co-fundadora da Associação
Juízes pela Democracia, cujo ideal é “reunir institucionalmente magistrados
comprometidos com o resgate da cidadania do juiz, por meio de uma participação
transformadora na sociedade, num sentido promocional dos direitos
fundamentais”.
A necessidade de existência de
uma instituição assim, organizada em paralelo ao judiciário, só evidencia que
seus princípios e objetivos não são unanimidade, remam contra a maré na
magistratura. O comum entre muitos magistrados não é pensar em transformar a
sociedade com alvo nos direitos fundamentais, mas talvez preservar o status quo
visando um ideal de segurança. Kenarik está acostumada a ser minoria e a
decidir em favor dos direitos fundamentais com urgência quando a vida e a
liberdade de alguém estão em jogo, se colocando não apenas como juíza, mas como
cidadã.
O desembargador Amaro José Thomé
Filho virou juiz recentemente, em 20.2.2014, mas sem prestar concurso – foi por
indicação do “quinto constitucional”, isto é, vaga reservada ao Ministério
Público, que envia uma lista de seus escolhidos.
Amaro desempenhou a função de
Promotor de Justiça desde 23.12.1986. Está acostumado a acusar, portanto, e
mesmo deixando de ser Promotor e tendo virado magistrado, cuja função na
sociedade é radicalmente outra, continua exercendo esse papel, agora contra
aqueles que se preocupam mais com a garantia dos direitos humanos do que com
punição.
A desavença ideológica entre
Kenarik e Amaro não surpreende e já poderíamos antecipar algum tipo de
animosidade entre os dois. O que surpreende é que essa animosidade e essa
desavença ideológica tenha, pelas mãos de Amaro e em exercício de sua função de
juiz, deixado de ser saudável desacordo democrático para ser perseguição
machista e institucional.
O machismo neste caso pode não
estar óbvio para o leitor não acostumado a estudar opressões de gênero
(principalmente homens, os opressores nesta questão específica). Nem é fácil de
se explicar, visto que exige compreensão de noções como patriarcado e
coronelismo, que fugiriam ao escopo deste texto. Mas se você está familiarizado
com a distinção entre conservador e progressista, sabe que Amaro representa,
nesse episódio, o primeiro, enquanto Kenarik representa o segundo – e o
conservadorismo é um conjunto de ideias que contém o machismo como um
ingrediente essencial e, não por acaso, se manifestou neste episódio.
Como dissemos há alguns
parágrafos: o pulo do gato é fazer o link entre as informações, para conseguir
enxergar a realidade completa e não apenas fragmentos aparentemente
desconjuntados. O conservadorismo em Amaro, a eleição de sua antagonista em
Kenarik, a proporção de mulheres no judiciário, o histórico de cada um, tudo
isso colocado lado a lado permite que o raciocínio se complete para enxergar a
estrutura de poder que subjaz ao nosso objeto de análise. A estrutura de poder
que é machista e se reproduz em cada parte micro para que ela se mantenha no
macro.
E perceba que não se trata de
caça tendenciosa aos fatos que são favoráveis à construção de uma tese, pois
investigamos também aqueles que poderiam aparentemente desmontar a
classificação de machista – um problema pessoal, por exemplo.
Porém, ainda que não seja
conscientemente machista a motivação de Amaro para perseguir Kenarik, as
motivações pessoais não importam quando vamos classificar um fato social. O
objetivo aqui é investigar o que o fato significa na sociedade e não na
psicologia pessoal dos envolvidos. À medida em que isso se objetifica e se
integra ao mundo, seu sentido é massificado, suas particularidades diluídas.
Como uma gota de cor um pouco mais clara que se integra a um rio lamacento.
Objetivamente, é mais uma das
poucas mulheres no judiciário que, não por acaso, tem perturbado o exercício de
sua função de juíza, como poucas vezes ocorre com homens em igual situação.
Ao apresentar representação
contra Kenarik, Amaro não pretende coibir decisões monocráticas, que, como o
próprio sabe, são permitidas e necessárias ao bom funcionamento do judiciário.
Ele quer é ver condenada a militância por direitos humanos de Kenarik, o olhar
cidadão de uma juíza que se preocupa com aquele que está preso injustamente,
que enxerga no preso um ser humano. Que considera a justiça além da punição. E
principalmente: sua audácia só é possível porque sua rival é uma mulher.
Minoria nas ideias e na identidade dentro do Tribunal.
É por isso que esse processo não
é simbólico e a decisão que tomarem nele demarcará derrota ou vitória
importante para a sociedade. Não está em jogo apenas a questão ideológica,
Direitos Humanos versus Justiça Punitiva. Está em jogo também a independência
do Juiz, um princípio cuja importância é cabal principalmente em casos como o
de Kenarik, que exerce sua função de juíza com zelo e preocupação ímpares,
muitas vezes contrassenso.
É o momento de o Tribunal
reafirmar-se como um espaço democrático e sensível à grave questão de gênero
que perdura em seu interior. Também, é a oportunidade de mostrar para a
sociedade que a Justiça que temos é aquela de todos, e não apenas dos que estão
fora das grades.
Todas as mulheres, de todas as
profissões, estão representadas em Kenarik. Perseguidas com facilidade apenas
porque são mulheres. Todos e todas que não deixam de enxergar no preso um ser
humano, também estão representadas em Kenarik.
Todo o nosso apoio à Kenarik e ao
Tribunal de Justiça de São Paulo, que confiamos fará desse julgamento um ponto
de luz e de avanço. Todo nosso apoio ao Ministério Público também, para que
escolha bem seus representantes no Tribunal.
(*) Camila Spósito é advogada,
integrante do Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP, graduada e
mestranda pela mesma instituição.
Créditos da foto: EBC
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