É fato inegável: há muito ódio,
raiva, rancor, discriminação e repulsa na sociedade brasileira. Ela sempre
existiu de alguma forma. Ou alguém acha que os milhões de escravos humilhados e
feitos “peças” e as mulheres à disposição da volúpia sexual dos patrões e de
seus filhos, não provocava surdo rancor e profundo ódio? É o que explica os
centenas e centenas de quilombos por todas as partes no Brasil. E o ódio dos
patrões que com o chibata castigavam seus escravos desobedientes no pelourinho?
O ódio pertence à zona do de
mistério. A própria Bíblia não sabe explica-lo e o vê já presente desde o
começo, no jardim do Éden; o primeiro crime ocorreu com Caim que por inveja,
que produz ódio, matou a seu irmão Abel. O mandamento era claro: ”Amarás o teu
próximo e odiarás o teu inimigo”(Levítico 19,18; Mateus 5,43). O ódio é inimigo
dos homens e de Deus e ele semeia a cizânia na terra (Mt 13,19).
Mas eis que vem Jesus e reverte a
lógica do ódio: ”Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”(Mt 5,
44). Ele mesmo sucumbiu ao ódio de seus inimigos mas, aceitando livremente a
morte, “venceu a morte pela morte” e
assim derrubou “o muro da inimizade que dividia a humanidade”(Ef 2,14-16).
Prega e vive o amor incondicional para amigos e inimigos. Inaugurou assim uma
nova etapa de nossa humanização.
Mas esse ideal nunca se
transformou em cultura nos países cristianizados. Estamos ainda no Velho
Testamento do “olho por olho, dente por dente”.
No Brasil a raiva e o rancor
histórico foi acrescido depois das eleições de 2014. Houve quem não aceitou
a derrota e deslanchou um torrente de
raiva e de ódio que contaminou não
apenas o partido vencedor, mas toda a sociedade. Inegavelmente criou-se um
consenso ideológico-político de alguns meios de comunicação que, com total
desfaçatez, difundem esse sentimento. O
que leva um radialista da Rádio Atlântica FM, ligada à RBS gaúcha,
conclamar a população a “cuspirem na cara do ex-Presidente Lula” senão um ódio
explícito e incontido? A verdadeira perseguição judicial que Lula está sofrendo, tentando enquadrá-lo em algum
crime, é movida não tanto pela fome e sede de justiça, mas pela vontade de punir, de desfigurar seu carisma e
liquidar sua liderança. Grassa um maniqueísmo
avassalador que amargura toda a vida social. Bem dizia Bernard Shaw:”o
ódio é a vingança dos covardes”.
Mas tentando ir um pouco mais a
fundo na questão do ódio, precisamos reconhecer que ele se enraíza em nossa
própria condição humana, um feixe de contradições. Somos, por natureza, e não
por desvio de construção, seres contraditórios, compostos de ódios e de amores,
de abraços e de rejeições. É a escolha que fizermos que irá dar rumo à nossa
vida: ou a benquerença ou a aversão. Mesmo escolhendo o amor, o ódio nos acompanha
como uma sombra sinistra. Se não cuidamos dele, ele invade nossa consciência e
produz sua obra nefasta.
Esse realismo o encontramos na
Bíblia. Mas também num pensador como Bertrand Russel que observou com acerto:
”o coração humano tal como a civilização moderna o modelou, está mais inclinado
para o ódio do que pra a fraternidade”. Lógico, se ela colocou como eixo
estruturador a concorrência e não a colaboração e a luta de todos contra todos
em vista da acumulação privada, entende-se que predomine a tensão, a raiva, a
inveja a ponto de o lema de Wall Street ser :”greed is good”: a cobiça é boa.
Mas há um ponto que precisa ser referido, observado
já por F. Engels quando escreveu uma introdução ao livro de Marx sobre “A luta
de classes na França”: ”Se houver alguma possibilidade de as massas
trabalhadoras chegarem ao poder, a burguesia não admitirá a democracia sendo
até capaz de golpeá-la”. Ora, através de Lula, o PT e seus aliados, vindo das
massas trabalhadoras, chegaram ao poder. Isso é inadmissível pelos “donos do
poder”(R. Faoro). Estes procuram
inviabilizar o governo de cunho popular, desconsiderando o bem comum.
Aqui valem as palavras sábias do
velho do Restelo de Camões: “Ó glória de mandar, o vã cobiça/Desta vaidade a
quem chamamos fama./Ó fraudulento gosto, que se atiça/Com uma aura popular que
honra se chama” (Cântico IV, versos 94- 95). Por detrás da busca ”da glória de
mandar” e do poder, revestido de raiva e de
ódio, se esconde, atualmente, a vontade
daqueles que sempre o detiveram e que agora o perderam e fazem de tudo
para recuperá-lo por todos os meios possíveis.
Leonardo Boff é articulista do JB
on line e escreveu:Virtudes por um outro mundo possível(3 vol.),Vozes 2005.
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