http://www.brasil247.com/ PAULO MOREIRA LEITE
Embora Julian Assange tenha
recebido uma sentença favorável do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre
Detenções Arbitrárias, que concluiu que ele está preso ilegalmente na
Inglaterra e foi perseguido injustamente pela Suécia, os antecedentes ensinam que
será necessário enfrentar uma batalha política duríssima para que seja colocado
em liberdade e autorizado a deixar a embaixada do Equador em Londres, onde se
encontra refugiado há três anos e 7 meses. O problema é político.
A decisão é fruto de uma
investigação de 16 meses e o Grupo de Trabalho tem antecedentes respeitáveis,
envolvendo a denúncia de prisões sob ditaduras asiáticas. Também apurou o caso
do jornalista Jason Rezaian, chefe do escritório do Washington Post em Teerã,
preso pelo regime iraniano entre julho de 2014 até janeiro de 2016, quando foi
incluído no pacote de negociações que encerraram o boicote ocidental ao Irã.
Mas tanto o governo britânico,
que mantém a embaixada do Equador sob vigilância, como o governo da Suécia, que
tem um mandato para que ele seja extraditado para responder a uma acusação de
estupro que nunca foi clara nem convincente, já disseram que não pretendem
seguir a decisão do Grupo de Trabalho. Podem fazer isso porque não é uma
sentença de cumprimento obrigatório. É uma recomendação, de valor político
inegável, mas de efeito prático duvidoso numa instituição que tem sido
questionada e desobedecida com frequência, em especial quando suas deliberações
atingem frontalmente o interesses dos Estados Unidos e seus aliados
preferenciais, inclusive em questões votadas pela maioria dos países-membros,
como a invasão do Iraque e a permanência de tropas de Israel em territórios
palestinos.
A acusação real contra Assange é
ter divulgado um pacote de 250 000 documentos diplomáticos que demonstravam o
envolvimento do governo dos Estados Unidos em crimes de guerra e corrupção, em
especial no Afeganistão e no Iraque. Não foi um serviço solitário, diga-se. Ele
contou com auxílio de seis entre os principais jornais do planeta, que
traduziram, editaram e publicaram a documentação recebida, sem selecionar nem
editar.
Os resultados foram inevitáveis
prejuízos políticos, militares e diplomáticos à política imperial
norte-americana e seus aliados, entre os quais a Inglaterra, governada na época
pelo trabalhista Tony Blair. Segredos e mentiras puderam ser desmascarados,
impiedosamente -- o que é sempre útil ao debate público e à formação do cidadão
comum. A denúncia sobre uso de tortura em centros clandestinos de interrogatório
ganhou novo contexto e outra dimensão após revelações tão graves. O permanente
esforço da diplomacia dos Estados Unidos para dar um aspecto civilizatório a
sua intervenção em países estrangeiros ganhou uma nova fisionomia, mais
realista, como nunca se vira antes. Você pode apoiar ou rejeitar a diplomacia
dos EUA mas desde então passou a conviver com dados mais completos -- e até
cruéis -- sobre suas implicações.
Esta é a principal herança --
política e cultural -- de Julian Assange e do Wikileaks, o que permite entender
por que tenha se transformado em alvo de Washington, em sequência com o
tratamento dado a Chelsea Manning, principal fonte da documentação. Atuando na
área de informação militar, hoje Manning cumpre sentença de 35 anos de prisão
por traição. Antes do julgamento, enfrentou um regime que uma investigação da
ONU -- mais uma vez! -- definiu como "desumana" e
"degradante."
Pelos antecedentes, o destino de
Assange guarda semelhança com o enredo inicial de Daniel Ellsberg, que em 1971
ajudou a população dos Estados Unidos a conhecer os bastidores políticos e
militares da Guerra do Vietnã pela revelação dos chamados Papéis do Pentágono,
que mostravam que o governo Lindon Johnson havia "mentido
sistematicamente" ao povo dos Estados Unidos e ao Congresso sobre o
andamento do conflito. Resta saber se
haverá um desfecho semelhante.
Numa decisão que não era tomada
desde a Guerra Civil (1861-1865), o New York Times foi submetido a censura
judicial, até que medida foi derrubada em segunda instância, quando outros
jornais, não atingidos pela proibição, passaram a publicar os papéis
censurados.
Num esforço para desmoralizar
Ellsberg, o governo Richard Nixon reuniu o mesmo grupo de operadores
clandestinos que mais tarde ficaria conhecido no escândalo Watergate, para
procurar detalhes sobre sua vida privada, inclusive medicamentos psiquiátricos.
Levado a um tribunal de primeira instância, Ellsberg foi impedido pelo próprio
juiz de apresentar um ponto essencial de sua defesa, que era explicar porque
considerava que não havia cometido nenhuma ilegalidade ao divulgar os
documentos.
Com o risco de ser condenado a
135 anos de prisão com base numa lei contra espionagem de 1917 -- a mesma que
pode ser usada contra Assange caso venha a ser extraditado para os EUA --, a
sorte de Ellsberg só começou a mudar quando se descobriu a atividade dos
operadores da Casa Branca. Soube-se inclusive que um deles, o inesquecível John
Ehrlinchman se reuniu com o juiz do caso, a quem ofereceu um emprego de diretor
do FBI, mas a oferta não foi aceita.
Outro operador, chegou a preparar
uma ação destinada a "neutralizar" Ellsberg. O plano, algo
rocambolesco, consistia usar garçons ligados ao serviço secreto para misturar
drogas alucinógenas em sua comida durante um jantar beneficiente. O plano não
foi levado a cabo por um problema de datas. Em função das diversas delinquências
cometidas pelos auxiliares de Nixon que participavam da acusação, as denúncias
contra Ellsberg foram retiradas.
Episódios grandes e pequenos contribuíram
para este desfecho, a começar pela oposição cada vez mais dura da juventude dos
Estados Unidos a guerra do Vietnã e o enfraquecimento geral do governo Nixon,
que levaria a sua renuncia, apenas um ano depois do julgamento de Ellsberg,
quando o caso Watergate se tornou uma pressão irresistível.
Vitorioso pela decisão do Grupo
de Trabalho, Assange e seus aliados necessitam transformar a imensa simpatia
obtida pelo Wikileaks em força política real. Australiano, Assange recebeu
nesta sexta-feira uma oferta de assistência consular por parte do governo de
seu país, que até agora fazia o possível para ignorá-lo. Mas o Guardian, jornal
que veiculou as principais denúncias do Wikileaks, liderando o grupo de
veículos que republicaria os documentos em vários países, publicou um editorial
criticando a decisão do grupo de trabalho da ONU. O jornal discordou da
definição de "detenção arbitrária" aplicada ao caso de Assange. Mesmo
admitindo que uma extradição para a Suécia possa ser utilizada para que Assange
acabe conduzido a um julgamento desfavorável nos EUA, o jornal defende que ele
se defenda da acusação de estupro, lembrando que uma delas só irá prescrever em
2020.
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