Nas eleições de 1989, a Nação
tomou conhecimento, horrorizada, de que Lula, o operário de origem nordestina,
tinha um som três em um.
Como se atrevia? A sua condição
de integrante da nossa Senzala exigia que ele tivesse, no máximo, um modesto
radinho de pilha. Seu adversário, Collor, bem-nascido na Casa Grande, podia ter
o som que quisesse. Afinal, desigualdades e privilégios herdados desde as
capitanias são o negócio e a alma do Brasil. É algo natural.
Agora, a Nação toma conhecimento,
de novo com horror moral, que Lula frequenta um sítio em Atibaia, onde pesca
lambaris e tilápias a bordo de um nababesco bote de R$ 4 mil. Não bastasse,
Lula teria tentado comprar um apartamento a beira-mar. Tentou e não comprou.
Mas o horror moral permanece. Como se atreve? Tendo a sua origem em nossa
Senzala, Lula poderia almejar, no máximo, uma casinha do Minha Casa Minha Vida,
quiçá uma bucólica palafita, em alguma periferia infecta.
Agora, imaginem se essas
“acusações” fossem esgrimidas contra algum grande político da oposição, como
FHC ou Aécio. Seriam motivo de chacota generalizada, é claro. Mesmo se
insinuassem, sem provas, como fazem com Lula, que tais imóveis teriam sido
reformados por alguma empreiteira, ninguém acharia nada de mais.
Por quê? Porque empreiteiros,
grandes empresários e destacados políticos conservadores fazem parte da mesma
classe social. São provenientes da nossa Casa Grande. Têm os mesmos interesses.
São “amigos”, são “sócios”. Moram nos mesmos bairros, frequentam os mesmos
lugares. Estudaram nos mesmos colégios.
Assim, quando se revelou que a
estrada da fazenda de FHC teria sido construída por uma empreiteira, a nossa
destemida imprensa não achou nada de mais. Também acham natural quando tomam conhecimento
que FHC frequentaria luxuoso apartamento em Paris, propriedade de um “amigo”.
Agora, imaginem se tais
informações fossem relativas a Lula. Que a estrada para o sítio de Atibaia
tivesse sido construída por uma empreiteira. Que Lula frequentasse apartamentos
na Avenue Foch. Ou, ainda, que no sítio de Atibaia tivessem mandado construir
um aeroporto com verba pública. Qual seria a reação da nossa isenta e
profissional imprensa? Não é preciso muito esforço de imaginação, não é?
No caso de políticos bem-nascidos
e conservadores, essa promiscuidade entre poder econômico e poder político é
considerada natural. Ela está legitimada pela origem social e até mesmo por
relações pessoais.
No caso de Lula, político da
Senzala, essa relação, mesmo que ocasional e distante, será sempre considerada
corrupta. Lula pegou carona num jatinho
de um empresário? “Aí tem”. Aécio fez a mesma coisa? “Nada de mais, os caras
são amigos, sócios”. Lula adoeceu? “Tem de se tratar em hospital público e
frequentar filas do SUS. Afinal, quem está pagando essa conta?” Figueiredo
ficou doente? “Tem de mandar ele para o exterior, se tratar num hospital de
ponta.”
FHC defendeu nossas empreiteiras
na exportação de serviços e ainda elogiou o Odebrecht? “Tudo bem, como estadista, ele estava
defendendo os interesses do país e de suas empresas”. O Lula fez a mesma coisa?
“Ah! Aí tem, mesmo! O petralha deve ter ganhado uma baba de propina para fazer
isso.”
O mesmo vale para os partidos.
Partidos da Casa Grande podem ter relações estreitas com o poder econômico.
Partidos que tiveram sua origem na Senzala, não. Nesse último caso, qualquer
relação será corrupta. O PSDB e seus candidatos receberam grandes doações de
empreiteiras? “Natural. Doaram por acreditar numa causa justa”. O PT também?
“Ah! Isso aí só pode ser propina disfarçada de doação legal.”
E o que é mero pecadilho em um
pode se transformar num enorme escândalo em outro. O PSDB montou um esquema de
caixa dois de campanha? “É fato corriqueiro, um erro isolado, que deve ser
julgado, sem alarde, na justiça comum”. O PT usou do mesmíssimo esquema? “Ah!
Nesse caso, trata-se do maior escândalo de corrupção da História do Brasil! Tem
de ser julgado, com enorme alarde, pelo Supremo.”
O PSDB pedalou? “Tudo bem.
Estavam tentando ajustar o Orçamento e cumprir seus compromissos de governo”. O
PT pedalou também? “Ah! Aí tem. Justifica o impeachment.”
Entretanto, o problema maior de
Lula, para os nossos reacionários neoudenistas, não está na sua origem, está
nas suas escolhas.
Lula não é apenas um político
oriundo da nossa Senzala. Lula fez a escolha fatal de ser um político para a
Senzala.
Lula tomou a decisão de incluir a
Senzala na Casa Grande. De incluir os excluídos. De eliminar a pobreza. De
reduzir a nossa desavergonhada desigualdade. De combater atávicos privilégios.
Lula cometeu o erro imperdoável
de combater nossa principal e histórica corrupção: a miséria e a desigualdade.
O grande erro de Lula foi ter
tentado transformar nosso capitalismo selvagem num capitalismo minimamente
civilizado. Sonho da clássica socialdemocracia, pesadelo de nossa elite
predatória e excludente.
Tivesse Lula mudado de lado,
governado exclusivamente para Casa Grande, como sempre se fez, ainda assim ele
seria um outsider, um penetra na festa dos “donos do poder”. Mas seria um
penetra tolerado. Cumpriria, em nosso sistema político, a mesma função que o
isolado articulista progressista cumpre num jornal maciçamente conservador:
legitimar o conservadorismo sob o disfarce da pseudopluralidade política.
Porém, como fez a escolha que
fez, Lula não é apenas um penetra, é um perigoso subversivo. Ainda mais agora,
quando a crise mundial impõe, aos olhos dos verdadeiros donos do poder, a volta
da desigualdade e do desemprego como condição sine qua non para a retomada do
crescimento.
Lula, com sua possível
candidatura em 2018, ameaça a recomposição das grotescas taxas de lucro. Esse é
o ponto. É isso que verdadeiramente escandaliza e amedronta as nossas elites.
Não é o “triplex” que não obteve; é a terceira vitória eleitoral que fatalmente
obteria, caso não seja impedido. O problema é o “triplex” político; não o
apartamento no Guarujá.
Lula é o grande obstáculo à
pretendida restauração neoliberal, que ameaça varrer com todas as experiências
progressistas recentes da América Latina.
Por isso, deve ser destruído,
custe o que custar.
Para isso, não são necessárias
provas, não são necessários sequer indícios.
Basta a cortina de fumaça de
suspeitas constantemente alimentada pela fogueira midiática do autodefinido
maior partido de oposição e pela ação investigativa partidarizada de
autoridades que não têm pejo de se desfazer de qualquer resquício de
republicanismo. Basta levantar suspeitas até sobre o proletário isopor das
pescarias.
Basta o ódio da oposição sem
propostas que, quem diria, acabou no Guarujá.
Basta brandir, aos quatro ventos,
a origem e a escolha.
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