O Jornalismo tentou se afirmar
como espaço de informação e conhecimento, mas passou a ser um subproduto dentro
dos conglomerados midiáticos.
Francisco José Castilhos Karam -
Observatório da Imprensa // www.cartamaior.com.br
Em 1988, o psicanalista Jurandir
Freire Costa alertava que a sociedade brasileira poderia estar chegando a um
perigoso ponto de não-retorno. Ela estaria incorporando quatro valores:
cinismo, narcisismo, violência e delinquência. À época, seus estudos tinham
como referência, entre outros, as ideias de Peter Sloterdijk. O filósofo alemão
havia escrito, desde a década de 1970, artigos sobre o cinismo. Suas ideias
culminariam no clássico livro “Crítica da razão cínica”, publicado na Alemanha
no início dos anos 80, com grande repercussão naquele País e Europa em geral.
Mais tarde, além de outros idiomas, foi traduzido para o espanhol (1989) e para
o português (2012). Nele, o autor aborda o crescimento do cinismo em escala
institucional e pessoal na contemporaneidade. Para Sloterdijk, sob a capa das
instituições e grupos, e em contrapartida com discursos de interesse público,
crescem os componentes cínicos que se amparam em interesses privados.
Sloterdijk era cético com o
destino das instituições. Em relação à mídia, considera viver num mundo
aparentemente “superinformado” e, no entanto, de notícias “hipertrofiadas”.
Estudioso do cinismo que se agigantava, o autor alemão era descrente em relação
às potencialidades midiáticas tradicionais para a democracia. E, por extensão,
do jornalismo com sua volumosa informação, que para ele era cada vez mais um
espaço de mediação pública de interesses privados. E com a colaboração
crescente de jornalistas que incorporam tal “valor”, de forma ingênua ou não,
conscientemente ou não…
Já o ponto de não-retorno de
Freire Costa atingiria diversas instituições e o comportamento individual.
Segundo o psicanalista, a cultura do cinismo deriva da cultura narcísica e “se
não há como recorrer a regras supraindividuais, historicamente estabelecidas
pela negociação e pelo consenso, para dirimir direitos e deveres privados, tudo
passa a ser uma questão de força, de deliberação ou de decisão, em função de
interesses particulares. Donde o recurso sistemático à violência, à
delinquência, à mentira, à escroqueria, ao banditismo ‘legalizado’ e à demissão
de responsabilidade, que caracterizam a ‘cultura cíniconarcísica’ dos dias de
hoje” (Costa: 1989, p. 30-31).
O que o Jornalismo tem a ver com
isso?
O Jornalismo tentou se afirmar,
nos últimos 300 anos, como espaço de informação, conhecimento e esclarecimento
sociais, baseado na crença de que tem legitimidade social para isso e
fundamentado na credibilidade das informações que por ele circulam. Desde a década de 1970 passou a ser quase um
subproduto dentro dos conglomerados midiáticos, em que cada vez mais sócios de
empresas de fora da mídia atuam dentro dele, a ponto de não se saber quem
investe em quem: se acionistas investem na produção informativa e interferem na
adequação a seus interesses; se empresários da mídia e do jornalismo investem
em empresas de fora da área para fortalecer interesses particulares que não
estão mais no próprio modelo de negócios;
ou, afinal, se são um só faz muito tempo e hoje as coisas ficaram apenas
mais claras, mais descaradas…
O que vem acontecendo, de forma
reiterada, é de uma desfaçatez enorme diante da ideia de esclarecimento público
e da defesa de que o jornalismo é o porta-voz da controvérsia e, portanto, a
liberdade de expressão é sagrada, bandeira não só dos profissionais – a maioria
honestos -, mas também de empresários – a maioria envolvida em sonegação de
impostos, achaque dos cofres públicos e política de demissões e rotatividade
sem qualquer piedade, embora sempre defendam o jornalismo, em quaisquer
circunstâncias oficiais, como vinculado ao interesse público, à informação de
qualidade, à fidelidade sobre a história do cotidiano.
Talvez por isso que Sloterdijk
tenha escrito que “cinicamente dispostas estão estas épocas de gestos vazios e
de fraseologia refinadamente tramada, em que sob cada palavra oficial se
ocultam reservas privadas” (1989: v. II, p. 209);
O cinismo e o narcisismo tem se
configurado em diversas coberturas, opiniões, comentários e tratamentos dos
fatos, apesar de vários profissionais darem o melhor de si para a profissão e a
sociedade em muitas matérias, em variadas notícias e reportagens. E sejam
honestos em comentários. No entanto, isso parece ser cada vez mais exceção na
grande empresa jornalística. O processo que engole e ameaça jornalistas é
dilacerante para a profissão e presume que o jornalismo, para sobreviver com o
melhor que conseguiu nos últimos séculos, estaria fora do modelo de negócios
tradicional, este hoje e de forma inexorável muito mais pautado pelos critérios
de audiência do que por relevância temática social. E acentua de forma
descarada esta vertente a cada dia…
Rapidamente, três exemplos:
1. Na semana de 25 a 29 de janeiro,
o Jornal Nacional exibiu série de reportagens sobre os problemas da saúde no
Brasil, focando, claro, no setor público, tratando do SUS, dos hospitais
públicos… O JN esmerou-se em retratar as mazelas pelas quais passa o povo
brasileiro em atendimento médico e em tratamento de doenças como câncer e
várias outras: filas, espera, mau atendimento, falta de estrutura e tantos
outros problemas foram apontados. Isso para o tratamento público e gratuito.
Situações reais. Mas durante muito tempo, e hoje, todo o jornalismo da Rede
Globo, e especialmente o JN, fez campanha aberta pela redução dos gastos públicos,
pelo enxugamento da máquina pública. Depois de intensa e sistemática campanha
ao longo de anos, mobilizando a sociedade para cortes em todas as áreas do
Estado, há um claro cinismo – e responsabilidade – quando falta dinheiro para
qualquer área social, incluindo a saúde. Além disso, o JN esquece de dizer que
uma parte da estrutura e do dinheiro que falta é responsabilidade da própria
emissora e do grupo que representa, sonegador de impostos e com dívidas que
ultrapassam a casa do bilhão de reais com a União. Se a dívida fosse paga,
certamente seria de muita valia para o uso na área da saúde, como de resto tem
sido o atendimento feito, se não perfeito, em geral bem razoável, por exemplo,
pelos postos de saúde, hospitais públicos e o setor em geral e que tem logrado
salvar muita gente. E ainda mais quando o próprio grupo do qual faz parte o JN
esperneia quando o governo ameaça cortar gastos de publicidade, bilionário ao
longo dos anos. É o cinismo que beira à delinquência jornalística, à
escroqueria: o grupo Globo recebeu do Estado brasileiro – ou seja, “saiu do meu
bolso, do seu bolso, da saúde” – mais de seis bilhões de reais nos últimos 12
anos;
2. Na edição de 30/01/2016, a Folha
de S. Paulo traz matéria, quase humorística, assinada por Flávio Ferreira. Em
editoria específica de “brasil em crise” (em minúsculo mesmo), o critério de
noticiabilidade utilizado pela Folha colocou, no primeiro plano e em tom
acusatório, a sensacional informação de que “Mulher de Lula adquiriu barco para
sítio”. Um barco que não chega a cinco mil reais; uma propriedade que não se
compara em valor às de Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso e a de tantos
outros ex-presidentes, parlamentares, mulheres de parlamentares e de
presidentes. E que jamais foi notícia. Trata-se de uma peça jornalística que
beira à delinquência e ao cinismo, feita a mando talvez para tentar corrigir os
continuados dados equivocados sobre o triplex de Lula, sobre os imóveis e
negócios comprados sem prova alguma por filho de Lula (Havan, entre eles), pelos
“ilícitos” nunca provados feitos pelo ex-presidente, que além de não serem
ilegais, muitas vezes foram feitos à luz do dia e em função de parcerias de
governo, seja com Estados Unidos ou Cuba, conforme deve ser em qualquer relação
comercial entre dois países. Suspeitas, sempre suspeitas, e mais suspeitas… Se
houvesse provas já haveria faz muito tempo. O mesmo ocorreu quando parte do
jornalismo brasileiro insistia em atacar Leonel Brizola sem nunca provar nada;
3. É quase autoexplicativa a seleção
feita pelo site/blog Mídia Independente Coletiva, feita a partir do site do G1
(Rede Globo) e como este trata determinados assuntos. É exemplar e pedagógica.
O cinismo bate à porta e ocupa o posto do jornalismo:
O crescente número de agressões e
processos contra profissionais e empresas está num quadro de perda de
legitimidade e de credibilidade, valores que precisam ser arduamente
recuperados. No entanto, na lógica empresarial em que se move o jornalismo
tradicional, e na submissão de grande parte de seus profissionais em
questões-chave de economia e de política, está cada vez mais distante o
reconhecimento público à atividade e o respeito a uma profissão que lutou
muito, por suas entidades, para adquirir um estatuto profissional específico e
uma moral ancorada no interesse público, coisa que ainda as escolas estão a
propor e a realizar. Mas que encontra cada vez mais espaço fora do jornalismo
de referência histórica e encontra mais possibilidades dentro de modelos
alternativos que surgem, dentro ou fora das redes sociais. Parece ser um
caminho para continuar chamando Jornalismo de Jornalismo, driblando os quatro
vértices elencados por Freire Costa: cinismo, narcisismo, violência e
delinquência. Quem sabe assim o jornalismo, sobretudo o tradicional, escape do
que inevitavelmente tem sido a sua marca atual: o perigoso ponto de
não-retorno. Ali onde o pêndulo da dialética que sempre marcou a sua história –
entre o capital/interesse privado versus interesse público – tem pendido sempre
para o lado do primeiro. Pelo menos corresponderia em parte ao que se propôs
historicamente.
Referências
COSTA, Jurandir Freire.
Psicanálise e Moral. São Paulo: Educ, 1989.
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la
razón cínica. Madrid: Taurus, 1989, 2v.
Créditos da foto: reprodução
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