'O Brasil tem uma historia de golpes, de massacres e guerrilhas. Esse também é um momento fértil e inspirador, propício para se voltar a pensar no pais.'
MD18 (via Blog da Boitempo) // www.cartamaior.com.br
A premiação do filme Cinema Novo de Eryk Rocha no último festival de Cannes anunciou o retorno do cinema brasileiro na cena internacional. O festival também foi marcado pelos protestos da equipe do filme Aquariusde Kléber Mendonça, que denunciavam o golpe em curso no Brasil. Os dois episódios voltam a valorizar a estreita relação entre política e cultura. Nesta entrevista, Eryk Rocha esmiúça as relações entre o atual momento brasileiro e o movimento Cinema Novo. Para Rocha, “a América Latina e o Brasil vivem destes ciclos de interrupção e recomeço. Assim, voltar aos anos 60 não é voltar ao passado, é falar de uma história vulcânica que está em movimento”. O cineasta fala da necessidade de reinvenção da política a partir das experiências coletivas, das ruas e de como o cinema pode contribuir para descolonizar o imaginário televisivo.
Esta conversa, conduzida por Fernando Luiz Salgado da Silva (doutorando em psicanálise pela Universidade de Paris 7), Maria Fernanda Novo (doutoranda em filosofia pela Unicamp) e Jeanne de la Larrard (Mestre em Cooperação Artística Internacional UFR Arts Paris 8) dá sequência à série de entrevistas do Movimento Democra%u001tico 18 de Marc%u027o (MD18) com grandes intelectuais e artistas de esquerda publicadas no Blog da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, clicandoaqui, a segunda, com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, clicando aqui, e a terceira com o historiador Luiz Marques clicando aqui.
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Você ganhou o prêmio Olho de Ouro no Festival de Cannes num momento em que o Ministério da Cultura foi temporariamente extinto. Este prêmio mostra a importância dos investimentos na cultura e nas artes para a construção de um Brasil dinâmico e criativo, quando há um projeto de privatização de empresas estatais que comprometeria seriamente o financiamento das artes. Qual é o papel do Ministério da Cultura para a emancipação das artes e para o reconhecimento da diversidade cultural no Brasil?
Para mim, como cidadão brasileiro, existe uma questão muito grave que precede a ameaça e extinção do MinC ou mesmo as políticas públicas da cultura, que é a questão do retrocesso da democracia no nosso pais. Inclusive, depois da polêmica da extinção do MinC, a estratégia do Temer foi voltar atrás dessa catastrófica decisão para calar a boca dos artistas, dos cineastas e acharam que isso iria resolver o problema. Mas, felizmente, não aconteceu. A tentativa de extinção do Minc veio acompanhada do desmantelamento gradual do Estado brasileiro, das possibilidades de manutenção pelo Estado de políticas culturais e sociais minimamente sérias. Então, este esvaziamento das políticas públicas e culturais está atrelado a um golpe institucional jurídico, parlamentar e midiático. É preciso discutir macropolítica e micropolítica no Brasil. É preciso tentar agora olhar o Brasil e interpretar o que está acontecendo. Vivemos na era da comunicação, da informação e do audiovisual, que são centrais para o mundo contemporâneo: vivemos num mundo onde existem mais câmeras que pessoas. O cinema, e o audiovisual se desdobraram para todas as outras mídias. Então, é muito importante hoje, neste contexto, buscar uma compreensão mais profunda sobre o papel da cultura e da educação. Vivemos uma situação complexa, grave, mas muito confusa também. O cinema é apenas uma forma de olhar esse pais em mutação, em ebulição, cujos movimentos e desdobramentos são imprevisíveis. Então, precisamos saber como a arte pode dialogar, intervibrar com isso. Eu me pergunto: qual produção artística estético-política vai eclodir deste momento turbulento do pais?
Neste sentido, é muito importante dizer que este filme, Cinema Novo, e uma multidão de outros expressivos filmes realizados no Brasil são fruto de uma política pública cultural audiovisual dos últimos 13 anos. Esta política cultural assim como muitas outras políticas sociais estão em risco de serem desmanteladas. Isso comprova que o Brasil está passando por uma guinada à direita a partir de um novo-velho poder que está seqüestrando a democracia brasileira. Mas em todos os estados brasileiros estão acontecendo ocupações dos artistas, dos poetas, dos músicos, dos ativistas, dos estudantes. Aliás, eu dediquei o prêmio Olho de Ouro que ganhamos em Cannes não só ao cinema brasileiro e ao cinema novo, que é um dos movimentos mais fecundos da história do cinema, mas também a todas as pessoas que estão mobilizadas hoje no Brasil e fora do Brasil. A todos aqueles que estão mobilizados e resistindo, expressando sua indignação contra os retrocessos da democracia no Brasil. Enfrentar esse grave momento vai depender do nosso nível de imaginação e organização.
Ainda que a cultura nunca tenha sido colocada como uma questão verdadeiramente estratégica por parte da esquerda, devemos reconhecer, principalmente nos governos do Lula, que existia um embrião de algo, a intuição de um projeto. E isso é um problema que temos que enfrentar. Pois uma nova esquerda – que é o que está se discutindo no Brasil a partir da coexistência da luta dos estudantes, do movimentos sociais, dos intelectuais, dos artistas, da sociedade como um todo – vai ter que colocar no tripé deste projeto a cultura, a educação, tecnologia, ciência e o conhecimento. Na minha visão estas são as questões revolucionárias do século XXI. Então, antes de começar qualquer debate é importante colocar isso. Essas são as forças emancipados de qualquer povo ou nação que pretende se desenvolver e não ficar a reboque do capitalismo feudal que coloca a ditadura do consumo e da economia acima de tudo. A revolução não é apenas social e econômica no caso do Brasil: é preciso reposicionar o papel da cultura e da educação,por exemplo pensando um paradigma de educação de base como o centro de um novo projeto brasileiro. E todas as reformas que não foram feitas pela esquerda, e pelo projeto do PT. Não ha desenvolvimento real possível se não nos confrontarmos com isso. Por exemplo, é urgente pensar numa reforma democrática da mídia, e recolocar a cultura num papel estratégico neste novo momento do Brasil e também do mundo, que é o momento das imagens, do conhecimento e da comunicação.
Dois dos seus filmes anteriores, Rocha que Voa e Intervalo Clandestino, levantam temas importantes para pensar o atual momento político do Brasil. São filmes que resgatam uma tomada de consciência política a partir da abordagem da realidade social no Brasil e na América Latina. Existe nestes filmes um desejo de falar dos problemas do povo a partir de suas próprias vozes. Neste sentido, queríamos abordar a complexidade compreendida no diálogo do cinema com a realidade popular, inaugurada pelo cinema novo e que se prolonga nos seus filmes. Em que medida o cinema pode contribuir para a afirmação das vozes populares?
O Rocha que voa é o meu primeiro longa-metragem. É uma tentativa de abrir um diálogo com essa geração dos anos 60, com essa geração do que chamam o “novo cinema latino-americano”. O filme é um diálogo que nasce das relações com a história, com a política, e com o afeto também. O que este filme discute especialmente é o papel do intelectual latino-americano. Essa geração viveu a revolução à flor da pele, viveram maio de 68, mas viveram também golpes militares em diferentes países da América Latina. Os filmes dessa época nasceram nesta realidade específica, em plena ebulição. Os filmes incorporam esta energia, e a grande particularidade desta geração é o desejo de criação de novas poéticas. Essa era a busca, e isso é vivo e atual. Como o cinema através de novas linguagens pode traduzir novas realidades, composta por contextos de violência, mudança, utopia, de transe? Essa geração tinha o horizonte da revolução, e acreditava que poderia mudar a história do cinema, do continente e do mundo.
Cada época tem a sua própria expressão, não acredito que devemos tentar imitar ou reproduzi-la como algo ideal. Temos que viver cada época, suas formas e suas possibilidades de expressão, em toda sua riqueza a partir da complexidade da sua realidade específica. Então, o que eu acho que, para fazer uma provocação, o momento que o Brasil vive hoje é um momento muito “cinema novista”, porque ele é um momento de limite, de ruptura, de tensão social, de transbordamento. As tensões sociais estão se acirrando. O país está polarizado. Existe uma energia, uma tensão latente nas ruas, nos lugares. O cinema não é inseparável desta realidade, o cinema está integrado nessa complexa e confusa realidade que pulsa. Os filmes nascem da vida. Então, esse é um ponto interessante de diálogo com os anos 60, assim como naquela década, novamente estamos vivendo uma interrupção e a necessidade de um recomeço de alguma coisa nova que não sabemos muito bem o que é. A diferença é que nos anos 60 existia uma maior clareza do que era esse novo – por exemplo com a referência de um projeto comunista em que a esquerda se inspirava. Até mesmo as formas de combate e de luta eram mais claras como a guerrilha armada, por exemplo. Hoje em dia, estamos entendendo quais são essas formas de luta: temos que aprofundá-las e entender como vamos enfrentar este momento novo. A arte, o cinema e o pensamento se reconectam com este estado dos anos 60 e com a história. A América Latina e o Brasil vivem destes ciclos de interrupções e recomeços. Essa é nossa trágica tradição. Assim, voltar aos anos 60 não é voltar ao passado, é falar de uma história vulcânica que está em movimento, pois somos frutos desta história. Agora, que poéticas, que cinema, que pensamento, que expressões vão surgir neste momento histórico? Estamos descobrindo e a realidade está aí, atravessando nosso corpo e se esfregando na nossa cara, ela é imponente.
Isto se desdobra num outro ponto importante. No cinema, existe uma questão central que tem a ver com democracia: repensar o espaço social do cinema. Acho que um dos pontos cruciais para o entendimento do papel do cinema na sociedade contemporânea passa pela criação de um novo circuito digital-popular pelo Brasil adentro. Existe hoje no Brasil uma grande quantidade de filmes, de produção audiovisual que não tem por onde escoar. Claro que a internet é sempre um meio revolucionário e concreto, mas é um meio específico que tem suas limitações, é uma ferramenta, mas não pode ser única. A realidade das salas de cinema no Brasil é uma realidade onde existem 205 milhões de habitantes para 2.500 salas. E 90% dos municípios do Brasil não tem sala de cinema, as salas estão concentradas nos shoppings centers das grandes cidades, principalmente no Sudeste. Além disso, os ingressos tem preços inacessíveis para a grande parte da população. Tem muito cinema brasileiro sendo produzido em coletivos, na periferia, filmes independentes, e muitos deles nem vão para sala de cinema ou ficam uma semana e não tem tempo de serem descobertos. É preciso desenvolver pequenas salas com alta tecnologia onde você possa expandir o cinema brasileiro, para que aconteça uma verdadeira democratização, para que as pessoas tenham acesso aos filmes. Então, isso é uma política pública a ser feita que está sendo adiada há muito tempo.
Existe uma disparidade entre o dinheiro que se dá para produção, para fomentar filmes e aquilo que é destinado a distribuir e exibir estes filmes. Este circuito também é importante para criar um contraponto com a televisão, para criar um outro tipo de imaginário estético-audiovisual. Esse conflito está sugerido no prólogo do meu segundo filme Intervalo Clandestino. Em nenhum país do mundo existe uma televisão com tanto poder e influência sobre uma comunidade. E isso é o reflexo da concentração da comunicação de um país-continente nas mãos de cinco famílias. E precisamos reconhecer que ter acesso a um sistema de informação e comunicação mais democrático é tão importante quanto votar. Isso deve ser composto por uma diversidade de olhares e pensamento, de estéticas, de diversidade regional também.
Neste sentido, o que dizer de iniciativas de prefeituras e outras instituições locais que tentam criar salas de cinema aonde não existiam?
Infelizmente, muitas vezes são movimentos quase assistencialistas, não são políticas culturais consistentes. Essas políticas precisam ser integradas. Por exemplo, isso explica o motivo da falência da UPP, que eu diria é a crônica de uma morte anunciada. Aparentemente, num primeiro momento diminuiu a violência nas comunidades. Tratou-se de esconder os problemas. Deram o direito de ir e vir das pessoas, deram uma falsa sensação de proteção, liberdade e paz. Mas, na verdade isso foi feito sem articulação com outros projetos sociais. Não tinha uma política cultural consistente, nem política educacional, nem de transporte e nem de saúde. Você colocava a polícia para resolver um problema político e social endêmico. Criar uma sensação de aparência de uma cidade idealizada para a Copa do Mundo e agora para as Olimpíadas. Esse projeto está indo à falência. E isso é o mesmo problema que acontece com a cultura, com poucas exceções. Precisamos nos libertar dessa políticas públicas isoladas e demagógicas. São frágeis, de fachadas. A própria prefeitura do Rio de Janeiro não tem um projeto social , educacional, cultural minimamente sério. Existe um projeto de especulação imobiliária de eventos, de cidade de fachada, feita para os turistas, para as grandes empreiteiras que estão lucrando com as grande obras. Qual é a situação da periferias da Zona Norte? Existe uma cidade que inclui de modo excludente.
Precisamos de um novo elo: uma nova ponte entre o Estado e o povo – povo como sociedade, como complexidade. Se você colocar no papel o se chama de minoria: as mulheres, os gays, os artistas, os negros, os índios, juntos, são a maioria da sociedade, mas mesmo assim, eles não têm voz, esse é o problema. Chamá-los de minoria é uma estratégia de linguagem, de contenção. Essa é a grande contradição que a gente vive na democracia, não só brasileira, mas contemporânea. Na América Latina isso é latente, tirando um ou dois países que têm uma representação indígena no poder. Essa é a crise da democracia: o poder do grande capital, da informação, de decisões fundamentais está na mão de poucas pessoas, instituições e famílias. Os donos das regiões, das cidades são os mesmos que estão no congresso. É assim que o grupo do BBB (boi, bala e bíblia), amalgamado, detém o poder e dita os destinos da nação, defere os golpes e coloniza o imaginário. Como a gente pode se organizar para criar outra multidão, que tenha sua voz representada e respeitada? A internet tem um papel vital nisso tudo. Existem muitas coisas que estão sendo germinadas e gestadas nesses novos movimentos, nessa grande manifestação que está acontecendo. Essa multidão está criando uma nova forma, e essa é a questão da nova democracia. Esse novo vai vir das multidões e individualidades que juntas vão formar um novo coletivo.
O diálogo entre o cinema novo e este cinema que está se construindo hoje passa por uma reelaboração de elementos que antes eram centrais como as figuras messiânicas e as figuras do herói. Como você percebe essa reformulação, em plena crise da representatividade, que acontece ao mesmo tempo em que vivemos a ampliação do horizonte democrático com coletivos e movimentos que exigem e tentam construir alternativas políticas à representação? Neste caso, o cinema poderia colaborar com a descolonização do imaginário brasileiro que alimenta o desejo por estas figuras?
Nosso país é barroco, vive o misticismo a flor da pele, o sebastianismo. Mas, também é realista, ou SUR-realista. São matrizes do nosso país e estão no inconsciente. São forças que estão atuando constantemente nas energias, nas ações, na formação e nos sonhos do nosso povo. Isso era muito forte no cinema novo, mas permanece. O Brasil tem a crença nos milagres e precisa de um líder, tem um lado messiânico que é muito presente no nosso povo. Somos uma seleção medíocre de futebol, sem nenhuma imaginação. Vamos jogar a semifinal contra Alemanha e achamos que podemos ganhar. Entretanto, a realidade devora tudo. Perdemos de 7×1. Achamos que um grande líder vai transformar e corrigir tudo. Achamos que impeachment vai resolver o país. Achamos que a Dilma voltando vai resolver o país. Concentramos nosso imaginário, nossas crenças em ações e coisas detonadoras de uma grande revolução. A gente tem essa fé, esse misticismo.
Algumas das pautas que não estavam tão presentes nos anos 60, como por exemplo as da juventude negra e dos gays, hoje são trazidas para o primeiro plano. Acho que tudo fica mais forte agora, isso é uma novidade. Os próprios artistas que estão ocupando o MinC estão inventando um novo espaço e uma micro-realidade dentro de um pais que está vivendo um golpe. Eles estão criando um centro de resistência. Podemos chegar a dizer que o Rio de Janeiro nunca teve uma programação tão contestatária, tão intensa e rica quanto essa! Estão ocupando estes espaço e diariamente promovem debates e exibição de filme, danças, aulas, shows, plenárias. Isso é tornar a política algo constante e real dentro de nossas vidas. Acho que esse novo momento marca isso. Não tem como qualquer pessoa ficar fora desse processo. Uma pessoa que diz não a política, que não quer se envolver já marca uma posição. Em qualquer forma de expressão, no que você faz e por onde caminha, você vai se posicionando politicamente. Esse momento do Brasil traz essa incorporação, esse novo debate: a política passa a ser cotidiana, o centro de nossas vidas. Principalmente no Brasil, onde tem tudo a se fazer. Um país novo com democracias de poucas décadas, onde a maioria dos presidentes não terminaram seus mandatos: é uma historia de golpes, de massacres e guerrilhas. Então, esse também é um momento fértil e inspirador, propício para se voltar a pensar no pais, na micropolítica diária.
Acho que o grande desafio de hoje é a necessidade de reinvenção da política que passa pelo reconhecimento das novas formas de construção desses coletivos e movimentos, de uma nova coletividade. Este momento de manifestações onde as ruas voltam a ser ocupadas para além da organização dos sindicatos ou de movimentos religiosos, ou de grandes mobilizações específicas como um jogo de futebol. Este novo momento da política tem como novidade a participação de uma multidão heterogênea que vai mais além das lutas setoriais. Estou falando principalmente das manifestações da esquerda, porque as manifestações da direita são bastante homogêneas. Vejo aqui uma novidade que é a diversidade, elas reúnem todo tipo de gente, todas as gerações. E nesse caldeirão tem um germe de alguma coisa nova: temos a possibilidade de repensar este coletivo. Esta organização é corporal, as pessoas se encontram e as ruas voltam a desempenhar um papel protagonista na democracia brasileira, acho isso bastante rico e inovador. E isso nasce essencialmente da articulação entre as redes e as ruas. O que aconteceu com a esquerda nesta era lulista-dilmista é que de certa forma ela entrou num estado de acomodação, de resignação, talvez, em função de um avanço concreto e substancial que existiu, no sentido do bem estar social. Isso a partir de certo momento criou um estado de estagnação, de falta de imaginação política e poética, que também foi um disparador do golpe. Pois, o golpe também é fruto deste estado de inércia. Por isso, neste momento, teremos que ter coragem, enfrentar e debater com as forças do atraso e do conservadorismo que estão entranhadas na sociedade brasileira. São forças de uma herança escravocrata, de uma sociedade heteronormativa. Teremos que enfrentar essas forças e ao mesmo tempo fazer uma autocrítica e reinventar a esquerda. O cinema neste sentido é uma forma de expressão que tenta capturar esta realidade, capturar as energias deste momento.
O seu filme Pachamama (que encerra a trilogia formada por Rocha que Voa e Intervalo Clandestino), tem algo de sentido descolonial muito presente. Como foi lidar com a experiência democrática da Bolívia?
O Pachamama foi um filme que nasceu do meu encontro com alguns historiadores e cientistas políticos brasileiros. Fui convidado para fazer essa viagem Brasil-Peru-Bolívia, cuja idéia era de fazer um livro a partir de uma parte da geopolítica do continente, situada entre a selva e a cordilheira, no limite entre uma civilização amazônica e uma civilização inca. Juntei-me a eles para uma viagem de 14.000 km nesses países. Fiquei muito impressionado, pois vi algo novo, era o primeiro ano do governo do Evo Morales. Vi um país vivendo um transe de manifestações populares, que eles chamam de movimentos originários, movimentos indígenas e sociais, invadindo a rua, a prefeitura, discutindo política. Eles estavam sendo representados pela primeira vez na história. Um país com 70% de populações indígenas, com 36 nações diferentes sendo representado por um indígena. Cheguei nesse momento político para fazer Pachamama. O que me impressionou foi como uma cultura inca milenar, uma cultura indígena foi capaz de ser a substância principal de um novo projeto político. O grande feito de Evo Morales de algum modo foi recuperar essa ancestralidade indígena boliviana inca, para criar uma nova constituição e um novo paradigma político. Ou seja, essa relação entre cultura e política se estabeleceu de uma forma original e potente. Ele vai se inspirar nessa ancestralidade para criar uma nova constituição, diversa e absolutamente democrática, pois contempla todos esses povos indígenas da cultura boliviana. Acho isso bastante original e inovador no século XXI. Não é à toa que o projeto político-cultural Sul-americano solido que ainda resiste é o da Bolívia. Existe um processo revolucionário muito autêntico. Além de ser a Bolívia talvez o país que mais cresceu economicamente na América do Sul, De alguma forma, essa questão da Bolívia realiza o grande sonho da geração do meu pai, do cinema latino-americano, onde a cultura era o carro chefe de transformação social da política. Mas, nos anos 60 boa parte da esquerda latino-americana reproduziu o manual do comunismo nas suas diferentes vertentes, mimetizando e importando esse projeto. A grande originalidade da Bolívia é trazer da sua própria cultura uma substância vital, rica e real de um novo paradigma político. Esse é um grande avanço. Na minha intuição, no Brasil, um novo projeto passa pela incorporação de forças da multidão, das mulheres, dos negros, dos índios, dos artistas, dos estudantes, da periferia, e tantas outras. Essas vozes têm que criar uma polifonia democrática do país. Fazer o Pachamama foi uma forma de me aproximar do Brasil, criar um deslocamento para me ver como cidadão, e como país.
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