O cenário atual anuncia o acirramento dos protestos. Nesse contexto, nomear Alexandre de Moraes para chefiar a Justiça não parece ser um acaso. Parece anunciar que a falta de afinidade desse governo com a democracia não está apenas em sua origem
por Marta Rodriguez de Assis Machado // http://www.diplomatique.org.br/
Em 1985, quando era secretário de Justiça do governo Montoro em São Paulo, o hoje presidente interino Michel Temer criou a primeira Delegacia da Mulher do Brasil. As demandas do movimento feminista eram outras – passavam por sistemas de prevenção, abrigos, melhoria de atendimento e fim da lógica da legítima defesa da honra no Judiciário –, mas a leitura, ou melhor, a tradução que o à época secretário fez foi esta: precisam de uma delegacia especializada.1
Trinta anos depois, diante do estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro, sua resposta foi a mesma: anunciou a criação de um departamento especial na Polícia Federal. Sem esclarecer muito bem como a Polícia Federal atuará nos crimes que vitimizam as mulheres, os quais são em sua grande maioria de competência da justiça estadual, o presidente interino também ignorou a mudança total de paradigma que aconteceu desde a aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006 – a criação de uma política integral de atendimento à mulher, que vai muito além das delegacias especializadas. Criada em 2003 pelo governo Lula, a recém-extinta Secretaria para Mulheres teve papel central na aprovação da lei e seguiu conduzindo uma série de campanhas voltadas para sua aplicação. Se o governo Dilma pode ser criticado por não ter bancado avanços mais radicais na política de gênero, como na questão do aborto, é bastante difícil ignorar todo seu investimento no tema da violência de gênero – apenas para mencionar dois programas relevantes capitaneados pelo Executivo: o Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres e a campanha “Compromisso e atitude pela Lei Maria da Penha – A lei é mais forte”.2
Para além do cinismo, a resposta de Temer a esse grave episódio ilustra uma das marcas de seu estilo de governar: transformar demanda por direitos e justiça em solução penal. No arranjo de sua equipe interina, ele destituiu as secretarias das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos do status de ministério e as alocou sob a pasta da Justiça. E para comandar esta nomeou Alexandre de Moraes. Nada poderia simbolizar melhor esse processo alquímico. Em um passeio em seu perfil público no Facebook, as publicações já como ministro interino mostram que a preocupação central de Alexandre de Moraes é a atuação das agências penais: combate à criminalidade, apreensões de drogas, controle de fronteiras, segurança nas Olimpíadas. Suas ações e falas públicas até o momento também apontam para esse tema. Baixou a Portaria n. 611/2016, que suspende as atividades do Ministério da Justiça por noventa dias, à exceção de atos relacionados a operações da Força Nacional de Segurança Pública e à preparação dos Jogos Olímpicos. Anunciou que pretende levar ao Congresso proposta de lei complementar para extinguir a progressão de regime, alterando o quadro ressocializador da Lei de Execuções Penais. “Como em qualquer país civilizado do mundo, se a pessoa for condenada a quinze anos, tem de cumprir quinze anos”, disse à imprensa. Ainda que a noção de civilizado seja um tanto quanto démodé, se quisermos pensar em países que se preocupam em integrar a privação de liberdade com o respeito a direitos, o vetor é exatamente o inverso: o Conselho da Europa, por exemplo, recomenda a redução do encarceramento, considerado último recurso, e a ampliação do uso de penas e medidas alternativas.3
Para além do inchaço do sistema penal, há algo ainda mais preocupante sinalizado com a nomeação de Alexandre de Moraes para o cargo de ministro da Justiça: não haverá muito espaço para o exercício do direito à manifestação.
Ex-secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo (governo Geraldo Alckmin), Alexandre de Moraes ficou conhecido por sua defesa de ações violentas da PM contra manifestações, em especial as estudantis. Assumiu o cargo no início de 2015, posicionando-se contra o projeto de lei então recém-aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado (608/2013) que proibia o uso de balas de borracha pela PM. Em um dos últimos lances de sua gestão em São Paulo, foi convocado a dar explicações em juízo sobre a entrada da Polícia Militar no Centro Paula Souza, ocupado por estudantes, sem mandado judicial. Segundo o juiz do caso, “sem mandado judicial, não há possibilidade de cumprimento de decisão alguma. Sem mandado judicial, qualquer ato de execução forçada caracteriza arbítrio, violência ao Estado democrático, rompimento com a Constituição vigente e os seus fundamentos”. Segundo Alexandre de Moraes, amparado por parecer do procurador-geral do estado, Elival da Silva Ramos, em uma tese jurídica bastante questionável, trata-se do direito de autotutela dos bens públicos – aplicando aqui, de maneira inédita, aos bens públicos a disciplina do Código Civil que permite que particulares utilizem a força para defender a propriedade em conflitos possessórios.
As ações da PM paulista, sob seu comando, foram objeto de denúncia (e audiência) na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, encaminhada pelo Comitê de Mães e Pais em Luta e por dois núcleos especializados da Defensoria Pública. A petição traz um longo relato de ações “truculentas e desproporcionais” praticadas pela PM. Ataque a estudantes com spray de pimenta, uso de bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, agressão e imobilização de estudantes e professores, uso de cassetetes contra mães, detenções ilegais, uso de armamento letal nas tentativas de reintegração de posse, ameaças verbais, tortura psicológica, confisco de celulares, estudantes arrastados, feridos, retirados à força das vias públicas, alunas apalpadas por policiais, racismo, uso ilegítimo de algemas em adolescentes. A petição traz ainda um item intitulado “as declarações públicas de Alexandre de Moraes que violam a Convenção Americana de Direitos Humanos”, em que se questiona a disposição do ex-secretário de deslegitimar a ação dos estudantes e justificar o uso da força. Em uma de suas desastrosas notas à imprensa, o ex-secretário afirma que “a atitude de grupos de manifestantes deixou clara a motivação política e criminosa [...], com diversos black blocs com o rosto encoberto, integrantes da Apeoesp e pessoas ligadas a partidos políticos, vestidas com camisetas da Juventude Comunista”. O tom de perseguição ideológica de sua declaração foi objeto de um Manifesto de Repúdio assinado por mais de setenta entidades – entre organizações de direitos humanos, institutos de pesquisa, centros acadêmicos, ouvidoria e núcleos da defensoria pública.4 A nota critica as tentativas de criar um “inimigo interno” e o uso de mecanismos de “intimidação policialesca” contra o direito constitucional dos estudantes: a recorrência de prisões ilegais para averiguação e o registro de boletins de ocorrência por crimes de desobediência e desacato, “típicos de regimes ditatoriais”. Vale lembrar que, até então, a disputa jurídica da criminalização dos manifestantes se dava por meio da obsoleta Lei de Segurança Nacional e pelas tentativas de caracterização de crimes de desobediência, desacato e dano ao patrimônio público. Desde junho de 2016, o aparato repressivo tem agora a seu dispor uma legislação que prevê um endurecimento considerável do tratamento punitivo àqueles que forem considerados “inimigos” da ordem interna: a Lei Antiterrorismo (13.260/2016). Por ironia, essa lei foi proposta por dois ministros do governo Dilma e sancionada por ela pouco antes de seu afastamento.
As tentativas de dar forma jurídica à violência policial mostram que há um campo jurídico em disputa: a definição do direito constitucional à manifestação, as formas aceitas de protestar, o conceito de ordem pública e os limites do uso da força na repressão. Essa disputa é travada nas ruas, no encontro entre polícia e manifestantes, mas também no ambiente institucional que legitima ou não a ação policial. O Ministério Público e o Judiciário são elementos importantes para modular os abusos (os órgãos paulistas não têm feito muito nesse sentido). O feedback positivo do secretário de Segurança Pública, a quem organicamente se submete o comandante da polícia, dá o suporte necessário para deixar correr solta toda a cultura violenta já característica dessa corporação. Nesse embate, ter um ministro da Justiça que abertamente respalda esse tipo de ação truculenta da polícia não é um sinal trivial.
Os discursos de Alexandre de Moraes, como ex-secretário ou como ministro interino, são uníssonos ao defender as ações da PM e desqualificar manifestantes. Manifestações não podem obstruir a cidade, “têm de deixar uma ou duas faixas livres”, senão “é baderna e crime”. Na disputa do que é manifestação e o que é crime, afirma (ao se referir às manifestações contrárias ao impeachment): “eu não diria que foram manifestações. Foram atos que não configuram uma manifestação porque não tinham nada a pleitear. Tinham, sim, a atrapalhar a cidade. Eles agiram como atos de guerrilha”.
Protestos, por excelência, são atos não convencionais, disruptivos e conflituosos que permitem que aqueles que não estão no poder chamem atenção para suas demandas e sejam ouvidos pela opinião pública, pela mídia e pelas autoridades. São bem-sucedidos na medida em que conseguem fazer que outros grupos entrem na arena política e dialoguem com suas demandas. Ora, é, portanto, da natureza de qualquer protesto que ele quebre a normalidade, atrapalhe o funcionamento cotidiano das coisas. As declarações do ex-secretário, dessa forma, parecem negar a possibilidade mesma de protestar.
A essa altura, sua frase sobre o direito de manifestação – “nenhum direito é absoluto” – parece mais um eufemismo para uma política de tolerância zero com o protesto. Ou melhor, uma tolerância seletiva, já que os manifestantes pró-impeachment, ainda que bloqueando todas as faixas da Avenida Paulista por dois dias consecutivos, não foram reprimidos por sua polícia.
O cenário atual anuncia o acirramento dos protestos. Não só protestos questionando a legitimidade da tomada do poder pelo presidente interino, mas também daqueles que tiverem seus direitos afetados pelos cortes de programas sociais e por medidas de arrocho que se anunciam. A já visível falta de interlocução com os movimentos sociais também aponta para dias de enfrentamento. No campo da ação política, o fechamento dos canais institucionais para acomodação de interesses e demandas é associado à radicalização das formas de manifestação. Nesse contexto, nomear Alexandre de Moraes para chefiar a Justiça não parece ser um acaso. Parece anunciar que a falta de afinidade desse governo com a democracia não está apenas em sua origem.
Marta Rodriguez de Assis Machado
Marta Rodriguez de Assis Machado é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Cebrap.
1 Cecília MacDowell Santos conta esse processo de tradução: a criação de uma delegacia nunca havia sido uma demanda do movimento feminista, que reclamava do atendimento que recebia do sistema de justiça criminal. Diante da oferta do governo do estado, o movimento abraçou a ideia e tentou politizar a proposta, certo de que o atendimento realizado por policiais mulheres não garantiria por si só melhoria na prestação dos serviços. Cf. Cecília MacDowell Santos, “Women’s Police Stations: engendering justice in São Paulo” [Delegacias da Mulher: promovendo a justiça em São Paulo], 2005.
2 O Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, criado em 2007, destinava recursos para a implementação da lei e previu ações de enfrentamento da violência contra as mulheres no Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci). Em 2012, em uma articulação entre Secretaria de Políticas para as Mulheres, Ministério da Justiça, Poder Judiciário, Defensoria Pública e Ministério Público, foi lançada a campanha “Compromisso e atitude pela Lei Maria da Penha – A lei é mais forte”, com o objetivo de garantir a aplicação da lei e a celeridade no julgamento dos casos de violência doméstica.
3 “Sentenças racionais devem ser compatíveis com políticas criminais humanas e modernas, particularmente no que diz respeito à redução do encarceramento, à expansão do uso de medidas e sanções comunitárias, à procura por políticas de descriminalização, ao uso de medidas como a mediação e à garantia de compensação para as vítimas [...]. Sentenças de custódia devem ser relegadas à condição de último recurso, e, assim, devem ser impostas apenas nos casos em que, considerando outras circunstâncias relevantes, a seriedade da ofensa tornaria qualquer outra sentença claramente inadequada.” Council of Europe, Recomendação R(92) 17.
4 Aqui a íntegra do manifesto: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/11/politica/1449854456_017857.html.
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