Como o CGI.br foi criado?
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) já possui 21 anos de existência. Foi criado em 1995 durante o governo Fernando Henrique Cardoso, pela Portaria 147 editada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pelo Ministério das Comunicações, que consolidou o Comitê como um órgão de governança pluralista da Internet, inovador e único no contexto internacional. É importante lembrar que o CGI.br não é um “órgão de Estado” tradicional, tampouco uma “empresa privada”. É uma comissão pluralista sem personalidade jurídica.
Sua criação deu-se no contexto em que o Ministério das Comunicações (hoje extinto pelo governo interino) editou a Norma 4, por intermédio da Portaria 148/1995, regulamentando o serviço de conexão à internet e classificando-o como serviço de valor adicionado — portanto, fora das atribuições regulatórias da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) — que viria a ser criada dois anos depois, em 1997.
Esta separação entre telecomunicações e Internet é extremamente importante para garantir regimes distintos, permitindo que a Internet seja regulada de modo a contemplar direitos fundamentais e sociais de forma mais democrática e flexível, ao contrário do que acontece na regulação de telecomunicações, em que o agente regulador atua de forma engessada e enviesada por aspectos econômicos
Posteriormente, em setembro de 2003, já no governo do presidente Lula, foi editado o Decreto 4.829, que regulamentou o CGI.br e estabeleceu formalmente o ambiente de governança da Internet no Brasil. Após inúmeros debates e seminários em consulta ampla com os vários setores sobre reforma do Comitê, o decreto definiu que o CGI.br teria 21 membros, dos quais 12 seriam não governamentais (empresas, academia, terceiro setor e um membro de notório saber escolhido por consenso dos setores representados).
O Comitê tem como função definir diretrizes estratégicas para o desenvolvimento da Internet no Brasil, tornando efetiva a participação da sociedade nas decisões envolvendo a implantação, administração e uso da Internet, bem como coordenar e integrar os serviços de Internet no Brasil.
A partir de 2003, o CGI.br passou a contar com o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos de direito privado que implementa e gerencia decisões e projetos decididos pelo CGI.br, e que em 2005 assumiu formalmente a tarefa de administrar todos os recursos e projetos sob a supervisão do CGI.br.
O Comitê segue um modelo que, levando em consideração a dimensão pública e essencial da Internet para a garantia de direitos fundamentais, parte da premissa de que todos os setores envolvidos devem participar e influenciar os processos decisórios que os afetarão.
Quem participa e por que isso incomoda as teles?
Participam do CGI.br representantes do governo, da academia, das empresas e da sociedade civil, uma vez que a rede alcança e afeta todos os setores. Toda decisão estrutural precisa ser aceita pela comunidade para ganhar legitimidade e aderência por todos os segmentos da sociedade.
As grandes e pequenas empresas de tecnologia da informação (TI), os empreendedores, as gigantes das telecomunicações, os governos, as organizações internacionais, os técnicos, os pesquisadores, os hackers, os centros de estudos, os comunicadores, os movimentos sociais e os usuários na ponta constituem a diversidade de atores que faz a rede funcionar de forma colaborativa, contribuindo para o desenvolvimento social, econômico e cultural.
As grandes empresas de telecomunicações não gostam desse modelo pois, no CGI.br, sua opinião é apenas mais uma. Diferentemente da Anatel, onde há investimento emlobby para decisões regulatórias favoráveis, a composição atual do CGI.br torna difícil a captura e garante a paridade de opinião sem importar o poder econômico de cada setor — todos os setores são participantes da Internet e portanto têm iguais direitos de representação.
É essa dificuldade de captura que tem mobilizado lobistas a pressionar o governo interino por mudanças no CGI.br. O que se pretende, no fundo, é retirar poder da sociedade civil e das pequenas empresas, favorecendo grandes grupos econômicos que operam na camada de infraestrutura.
A legalização do modelo do CGI
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), reconhecendo esta realidade, estabeleceu de forma notável o uso imprescindível de mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática para a Internet, a partir da coordenação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica atuando juntos, com a participação do CGI.br.
Mais recentemente, foi editado o Decreto 8.771, de maio deste ano, cujo objetivo é regulamentar o Marco Civil da Internet. Este decreto estabeleceu um sistema para fiscalização e apuração de infrações relativas aos direitos dos usuários da rede, atribuindo competências específicas para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), para a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e Sistema Brasileiro da Concorrência (Cade) que, nas suas respectivas atuações, deverão considerar as diretrizes definidas pelo CGI.br.
O CGI.br funciona como uma estrutura híbrida que não faz parte do governo, mas que contém o governo; que não é empresa da Internet, mas que tem em si representantes do setor privado; que não é uma entidade da sociedade civil, mas que permite a participação de movimentos sociais; que não é um corpo técnico, mas que possui acadêmicos e cientistas ativamente envolvidos.
Coordenando todos os setores que o compõem, o Comitê é ainda responsável por questões técnicas como a formulação de diretrizes para o registro de nomes de Domínio, a alocação de Endereço IP e administração do domínio.br. Também é responsável por propor normas e procedimentos relativos à regulamentação das atividades na Internet no país.
A ameaça ao modelo multiparticipativo
Atualmente, o CGI.br é constituido por nove conselheiros do governo, 11 conselheiros escolhidos por seus setores não governamentais e um conselheiro não governamental “de notório saber em assuntos de Internet”. O governo aponta previamente seus representantes de ministérios e órgãos públicos predefinidos. Entre eles, figuram instâncias como o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e a Agência Nacional de Telecomunicações. O representante de notório saber é escolhido por consenso — o cargo é ocupado desde 2003 por Demi Getschko, diretor-presidente do NIC.br, um dos responsáveis pelo estabelecimento do “.br” e primeiro brasileiro a entrar para o Hall da Fama da Internet.
As outras onze vagas não-governamentais são definidas através de um processo eleitoral trienal. Entidades interessadas em participar das eleições se cadastram no CGI.br, identificando-se conforme seu setor de atuação. Quatro vagas são destinadas ao que o Comitê chama de “terceiro setor”, organizações da sociedade civil sem fins de lucro e sem interesses comercias, e movimentos sociais de qualquer área temática; três vagas são para a “comunidade científica e tecnológica”; e quatro são para o “setor empresarial”, que, por sua vez, é dividido entre provedores de acesso e conteúdo, provedores de infraestrutura de telecomunicações, indústria de bens de informática, de telecomunicações e de software e o setor empresarial usuário. Os conselheiros não recebem remuneração para compor o Comitê.
Mudanças na composição do CGI.br, como as apontadas pela matéria da Folha, ameaçam o caráter pluriparticipativo do Comitê e afetam a sua posição como referência internacional de governança. Ademais, essas mudanças não afetam apenas a composição da sociedade civil, setor mais atacado pelas empresas de telecom. A influência dos pequenos provedores e do setor empresarial enquanto usuário da Internet também será ameaçada e, possivelmente, reduzida.
Além disso, embora questione-se o colégio eleitoral das cadeiras da sociedade civil, é preciso ressaltar que o papel dos conselheiros desse setor é justamente representar uma pluralidade de entidades dado o próprio caráter amplo da Internet.
A sociedade civil no CGI.br não deve representar apenas organizações e movimentos atrelados à Internet ou à luta por direitos na rede. Na verdade, esse setor pode e deve abarcar a sociedade civil organizada como um todo, já que todas as camadas da população são potencialmente afetadas pela Internet. Nesse sentido, não importa se uma entidade é um assentamento rural ou um centro de pesquisa — para garantir o caráter democrático do CGI.br, ela pode e deve fazer parte do colégio eleitoral, desde que formalmente constituida, o que reforça a legitimidade deste modelo de governança.
Violência ilegítima
Uma mudança do CGI.br por decreto, sem debates e sem ampla participação democrática seria uma violência ilegítima rechaçada por toda a comunidade internacional.
O governo poderia propor um debate sobre possíveis reformas do CGI.br com todos os setores da sociedade civil (tal como foi feito com o processo de consulta e diálogo que constituiu o Marco Civil, e tal como foi feito para constituir o próprio CGI.br e seus rearranjos estruturais), porém nunca mudá-lo de imediato e ao sabor de grandes empresas. Ainda mais se considerarmos que o governo interino possui baixa legitimidade e muitas incertezas.
Coalizão Direitos na Rede
Artigo19
Casa da Cultura Digital de Porto Alegre
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Ciranda Comunicação
Coding Rights
Colaboratório de Desenvolvimento e Participação (COLAB-USP)
Coletivo Digital
Coletivo Estopim
Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ
Grupo de Estudos em Direito, Tecnologia e Inovação do Mackenzie
Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso a Informação (GPoPAI-USP)
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)
Instituto Beta: Internet & Democracia
Instituto Bem-Estar Brasil
Intervozes — Coletivo Brasil de Comunicação Social
Instituto Nupef
Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio)
Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits)
Proteste — Associação de Consumidores
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