Luis Nassif // http://jornalggn.com.br/
Na semana passada, o economista turco-americano Dani Rodrik traçou o roteiro do fracasso da socialdemocracia no mundo, mesmo após a maior crise do neoliberalismo: a socialdemocracia se deixou levar pela ideologia mercadista, por não ter procurado estabelecer limnites ao livre fluxo de capitais.
Historicamente, o ponto central dos problemas brasileiros sempre foi o livre fluxo de capitais amarrado a uma política de endividamento público muito mais focada em remunerar o capital financeiro do que em trazer investimentos.
Não é por outro motivo que os momentos de crescimento brasileiro foram nos anos 30, quando a quebra externa obrigou o governo a impedir a livre circulação de capitais, e no período pós-Guerra, com os controles cambiais criados pelo acordo de Bretton Woods.
Não há na história econômica moderna exemplo mais acabado de expropriação da riqueza do país para um grupo específico do que o que vem ocorrendo com o Brasil nos últimos 22 anos. Se algum economista se der ao trabalho de calcular o que foi pago de juros da dívida pública desde o Plano Real até hoje, daria para cobrir o país de norte a sul com infraestrutura de primeiro mundo.
Peça 1 – Como ganhar com câmbio e juros
Do Plano Real até os dias atuais, a expropriação do orçamento se deu por dois caminhos: a política monetária interna, de juros extorsivos, amarrando a política monetária do Banco Central (destinada a controlar a liquidez do sistema) ao mercado de dívida pública; o segundo caminho foi o livre fluxo de capitais.
Do Real até hoje, passando pelos governos FHC, Lula e Dilma, criou-se a seguinte dinâmica:
1. Liberam-se os fluxos cambiais e mantém-se a taxa interna de juros superior à internacional. Com isso, há um excesso de entrada de dólares pretendendo lucrar com o diferencial de taxas de juros.
2. O excesso de entrada de dólares promove uma apreciação do câmbio tirando a competitividade dos produtos brasileiros. O país é inundado por excesso de importações e de gastos com serviços.
3. Na medida em que há uma deterioração do balanço de pagamentos, ocorre uma corrida final, de dólares saindo do país, promovendo uma maxidesvalorização do real. Quem entrou na baixa vende na alta e pula fora, aguardando o momento de voltar.
4. Com a maxi, as contas externas começam a se equilibrar. Há impactos sobre a inflação que servem de álibi para o aumento expressivo das taxas de juros. Pela lógica brasileira, a taxa futura de juros sempre tem que ser substancialmente maior do que a inflação esperada.
5. Com as contas externos se equilibrando e os juros aumentando, voltam os fluxos de dólares ao país e retorna-se à ciranda anterior do capital voltando para ganhar com juros e com nova rodada de apreciação cambial. Confira as contas:
Tome-se o exemplo acima. Calcula-se a rentabilidade de um investimento comparando os juros recebidos com o capital investido. No modelo brasileiro, não há capital investido: o especulador simplesmente capta dinheiro no exterior, a taxas próximas de zero, e aplica na Selic a taxas de 14,15%. Portanto, a rentabilidade é infinita.
No exemplo acima, o investidor tomou um crédito em dólares, pagando 1% ao ano. Converteu em reais, com a cotação a R$ 3,80. Aplicou em títulos do Tesouro remunerados por 14,15%. Um ano depois resgatou os títulos, converteu em dólares, com a cotação a R$ 3,40, remeteu o dinheiro para fora, quitou o financiamento e obteve um lucro equivalente a 27% do valor financiado.
Quem paga esse ganho? O orçamento público, o mesmo caixa único que garante salários de procuradores, juízes, gastos com saúde, educação.
Não existe lógica financeira, macroeconômica que possa legitimar essa operação.
Peça 2 – como expropriar o orçamento
Desde o início da internacionalização dos capitais, a dívida pública (ou soberana) se constituiu em um dos terrenos preferenciais de atuação dos bancos internacionais. No início do século, um chanceler argentino chegou a propor uma moção autorizando países credores a invadir devedores em caso de calote. E contou com o voto a favor de Ruy Barbosa, um sócio da banca londrina.
A própria criação do FED, como instituição privada, visou consolidar essa prioridade. E, mesmo não logrando emplacar o livre fluxo de capitais em Bretton Woods, a banca conseguiu criar modelos que minimizassem os riscos soberanos.
Em qualquer livro-texto, defende-se a dívida pública como um instrumento para investimentos públicos que terão como efeito aumentar a eficiência estrutural da economia ou reativar economias combalidas.
No caso brasileiro, desde o Plano Real a dívida pública serviu apenas para alimentar a dívida pública. Não há paralelo de um saque tão continuado sobre o orçamento público como o que ocorreu nesse período.
No governo FHC, a relação dívida/PIB saiu de menos de 20% para quase 70%, mesmo com a privatização em massa e sem ter acrescentado um torno a mais no parque industrial ou na infraestrutura brasileira.
Com Lula e Dilma, a mesma coisa, um enorme esforço para trazer a relação dívida/PIB para patamares mais civilizados, a criação de um colchão de reservas cambiais, apenas para diluir o risco dos investidores e não ter que mexer na livre circulação de capitais.
Peça 3 – a falsa ciência legitimando o jogo
Há um conjunto de condições necessárias para o desenvolvimento de um país: investimentos em educação, saúde, melhoria de renda, em inovação, em financiamento e assim por diante.
Algumas políticas sugerem menos Estado; outra defendem mais participação do Estado. Todas elas gostam de falar em nome do chamado interesse nacional.
Pode-se defender o interesse nacional desburocratizando a economia, criando um ambiente mais saudável para os negócios. Como se pode defender usando a força do Estado para políticas proativas de defesa da produção interna.
Mas nenhuma política decente pode defender cortes em gastos essenciais porque aí atenta-se contra o longo prazo para benefícios de curtíssimo prazo a grupos específicos.
A maneira de impor essa política foi recorrer a sofismas que não seriam aceitos em nenhum país minimamente civilizado.
1. A ideia de que as taxas de juros elevadas visam compensar desequilíbrios fiscais.
Como defender essa hipótese em um caso flagrante de que o maior fator de desequilíbrio é a própria taxa de juros e a queda de receita provocada pelo desaquecimento da economia, fruto de políticas monetárias restritivas?
2. O modelo de metas inflacionárias para qualquer hipótese de inflação.
Juros só combatem inflação em caso de excesso de demanda na economia. Com a economia caindo 8% em dois anos, não há a menor lógica de continuar segurando o consumo. Pelo contrário, a política monetária restritiva tira mais dinheiro da atividade produtiva, contrai mais o consumo, por consequência derruba mais a receita fiscal e aumenta o déficit público. Em 15 anos de experimento das metas inflacionárias, o único canal eficaz para derrubar os preços foi o canal do câmbio – justamente a política que mais tornou vulnerável as contas públicas e o combate à inflação.
3. A ideia de que basta conseguir equilíbrio fiscal (sem mexer nos juros e no câmbio) para atrair o capital externo e trazer de novo a felicidade.
Peça 4 – o investimento produtivo
O investimento produtivo – de capital nacional ou internacional - leva em consideração vários fatores.
Custo de oportunidade:
Consiste em comparar a rentabilidade esperada do investimento com a rentabilidade oferecida pela aplicação de menor risco na economia: em quase todos os países, a remuneração dos títulos públicos. Com a possibilidade de ganhar 14,15% em dólares (ou mais, dependendo da apreciação da moeda) sem riscos, o investimento só será feito em setores com mais perspectiva de rentabilidade. Fora o tráfico de cocaína, não se conhece setor com tal rentabilidade.
Financiamentos de longo prazo
O único agente que financia no longo prazo, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), está sendo destruído pela política econômica de Henrique Meirelles, com o propósito de sanear as contas públicas sem mexer nos juros.
Capacidade ociosa
O investimento ocorre quando se preenche a capacidade instalada com produtos competitivos. A política monetária amplia a recessão e, automaticamente, o nível de capacidade utilizada. A apreciação cambial reduz a competitividade frente os produtos importados.
Competitividade sistêmica
O que garante a competitividade sistêmica de um país é o nível da mão-de-obra, os investimentos em inovação.
O modelo posto em prática sacrifica todos esses pontos e apresenta, como contrapartida, a única possibilidade de ganhos financeiros
Peça 4 – os jogadores principais
Camarilha dos 6 – Representam o que de mais bronco a política brasileira produziu nas últimas décadas. Mesmo com toda a ilegitimidade do golpe, tivesse um mínimo de envergadura Michel Temer se apresentaria como um conciliador. Bastou saber que comissionados o vaiaram para ordenar uma devassa no serviço público que paralisou departamentos, agências. Sua maneira de fazer política é a seco: divide o orçamento público com os parceiros. E o futuro que exploda.
Mercado – mercado não tem pátria. Por isso é ocioso submete-lo ao teste dos cenários de longo prazo da economia. No momento em que cessar o maná dos juros e câmbio, basta mudar de país.
Ministério Público Federal – assim que foi votado a admissibilidade do impeachment, as cenas dos deputados votando foram tão constrangedoras que a Procuradoria Geral da República ensaiou alguns exercícios de isenção. Passado o impacto, voltou ao mesmo padrão anterior, de fortalecer os principais atores desse jogo através de um trabalho sistemático de perseguição aos opositores. É paradoxal que a organização responsável pelos maiores avanços do país em direitos sociais tenha atuado para fortalecer um interinato responsável pelas maiores ameaças sofridas pelas políticas públicas brasileiras desde a Constituição.
Agora, com a camarilha dos 6 tomando o poder, completa-se o jogo.
1. Explode-se o déficit público, com aumentos generalizados de salários às corporações mais influentes, aumento das emendas parlamentares.
2. A conta de juros permanece intocada, com a Selic em 14,15% mesmo com o PIB caindo quase 8 pontos percentuais acumulados.
3. Definição de limites para os gastos públicos, tomando por base os menores níveis reais da história: os gastos dos últimos anos, derrubados pela queda da receita em função da recessão econômica.
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