O Terminal 35 é a concessão no centro da questão
O espantoso enredo de uma batalha judiciária que envolve Temer, Cunha e o PMDB e vale mais de 2 bilhões de reais
O cordato chefe da Casa Civil do governo provisório, Eliseu Padilha, ficou aborrecido ao ler os jornais no sábado 4 de junho. O Porto de Santos escolhera uma banca advocatícia próxima do PMDB para representá-lo em uma tentativa de encerrar fora dos tribunais um antigo e bilionário litígio com uma empresa privada, dizia uma reportagem. O dono do escritório, Nelson Wilians, já teria participado de jantares oferecidos no Palácio do Jaburu por Michel Temer, hoje presidente interino, e feito parcerias com o advogado Robinson Padilha, um dos seis filhos de Eliseu.
Padilha, o pai, tomou duas providências, não se sabe ao certo se por causa dos planos da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) ou se pelo fato de se tornarem públicos. Enviou uma carta à Folha de S.Pauloa chamar de “absolutamente inverídica” a notícia publicada sobre o filho, dada por Wilians ao jornal, como este replicou em resposta. E, na segunda-feira 6, mandou um ofício ao ministro dos Transportes, Mauricio Quintella, ao qual o porto subordina-se, com uma ordem. Brecar a negociação da Codesp com a banca e remeter à Casa Civil informações sobre o assunto, para subsidiar futuras decisões.
Não é difícil entender a intervenção do Palácio do Planalto e sua intenção de assumir o processo, nítidos no aviso 350/2016 da Casa Civil. O caso é delicadíssimo. Trata-se da maior batalha jurídica da área portuária, um risco de prejuízo grande ao Erário numa disputa estimada por técnicos do Porto de Santos em 2,3 bilhões de reais, em valores corrigidos. O litígio será decidido em uma comissão de arbitragem, portanto, longe das vistas de juízes, graças a medidas suspeitas de nascer sem republicanismo. É do interesse direto de um grupo empresarial financiador de campanha de gente graúda. E o principal: por onde, e quando, quer que se olhe esta história, esbarra-se sempre no PMDB, o partido do poder, de Temer, de Padilha, do réu por corrupção Eduardo Cunha.
O contendor da Codesp é o grupo Libra, dono de três concessões para operar terminais em Santos. Pelos contratos, a empresa paga pelo direito de explorar espaço público. O motivo da briga é a concessão mais importante, relativa ao Terminal 35, assinada em 1998 para valer 20 anos. Logo após firmá-lo, Libra entrou na Justiça contra a Codesp. Queria rever o contrato, sob a alegação de o porto ter descumprido sua parte. O terreno fornecido seria menor do que o combinado, uma linha férrea não fora removida e atrapalhava as operações, os berços de atracação eram pouco profundos. Várias outras ações judiciais surgiram depois, até hoje sem uma solução.
A brecha jurídica para o litígio ser resolvido por arbitragem foi aberta por Cunha. Declarou-se, com votação da atual Lei de Portos na Câmara, primeiro semestre de 2013, uma guerra do peemedebista com a presidenta Dilma Rousseff. A petista queria mexer nas regras dos velhos contratos de concessão, de modo que as renovações seguissem critérios mais favoráveis aos exportadores, e liberassem a construção de terminais privados. Cunha viu aí chance de praticar seu esporte parlamentar favorito, defender interesse patronal contrariado, especialmente quando há dinheiro em jogo.
A proposta de Dilma, através de medida provisória (MP), proibia a prorrogacão da concessão de terminais inadimplentes com o setor público. Era o caso de Libra, que, ao acionar a Codesp na Justiça, passou a fazer pagamentos apenas em juízo, no montante que lhe convinha. Havia o risco de a empresa ser enxotada do porto a partir de 2015, fim do prazo de seu primeiro contrato, de 1995, relativo ao Terminal 37. Cunha esperneou, virou a Câmara do avesso e travou a votação, a fim de derrubar a proibição. Com a MP na iminência de perder a validade, derrotou Dilma e, de quebra, incluiu no texto o aval expresso para arbitragens na área portuária.
Libra saiu feliz da vida. Não surpreende ter sido generosa com o PMDB na eleição de 2014. Seus sócios controladores, a família Borges Torrealba, doaram 1,5 milhão de reais ao partido, conforme registrado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sendo um terço para o diretório do Rio, o de Cunha. Na campanha anterior, de 2010, a família dera aos peemedebistas meros 110 mil reais. “O Grupo Libra informa que realizou doações para campanhas políticas de diferentes partidos e que foram feitas de forma transparente e de acordo com a lei eleitoral vigente à época”, diz a empresa.
Ao examinar a vida pregressa da comissão de arbitragem, um experiente procurador de Justiça não tem dúvidas. Se o Ministério Público quiser, há elementos suficientes para entrar com uma ação de improbidade contra certos personagens. Para ele, houve desvio de finalidade legislativa e violação do princípio da impessoalidade administrativa, com enorme prejuízo potencial ao patrimônio público, pois qualquer desconto na dívida será uma vitória de Libra. Em outras palavras, uma construção legislativa em favor de uma empresa específica. A argumentação remete à Operação Zelotes, a apurar, em uma de suas linhas investigatórias, se houve compra de lei por parte de montadoras devedoras do Fisco e mais tarde beneficiadas por anistia fiscal.
A legislação moldada por Cunha criou condições para salvar os negócios de Libra, mas faltavam ações complementares do governo, para o grupo respirar aliviado. Um decreto regulamentador da arbitragem prevista na Lei e a renovação do contrato de Libra com o Porto de Santos. O assunto foi discutido no segundo semestre de 2013 em uma reunião no Jaburu entre Temer, Cunha e um dos dirigentes da empresa, Gonçalo Borges Torrealba, membro do Conselho de Administração e do Comitê de Relações Institucionais. Temer parecia empenhado em desembaraçar os pleitos do grupo. Deve ter se sentido ainda mais encorajado em 2014. Sua recandidatura a vice-presidente recebeu doações de 950 mil reais dos Borges Torrealba, por meio dos irmãos Rodrigo e Ana Carolina, segundo dados do TSE. Dinheiro usado por Temer para financiar a campanha de vários amigos.
A dobradinha Cunha-Temer no caso de Libra lembra algo dito e repetido pelo presidenciável Ciro Gomes, do PDT. Segundo ele, quando foi deputado de 2007 a 2010, os dois atuavam em parceria. Cunha seria um mercador de leis acobertado por Temer, presidente da Casa de 2009 a 2010.
Seria a Lei de Portos uma das recordações colocadas na mesa pelo réu durante uma conversa recente com o interino no Jaburu? No encontro, Cunha teria encaminhado o papo de modo estranho, ao rememorar a Temer parcerias passadas. Histórias pouco republicanas, presume-se, capazes de servir a algum propósito vingativo de quem está prestes a ser cassado e preso. Ao notar a arapuca, Temer teria reagido aos gritos, no relato de uma pessoa ligada a ele. Teria sido gravado em alguma oportunidade? Ele anda receoso.
Chantagens à parte, Temer, depois de reeleito com Dilma e apoio financeiro dos Borges Torrealba, passou a defender que, ao montar o primeiro escalão do novo governo, a petista entregasse ao PMDB o comando da Secretaria de Portos. O cargo era ocupado então por um senador do PR da Bahia, César Borges. Incluir o posto na cota peemedebista não bastava. Temer queria mais, a nomeação de um fiel aliado para o cargo de ministro, o deputado paulista Edinho Araújo. Dilma resistiu o quanto pôde, mas, assim como na briga contra Cunha na Lei de Portos, teve de ceder no fim. Na foto oficial de sua equipe do segundo mandato, Araújo aparece na sorridente terceira fila, a última.
Há quem diga que, no decreto regulamentador da arbitragem portuária, assinado em junho de 2014, antes de o PMDB assumir a Secretaria de Portos, a petista colocou travas contra eventuais tentações de favorecimento a Libra e sacrifícios da Codesp. A ver se o governo provisório mexerá no texto.
Araújo durou apenas nove meses no posto de ministro de Portos, mas parece ter saído com a sensação de dever cumprido. Em setembro de 2015, reta final de sua passagem pela pasta, autorizou a unificação das três concessões de Libra no Porto de Santos e a renovação antecipada do pacote até 2035, com todos os envolvidos a alardear o pacto por investimentos de 750 milhões de reais. No mesmo dia 2 de setembro, autorizou a criação da comissão de arbitragem para o contencioso. Antes de ser trocado por Dilma em uma reforma ministerial em outubro, ainda teve tempo de indicar dois nomes para a Codesp, Francisco Adriano e Cleveland Lofrano, atuais diretores Financeiro e de Relações Institucionais.
Foi uma demissão dolorida para Temer, conforme se viu na célebre carta de 7 de dezembro de 2015 que o peemedebista enviou a Dilma, aquela em que se definia como “vice-presidente decorativo”. “A senhora não teve a menor preocupação em eliminar do governo o deputado Edinho Araújo, deputado de São Paulo e a mim ligado”, dizia a lamurienta missiva, o mais claro sinal até aquele momento da adesão de Temer ao impeachment. Um salto no tempo até o século passado talvez ajude a entender a mágoa com o afastamento de seu grupo político de um setor caro a Temer e a seus fiéis, como seu chefe da Casa Civil.
O contrato de Libra com a Codesp objeto de disputa foi conquistado pela empresa em um leilão realizado pelo porto sob o comando de um apadrinhado de Temer, Marcelo de Azeredo, presidente ali de 1995 a 1998, tempos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso. Eliseu Padilha era ministro dos Transportes na época e trabalhava para disseminar, através de apadrinhados, a influência do PMDB em Santos, motivo de queixas públicas do então governador de São Paulo, o falecido santista Mário Covas, e do empresário Jorge Gerdau. Diante da desenvoltura peemedebista na Codesp, em 1999 o presidente do Senado na oportunidade, Antonio Carlos Magalhães, disse que “se abrir um inquérito no Porto de Santos, ele (Temer) ficará péssimo”. O que o baiano ACM, morto em 2007, queria dizer?
Há uma pista em uma petição de agosto de 1999 destinada à 3ª Vara da Família de São Paulo. Uma ex-companheira conjugal de Marcelo de Azeredo queria uma pensão. No pedido, os advogados de Erika Santos apontavam Azeredo como abastado, coletor de propinas em contratos de órgãos públicos com o setor privado. Um dos trambiques teria ocorrido justamente na concessão do Terminal 35 à exploração por Libra, o mesmo do processo arbitral. “Estas caixinhas ou propinas eram negociadas com os vencedores das licitações ou com os concessionários e repartida entre o requerido (Azeredo), seu padrinho político, o deputado federal Michel Temer, hoje presidente da Câmara dos Deputados, e um tal de Lima.” Temer, diz o documento, teria levado 640 mil reais em decorrência do contrato do Terminal 35.
A citação ao interino na petição virou notícia em 2001. O procurador-geral da República da época, Geraldo Brindeiro, foi provocado a investigar o assunto, mas, com aquela verve de “engavetador-geral”, como era chamado por sempre proteger aliados do governo FHC, entendeu que não havia motivo para incomodar Temer. E arquivou o assunto. Um inquérito policial de 2006 ressuscitou a história, incluiu Temer nas apurações e chegou ao Supremo Tribunal Federal em 2010. No ano seguinte, o peemedebista foi excluído do processo pelo STF, a pedido do procurador-geral da ocasião, Roberto Gurgel, igualmente sob o argumento de falta de indícios.
No posto há 15 anos, o presidente do sindicato dos trabalhadores da área administrativa do porto (Sindaport), Everandy Cirino dos Santos, diz não ser novidade que Temer dê as cartas por ali, por meio de apadrinhados. É assim desde a gestão de Azeredo, na era FHC. “Libra é o cartão de visita da gestão Temer no porto”, afirma o sindicalista, para quem a Codesp jamais deveria aceitar a permanência de Libra como contratada, por causa da “inadimplência pesada”.
Tão pesada quanto a remuneração que o porto topava pagar à banca de Nelson Wilians para negociar com Libra no Centro de Mediação de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá. Um capítulo articularmente esquisito nesse enredo. A proposta acertada pela Codesp com o escritório previa honorários de 23 milhões de reais, equivalente a 1% do valor estimado por técnicos do porto para o valor atualizado da causa. Além disso, 8% de bônus em caso de vitória do porto e multa de 16% caso o processo fosse encerrado por qualquer outra razão que não um acordo, como a desistência de uma das partes. Ganhasse ou perdesse a Codesp, o escritório ganharia uma fortuna. Sem licitação, diga-se, uma situacão abençoada pelo Tribunal de Contas da União na segunda-feira 27.
A proposta tinha sido aprovada em março pela diretoria-executiva, com apoio de Francisco Adriano e Cleveland Lofrano, os indicados por Edinho Araújo, e submetida no mês seguinte ao Conselho de Administração, para aprovação. O assunto emperrou, porém. O conselheiro João de Andrade Marques, vice-presidente do Sindaport, pediu vista do processo e cobrou explicações da diretoria. Quem e como se chegou à estimativa de dívida de 2,3 bilhões de reais? No balanço de 2015 da Codesp, era de 1,1 bilhão. Na reunião normal do Conselho em maio, nada de resposta. Idem na extraordinária de 6 de junho, data da intervenção do Planalto, não explicada pela Casa Civil a CartaCapital. Sem prestar os esclarecimentos solicitados e em obediência à ordem de Padilha, a direção desistiu do negócio dias depois.
Se o Planalto queria que o escritório fosse contratado sem dar muito na vista, a banca bem que merecia a gratidão. Foi ativa militante do impeachment que levou Temer e Padilha ao poder. Abriga advogados responsáveis por redigir um pedido de cassação de Dilma levado a Cunha pelo ator pornô Alexandre Frota. Sua colaboração com a causa teria parado aí?
Registros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) indicam dois jatinhos do escritório a passar por Brasília no fim de semana da abertura do impeachment na Câmara. Um, de matrícula PRWNA, saiu de São Paulo e pousou na capital federal às 11h08 da sexta-feira 15 de abril, antevéspera da votação. Permaneceu no Cerrado ao menos até a terça-feira 19. Um segundo avião, de matrícula PRARA, aterrissou na capital brasileira às 9h44 do domingo 17, dia da votação, e voltou a São Paulo às 8h17 da manhã seguinte.
Há suspeitas de que aviões particulares foram usados para transportar deputados para votar pró-impeachment. Os céus de Brasília viram um movimento incomum naqueles dias. O deputado Silvio Costa, dilmista do PTdoB de Pernambuco, é um desconfiado. Padilha, articulador de Temer a favor da derrubada da petista, deu motivo para cismas. Na Câmara no dia da votação, diante da tentativa do Planalto de tirar deputados de Brasília para que não votassem, ele declarou: “Nós temos aviões para buscá-los”. Se houve carona privada a deputados, seria recebimento de vantagem indevida. A CartaCapital, o escritório Nelson Wilians disse que “os passageiros das aeronaves nos voos mencionados, obviamente, eram advogados e clientes para os quais o escritório presta serviços”.
No céu ou no mar, a galeria de histórias enroladas do PMDB é de admirar.
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