terça-feira, 9 de agosto de 2016

Os jogos olímpicos: metáfora da humanidade humanizada

Nos Jogos impera uma lógica diferente daquela de nossa cultura capitalista, cujo eixo articulador é a competição excludente. Artigo de Leonardo Boff.

           Leonardo Boff* // www.cartamaior.com.br
O Rio de Janeiro a partir do dia 5 de agosto sediou os Jogos Olímpicos de 2016. Criou-se uma imensa infra-estrutura de arenas, estádios, novas avenidas e túneis que deixarão um legado inesquecível para a população carioca.

A abertura e o encerramento constituem ocasiões de grandes celebrações, nas quais o país-hóspede tenta mostrar o melhor de sua arte e singularidade. A abertura desta vez foi de um esplendor inigualável, à semelhança dos grandes desfiles das escolas de samba. Os efeitos de luzes e de imagens projetadas em telões imensos conferiam uma atmosfera feérica e quase surreal, provocando, em muitos, lágrimas de emoção.
O ponto alto foi o desfile das delegações de 206 países, número maior que os países representados na ONU que são 193. Cada delegação desfilava com os trajes típicos de seus povos, estacando-se pelas cores vistosas e elegantes, os trajes africanos e asiáticos.

Sabemos que em todas as relações sociais e internacionais subjazem interesses e manobras de poder. Mas aqui, nos Jogos Olímpicos, se existiram, ficaram praticamente invisíveis. Predominava o espírito esportivo e olímpico acima de diferenças nacionais, ideológicas e religiosas. Aqui todos estavam representados, até um grupo, muito aplaudido, de refugiados que hoje inundam especialmente a Europa. Talvez este evento seja um dos poucos espaços nos quais a humanidade se encontra consigo mesma, como única família, antecipando uma humanização sempre buscada mas nunca sustentada definitivamente porque não avançamos ainda em consciência de que somos uma espécie, a humana, e que temos um único destino comum junto com a Casa Comum, a Terra.

Esta seja talvez a mensagem simbólica mais importante que um evento como este envia para todos os povos. Para além dos conflitos, diferenças e problemas de toda ordem, podemos viver antecipadamente e, por um momento, a humanidade que finalmente se humanizou e encontrou seu ritmo em consonância com o ritmo da próprio universo. Este é uno e complexo, feito de redes incontáveis de relações de todos com todos, constituindo um cosmos em cosmogênese, se gestando continuamente na medida em que se expande e se complexifica. A esse ritmo não escapa também a humanidade.

Os Jogos Olímpicos nos dão o ensejo de refletirmos sobre a importância antropológica e social do jogo. Não penso aqui no jogo que virou profissão e grande comércio internacional como o futebol, o basquetebol e outros. São antes esportes que jogos. O jogo, como dimensão humana, se revela melhor nos meios populares, nas peladas de rua ou na praia ou em algum espaço gramado ou arenoso. Este tipo de jogo não possui finalidade prática nenhuma. Em si mesmo carrega um profundo sentido como expressão de alegria de divertir-se juntos.

Nos Jogos Olímpicos impera outra lógica, diferente daquela cotidiana de nossa cultura capitalista, cujo eixo articulador é a competição excludente: o mais forte triunfa e, no mercado, se puder, engole o seu concorrente. Aqui há competição. Mas ela é includente, pois todos participam. A competição é para o melhor, apreciando e respeitando as qualidades e virtuosidades do outro.

A tradição cristã desenvolveu toda uma reflexão sobre o significado transcendente do jogo. Sobre ela quero me concentrar um pouco. As duas Igrejas-irmãs, a latina e a grega, se referem ao Deus ludens, ao homo ludens e até da eccclesia ludens (o Deus, o homem e a Igreja lúdicos).

Eles viam a criação como um grande jogo do Deus lúdico: para um lado jogou as estrelas, por outro o sol, mais abaixo jogou os planetas e com carinho jogou a Terra, equidistante do Sol, para que pudesse ter vida. A criação expressa a alegria transbordante de Deus, uma espécie de teatro no qual todos os seres desfilam e mostram sua beleza e grandeur. Falava-se então da criação como um theatrum gloriae Dei (um teatro da glória de Deus).

Num belo poema diz o grande teólogo da Igreja ortodoxa Gregório Nazienzeno ( 390): ”O Logos sublime brinca. Enfeita com as mais variegadas imagens e por puro gosto e por todos os modos, o cosmos inteiro”. Com efeito, o brinquedo é obra da fantasia criadora, com o mostram as crianças: expressão de uma liberdade sem coação, criando um mundo sem finalidade prática, livre do lucro e de vantagens individuais.

“Porque Deus é vere ludens (verdadeiramente lúdico) cada um deve ser também vere ludens, admoestava, já velhinho, um dos mais finos teólogos do século XX, Hugo Rahner, irmão de outro eminente teólogo, que foi meu professor na Alemanha, Karl Rahner.

Estas considerações vem mostrar como pode ser desanuviada e sem angústias a nossa existência aqui na Terra, pelo menos por um momento, especialmente quando entrevemos na beleza das várias modalidades de jogos a presença misteriosa de um Deus lúdico. Então não precisamos temer. O que nos tolhe a liberdade e a criatividade é o medo.

O oposto à fé não é tanto o ateísmo mas o medo, especialmente o medo da solidão. Ter fé mais que aderir a um feixe de verdades, é poder dizer, na esteira de Nietzsche, “sim e amém à toda a realidade”. No seu profundo, ela não é traiçoeira e má, mas boa e bela, alegre acolhedora. Alegrar-se por participar dela o expressamos pelo jogo e, de forma universal, pelos Jogos Olímpicos. Talvez este seja seu sentido secreto.

Leonardo Boff é articulista do JB o line e escreveu Virtudes de outro mundo possível: convivência,respeito e tolerância,Vozes 2006.


Créditos da foto: Roberto Castro/ Brasil2016

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