Eu encasquetei com esse negócio de que voltamos aos anos 30, mais precisamente aos primeiros meses de 1931, quando o golpe de 1930, mais tarde apelidado de "Revolução de 30", começou a ser deglutido. Foi um golpe clássico, com tropas e canhões e tudo o mais, tudo comandado por Getúlio que não se conformava por ter perdido as eleições. Qualquer semelhança com Aécio Neves só chega até aí.
Estranhamente, naquela época a eleição se realizava em março e a posse somente em novembro. Nesse longo período, Getúlio e seus aliados – os governadores de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba – tiveram tempo para formar seus batalhões, atacar posições governistas e plantar na opinião pública, primeiro, que o candidato de Washington Luis, chamado Julio Prestes fraudou as eleições e segundo que os governistas tinham matado o vice de Getúlio, João Pessoa.
Nenhuma das duas acusações tinha provas convincentes – mais ou menos como ocorreu com o recente e ainda insepulto impeachment – mas engambelaram a maioria da população. Assim como se deu no último dia de agosto.
O desenlace foi operesco. O exército governista não conseguiu dominar os rebeldes, que chegavam às portas do Palácio do Catete, só que Washington Luís se recusava a admitir a derrota. Não aceitava sair do palácio. E os golpistas não queriam invadi-lo.
Tiveram que chamar o arcebispo D. Sebastião Leme para convencê-lo. Finalmente, o presidente embarcou, muito elegante, usando fraque, cartola e bengala no carro presidencial, um Ford bigode, ao lado do religioso... rumo ao Forte de Copacabana, onde puxou seis meses de xilindró. Se querem chamar de revolução, chamem; mas também pode se chamar de golpe.
Eis-nos, então numa situação muito semelhante à de 1931 – o golpe de 30 deu-se a 24 de outubro, depois vieram as festas de fim de ano e só em 1931 começou o day after. Tal como agora. E mais um detalhe perturbador: os cariocas fizeram um grande carnaval para Getúlio, saíram pulando e cantando, fantasiados de pierrô, colombina e arlequim achando que seria o início de uma era de prosperidade. Mal sabiam eles que sete anos depois, em vez da prosperidade, viria uma ditadura, com todos seus apetrechos: censura à imprensa e às artes, queima de livros, prisões arbitrárias, assassinatos e tortura.
Eu pude ouvir, no último 31 de agosto, buzinaços nas ruas e alguns rojões comemorativos.
Estou na casa do meu amigo Claudio Kahns, que acabou de produzir, com Lauro Escorel, um fantástico documentário chamado "Imagens do Estado Novo". Vejo um livrão sobre a mesa de centro. São os fac-similes de um diário de 1931 chamado "O homem do povo", dirigido por Oswald de Andrade e sua mulher, Pagu.
Abro o número 1 e aí minha impressão de que estamos nos anos 30 fica gritante. O editorial chama-se "Ordem e Progresso".
"Nós não possuímos uma aristocracia; possuímos apenas uma plutocracia embotada, rotineira, anachronica. A qual plutocracia quer imitar os aristocratas da velha e decadente Europa. Mas imitar não naquilo em que eles são elegantes e nobres, senão no que eles têm de fútil e grosseiro" assim começa um pequeno artigo chamado "Parcimonia nos gastos".
Em outro artigo, intitulado "O perigo comunista" lemos: "Estamos com O Estado e o Diário Nacional. Se existe uma coisa que perturbe profundamente a vida nacioanl é o Communismo. A vida Nacional, como todos sabem, é a cavação de alta esphera. Vender pontenciaes hydraulicos ao estrangeiro, receber grossas mamatas dos governos, iludir a opinião púbica com uma democracia falsa até a medula, eis o que se chama vulgarmente Vida Nacional. Essa vida nacional, os dois grandes órgãos do crédito burguez reformado defendem mesmo com uma gana precipitada de quem se agarra aos últimos galhos duma arvore que despenca. Como nenhum deles tem a coragem clara de acusar o exército que honestamente domina a situação de os fazer falir pela desorganização parasitária em que sempre viveram, o Communismo, ainda sem raízes e sem acção a não ser a dos factos, é o grande culpado. Estamos de acordo. O comunismo dará cabo da 'Vida Nacional'. É preciso esganá-lo".
Em outro artigo nomeado "O Brasil é dos brasileiros"? o autor diz:
"Há quem tenha dúvidas sobre as verdadeiras intenções do capitalismo norte-americano na América do Sul, o campo de batalha que ele escolheu para ferir de morte o seu rival inglez".
Uma foto do Cardeal Sebastião Leme sob o título "Butantan Girls" traz a seguinte legenda:
"O S. Cardeal Leme que, depois da encyclica do papa sobre educação intima resolveu entregar-se à piedosa tarefa de ensinar as meninas a amansar cobras nos cinemas".
A pedofilia está retratada numa charge na qual o padre diz a uma menina:
"Minha filha, o papa disse que só o padre pode ministrar educação sexual às creanças".
"As nossas prisões" parece falar das prisões de hoje:
"Uma das teclas maiores em que bateu a campanha revolucionária, antes de outubro foi o estado immundo e lobrego dos cárceres paulistas. Quem não se lembra da campanha levantada a favor dos presos 'de ideas' que apodreceram sem processo no Cambucy! O povo em 24 de Outubro queimou a notável masmorra onde esteve a figura forte de proletário que é Henrique Covre. Se há um ponto em que a mínima noção de moralidade e de logica exige dos evolucionários agora no poder uma mudança – é esse dos encarceramentos sem processo e das prisões deshumanas. Foram as duas campanhas que deram adesão popular mais ampla à revolução – a da liberdade de imprensa e a dos cárceres horrorosos onde se jogam pobres seres indefezos."
"O homem do nu", artigo de Pagu expõe o machismo e critica o feminismo:
"O Sr. Batista Luzardo proíbe o amor enluarado e institue batalhões do exército – da Salvação. Aristóteles moderno – não quer fitas de Joan Crawford e acha Marlene Dietrich imoralíssima. Não quer ver pernas e acha que os nus, só nos quartos – mais dá voto. E as mulheres polulam ao redor dele. As feministas fazem festas e acham que elle é o homem mais evoluído do mundo. Só se foi porque ele instituiu o novo esporte burguez de footing em viúva alegre. E toda a gente vae gozando".
O jornal é uma espécie de "Pasquim" da época. Tanto é que no dia 14 de abril de 1931 o seu rival "Diário Nacional", ao qual sempre esculhamba, dá o troco: publica um artigo sobre "O homem do povo" com o nome "Um pasquim vaiado pelos estudantes", com o subtítulo "Oswald de Andrade e seus companheiros deram motivo a um novo conflito".
Uma das sacadas mais geniais é o concurso "Quem é o maior bandido vivo do país"?. Leitores indicam seus favoritos em cartas à redação.
No dia 7 de abril de 1931 o resultado foi: 1) Arthur Bernardes (57); 2)Assis Chateaubriand (52); 3) D. Sebastião Leme (47); 4) Júlio Prestes (45); 5) Lampeão (42). Oswald de Andrade vinha a seguir, com 40.
No dia 13 de abril os cinco primeiros são: Francisco Morato (358), D. Sebastião Leme (320), General Miguel Costa (275), Dr. Raphael Corrêa de Oliveira (220) e Assis Chateaubriand (201).
Se o concurso fosse realizado hoje quem seriam os mais votados?
Candidatos não faltam.
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