Ivana Benes // http://revistacult.uol.com.br/
Divulgação. Renan Santos, Kim Kataguiri, Fernando Holiday e Bruno Covas durante campanha
E eis que a direita deixou de ser um genérico no Brasil com a guinada conservadora cada vez mais visível desde as manifestações verde-amarelas nas ruas, o golpe/impeachment e o avanço conservador nas eleições municipais de 2016. Uma disputa narrativa que mobilizou parlamentares, mídia, judiciário, mas que não se pode reduzir a “direita institucional” (ou a partidos como o PSDB).
A direita se expandiu para uma miríade de partidos de aluguel que formam um sopa confusa de siglas e convicções e, mais do que isso, se deslocou e se diversificou para além do próprio receituário do golpe que produziu uma narrativa que se viralizou pelos mais diferentes grupos sociais: identificar a política com a corrupção, identificar o PT com a corrupção (a ponto de se pedir a “extinção” do partido), identificar o Estado com a corrupção, destruir o PT, tomar o Estado, privatizar o que puder e oferecer serviços do mercado associados aos ultraliberais.
“Menos Estado e mais mercado”, o lema que inspira em graus diversos dos liberais a extrema-direita, ainda é limitado demais, abstrato demais, economicista demais para descrever a disputa política e narrativa dos mil tons da direita, com os quais agora temos que lidar.
Enquanto os cientistas sociais buscam novas categorias, fomos catapultados da zona de conforto das últimas décadas em que vimos as esquerdas balançarem o continente latino-americano, em miríade de configurações. Uma diversidade política que explodiu em movimentos sociais e culturais de novo tipo em defesa das liberdades e dos comportamentos.
A cara diversa e multicultural da América Latina foi narrada pelas esquerdas, mas eis que as velhas bandeiras do neoliberalismo e do conservadorismo tomaram um “banho de loja” e de diversidade (como no célebre slogan “United Colors” of Benetton, que celebrava a diferença não problemática).
A direita emerge com novas narrativas de potencial memetizante. Emerge na cara de um jovem negro, gay, periférico, eleito o vereador mais jovem de São Paulo pelo MBL/DEM, como Fernando Holiday, um negro gay neoliberal contra as cotas raciais, contra as pautas do movimento LGBT, que defende o Estado mínimo e as privatizações. E vê políticas públicas para minorias como uma forma de o Estado os tratar como “seres incapazes, e inferiores”.
Um jovem negro gay conservador que desqualifica conquistas sociais importantes numa espécie de síndrome de Estocolmo política, apegado e apaixonado pelos que lhe tiram direitos.
Não há nada de novo em uma direita que desqualifica vitórias públicas e as pautas dos movimentos sociais e políticos para afirmar direitos individuais, calcados na “meritocracia” e na negação do coletivo. “A esquerda quer separar o povo. Separar o povo entre brancos e negros, gays e héteros, religiosos e ateus.” A novidade da frase de Fernando Holiday na Câmara dos Vereadores de São Paulo é que ela sai de uma cara fashion, jovem, negra, com cabelos blackpower adornando um discurso retrógado.
O “bonde da direita” ganha um reforço a partir do momento em que percebem que a disputa narrativa é decisiva e quanto mais sujeitos diversos, mais possibilidades de identificação e engajamento. Não é mais só o “bonde do rolex”, que vai de Aécio Neves a João Dória Júnior, nem a direita institucional, como o PSDB de Fernando Henrique Cardoso, ou a direita ostentação de pastores-deputados e militares na reserva, Malafaias, Felicianos e a família Bolsonaro.
Os Mil Tons do Conservadorismo
A renovação da direita passa, como aconteceu nas esquerdas, pelos que disputam a cultura, os comportamentos, as linguagens e os imaginários. É o que vocaliza duplamente Pedro D’Eyrot, cantor da banda curitibana Bonde do Rolê e um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), que combina os preceitos conservadores e francamente facistóides do MBL com performances hypes de funk carioca e música eletrônica e pop e um visual que lembra o vocalista do The Cure. O vocalista assumiu a dupla personalidade pop, para a Folha de S. Paulo (entrevista de 7/10/2016), deixando claro a consciência que têm da disputa no campo da linguagem:
“Partimos da tese de que faltava estética e apelo para difundir na sociedade uma visão de mundo mais liberal. A esquerda contemporânea desenvolveu uma roupagem romantizada para seus ideais e, assim, formou uma militância consistente. Era preciso –com o perdão da ironia– revolucionar o liberalismo.”
Esse “juvelhinismo” (jovens que reproduzem e dão cara nova a velhas ideias) também catapultou Kim Kataguiri, liderança do MBL, colunista da Folha de S. Paulo, e ideólogo de uma garotada com discurso hiperpolarizado, simplista, mas que além de reproduzir ideias prontas da velha direita, cria uma narrativa possível para milhares de jovens que cresceram ouvindo que ou o Brasil acabava com o PT e a esquerda, ou a esquerda acabava com o Brasil. E onde todas as conquistas e avanços sociais foram taxadas e criminalizadas como forma de corrupção e populismo.
O bando de Kataguiri, Fernando Holiday, Pedro D’Eyrot, do MBL, e de outros movimentos de uma juventude conservadora, começam a dar cara a essa direita descolada, com roupas moderninhas, visual “não binário”, uma negritude fashion, que torna mais palatável e chancela o massacre da serra elétrica no campo das liberdades e dos direitos. Não é de hoje que jovens, pobres e minorias trabalham voluntariamente pela sua própria escravidão, mas o que temos no Brasil é uma renovação nas redes, ruas e territórios desse imaginário da direita.
Direita Ostentação
A direita ostentação no Brasil ganhou cara e visibilidade em muitas frentes, com a chegada dos pastores-deputados evangélicos e sua cruzada divina e racista contra os direitos das minorias e outras religiões, demonizando literalmente os gays, negros e as religiões de matriz africana.
Essa direita pastoral se associou rapidamente com a direita militar, policialesca e bélica, que defende a volta da ditadura, a tortura, a população armada e nega direitos para grupos indígenas, negros e migrantes (a “escória do mundo” segundo Bolsonaro pai, representante dessa estirpe).
Essa “direita comportamental” tem travado uma guerra incessante contra todos os avanços e direitos das minorias, direitos de gêneros, de grupos, sejam os direitos das mulheres, dos gays, dos negros, da população carcerária, dos jovens negros nas periferias. Seja contra a liberdade de expressão religiosa, induzindo a discursos de ódio, ataque e destruição de terreiros de candomblés ou destruição da iconografia católica. Não podemos esquecer o “chute na santa” que escandalizou o Brasil, quando a imagem de Nossa Senhora de Aparecida, padroeira do Brasil, foi chutada pelo Bispo Sérgio von Helde, da Igreja Universal do Reino de Deus em 1995.Uma direita que quer reformar o mundo violentando desejos, sexualidades, crenças e liberdades.
Os mil tons da direita e dos conservadores no Brasil chegam pois em 2016 hackeando a própria esquerda. As manifestações verde-amarelas de 2015 e 2016 hackearam junho de 2013. Fizeram o dever de casa e passaram a disputar, com a ajuda luxuosa da grande mídia, dos empresários da FIESP, do judiciário, dos indignados desorganizados, a narrativa em torno da corrupção, da crise econômica e da insatisfação, pela direita e pela esquerda, com o governo popular.
A direita tem utilizado as redes sociais de forma memética, com ondas de comoção na disputa de um mundo pretensamente moderno, com menos Estado e mais mercado, que pode se aliar e se expressar de formas variadas, com a cara do “Bonde do Rolê”, com a cara negra e jovem de Holiday ou de Kataguiri, até a cara de um pastor-deputado evangélico que promete curar os gays e libertar os praticantes das religiões brasileiras de matriz africana dos demônios.
O que há de mais atrasado e obscurantista emerge nessa vanguarda da retaguarda conservadora que serve para “limpar o caminho” para os liberais do PSDB, os conservadores da USP, os economistas que estudaram em Londres, Oxford, os liberais que defendem a regulamentação das drogas como Fernando Henrique Cardoso, a direita soft da Rede, de Marina Silva, uma seringueira, ecologista, que passou para o outro lado do rio e desposou Aécio Neves.
E ainda temos um ingrediente indispensável na geleia geral brasileira. As classes médias, que segundo o cientista social Adriano Codato, “pensam como sempre pensaram: que a política é um privilégio dos letrados, que os cursos superiores são o destino dos bem-nascidos, que a corrupção é o único mal nacional e que pobre deveria é andar de ônibus.” Uma classe média que sofre “racismo de classe” diz Codato (entrevista a Ponte Jornalismo em 1/7/2015) e que se horrorizou com a emergência de uma classe C disputando seu imaginário de pequenos poderes e “privilégios”, como viajar de avião ou entrar na universidade.
Todas essas forças ameaçam o estado de bem-estar social, ameaçam os programas sociais e culturais, que apenas começavam a produzir efeitos no Brasil. No pior dos mundos (o pós-golpe capitaneado pelo governo ilegítimo de Michel Temer) veremos a associação dos liberais contra o Estado, os privatistas, com os que demonizam o PT e os programas sociais, com os que são contra as cotas raciais, com os que demonizam os comportamentos e a diversidade cultural. A direita letrada aliada ou envergonhada da direita fundamentalista, que é contra o casamento gay, o aborto, os cultos religiosos populares, a liberdade das mulheres, as linguagens e estéticas que vêm das periferias.
A Direita Transante
Flertando com o liberalismo e essa direita comportamental surge a autodenominada “direita transante” (um termo hackeado pelo Bonde do Rolê de Pedro D’Eyrot das festas de verão da esquerda carioca que conclamava a “esquerda festiva”, “transante” e libertária para encontros no Arpoador no verão de 2015. A “direita transante” é uma daquelas “ideias fora de lugar” de uma juventude conservadora, cujo liberalismo não suporta a existência do outro. Confundem valores libertários com um liberalismo descafeínado e publicitário.
O fato é que há uma direita que envergonha até a direita, a dos curadores de gays, dos defensores da ditadura e da tortura, dos exorcistas e herdeiros do ‘prende e arrebenta”. A “direita transante” vem oferecer uma alternativa aos liberais, a cultura e a estética como seu soft power, como linha auxiliar para um conservadorismo fahion e palatável.
Não entenderam que as condições de possibilidade dessa mobilidade social e subjetiva, dessa diversidade, tanto à esquerda quanto à direita, passa também por condições materiais. Que a disputa de imaginário e das narrativas será apenas uma “inclusão visual” e memética vazia, se não for acompanhada pelo acesso e posse de bens culturais, serviços básicos, saúde e educação, posse dessas linguagens e mundos.
O que está em questão não é um embate dualista e simplório entre a polifonia disruptiva que emergiu nos últimos anos dos governos progressistas e o império tecnocrata dos homens de camisa social azul, liberais monoglotas. A direita encontrou a diversidade de estéticas e narrativas, mas insiste em submetê-las todas a um receituário liberal que diminui a própria diversidade dos mundos. Lutando pela sua própria escravidão. As lutas em curso não serão abortadas de uma hora para outra, o campo em que podem se fortalecer e dar saltos quânticos e avançar está ameaçado de ser salgado, travado, desinvestido, esvaziado.
Ainda bem que encontramos em todo lugar o senso de busca, desapego aos dogmas e abertura para o novo e para outras aventuras. A moral dos moralistas, a esquerda da direita chegou com seu museu de novidades e juvelhinismo.
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