Vencedor do Jabuti na categoria Ficção do Ano com o livro “A resistência”, o escritor fala sobre as origens autobiográficas de seu romance
Paula Pires
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Aos 35 anos, o brasileiro de família e raízes argentinas Julián Fuks recebeu, nesta quinta (24), o prêmio Jabuti na categoria Ficção do Ano com o livro A resistência, de 2015. Em suas narrativas, o autor revela a descoberta constante da escrita: um processo entre a criação e o relato, por vezes poético, de suas próprias sensações, pensamentos, análises e vivências ao longo do ato de resistência que é escrever.
Doutor em Literatura pela USP, Fuks não escreve um romance como costumamos entendê-lo, mas o desafia a se apresentar em outras facetas, com situações menos óbvias, sem personagens caricatos. É que, para ele, o romance é um território híbrido, sem fronteiras demarcadas com outros gêneros. Fuks está sempre em busca do romance possível.
No premiado A resistência, o autor traz um tema delicado e complexo que se mescla com sua própria história: o processo de adoção do irmão em meio à fuga de seus pais, perseguidos na ditadura militar argentina, a chegada ao Brasil e a decisão de permanecer no país. Em entrevista à CULT, ele fala sobre as raízes de seu romance premiado.
CULT – Em que medida resistir é existir ou vice-versa?
Julián Fuks – O romance, a princípio, se chamava “O irmão possível”, que colocava mais centralidade na questão da adoção. Só que a editora tinha problemas com esse título, pelo fato de o Chico Buarque ter publicado logo antes O irmão alemão, meu livro poderia ter uma cara de paródia do livro do Chico. E em um dado momento “A resistência” surgiu e me pareceu complexo o bastante, porque há muitas resistências ao longo do livro. Pode não estar mencionada assim. A resistência dos pais à ditadura militar é a mais imediata, mas há a resistência do irmão ao convívio familiar, a resistência do narrador ao contar essa história. Então tem uma série de resistências atravessando o livro e é aproximando dessa noção mesmo: de resistir como um ato simples de existência, existir e resistir como duas coisas muito relacionadas. Hoje está se fazendo muito esse trocadilho com o reexistir: voltar a existir. Resistir seria uma forma de voltar a existir. Gosto, especialmente, do que a palavra tem de ambivalente: resistência como algo negativo, como uma recusa a alcançar algo ou, pelo contrário, como um ato de força, de posicionamento diante de uma situação que exige uma tomada de posição. Eu gosto de pensar a literatura como capaz de fazer essa transição: do sentido mais negativo de resistência para o sentido mais positivo. Por meio da escrita a gente pode transformar uma resistência na outra.
Além de tentar encontrar algo das raízes familiares do seu irmão, você também tenta se reencontrar ao longo do livro. Pode falar um pouco sobre essa busca?
Na verdade a minha relação com a Argentina sempre foi muito ambivalente e complicada. Eu sempre tive muita identificação com a Argentina e procurei ao máximo me aproximar do país, mas ao mesmo tempo encontrava limites nessa cumplicidade.
Que limites?
De não me perceber plenamente argentino sem nunca me sentir totalmente brasileiro. Coloquei isso no livro: o exílio é algo que se herda. Se o filho nasce no exílio dos pais é também um exilado. E a situação do exilado, e também do imigrante, é do não-lugar, de um não pertencimento a nenhum lugar. E eu senti isso muito forte. É sempre muito forte ir pra Argentina, passar o tempo lá. Porque é esse processo de identificação constante e também de afastamento. Eu já tinha escrito sobre a busca identitária deste mesmo narrador, o Sebastián, por suas próprias origens, por seu passado, seu passado familiar. E, em parte, eu achava que isso estava resolvido naquele livro. Eu acreditava que eu não iria voltar a escrever sobre a Argentina. Mas, de repente, eu me vi falando do meu irmão e para falar do meu irmão eu precisava, de novo, voltar a falar da Argentina e falar dos meus pais. À medida que eu reconstitui a história deles, eu reconstitui a minha própria. Então, estava envolto de novo nas mesmas questões. Percebi que são coisas que não se superam tão facilmente. Que eu não deixo para trás. E também não penso que, com o livro, eu vá resolver aquilo que não estava resolvido, que vou superar essa ambivalência. Ela continua, ela permanece, ela tem certa resiliência.
A adoção é um tema marcante na sua obra e a adoção aqui também pode significar ser recebido, acolhido, querido. Você se sente adotado pelo Brasil ou foi você quem adotou o país?
Hoje eu me sinto mais brasileiro do que antes. O Brasil adotou muito generosamente a minha família inteira. Meus pais foram muito bem acolhidos aqui, isso foi uma das coisas mais marcantes da vida deles. Eles vieram de passagem, não ficariam no Brasil, estavam indecisos. Um queria ir para o México, o outro para a Espanha. Aqui era simplesmente uma escala. E foram muito bem acolhidos, mesmo no contexto de ditadura militar. Aqui, eles corriam riscos, estavam sendo perseguidos. Mas, ainda assim, há outra sociedade para além da “oficial” que pode ser muito acolhedora. Há sérios problemas de governo, de autoridade e de desempenho dessa autoridade no Brasil e, no entanto, existe toda uma vitalidade pra além disso, uma candura e um valor no que há nesse país. Acho que meus pais se sentiram muito bem. Quando a ditadura acabou, eles demoraram para voltar à Argentina, e essa é uma parte que não está nem no livro: eles não quiseram voltar de imediato para a Argentina. Eles ficaram aqui até 1988. Voltamos para morar lá, mas não conseguimos, não nos readaptamos. Ficamos dois anos somente. Naquele momento, a Argentina era um país menos interessante, menos acolhedor do que o Brasil.
Por falar em ditadura na Argentina e no Brasil, você percebe uma diferença de posição, hoje, entre argentinos e brasileiros na relação com esse passado tão recente?
Há muito que se apreciar no exercício da memória que se faz na Argentina. Esse contato com o passado é mais intenso, mais profundo e mais sofisticado. O Brasil é incapaz de refletir sobre seu passado. Ao contrário, aqui, tenta-se superar aquilo que passou. É curioso, o povo brasileiro sempre se mostrou pouco combativo ou menos combativo do que os povos desses países vizinhos. Na Argentina, a resistência à ditadura militar foi mais forte talvez porque o regime tenha sido mais sanguinário, assim como no Chile. Acho que aqui houve uma cumplicidade, uma leniência grande de parte importante da população com a ditadura. Sinto que nunca se fez devidamente a crítica àqueles tempos, aos autoritarismos, às violências, às repressões. Com o passar do tempo, a balança política pesa para o outro lado e a gente não elabora construtivamente esse passado. Mas quando a balança volta para o outro lado e pende mais para a direita, os autoritarismos afloram. O que a gente vê hoje no Brasil é um recrudescimento desse sentimento autoritário de trinta anos atrás. Faltou a crítica àquele momento. Recentemente, invadiram o Congresso – um grupo pequeno, por sorte, mas um grupo significativo – para pedir a volta dos militares. Que falta de rigor histórico, de conhecimento do passado há para que pessoas peçam isso? Volto a pensar que isso tenha a ver com o modo como se encerrou a ditadura aqui, com uma suposta reconciliação nacional, marcada pela anistia. Essa é uma falsa conciliação, porque os crimes que permaneceram impunes foram aqueles cometidos por apoiadores do regime. Essa reconciliação trouxe a ideia de que o Brasil precisava de uma pacificação geral, sem julgar os erros do passado. “Vamos passar agora a uma tranquilidade democrática”. Só que isso não funciona justamente porque as pessoas precisam refletir criticamente o processo histórico que se deu até aquele momento, para pensar que passos dar dali para frente. Com essa condição conciliatória, os professores de história não tiveram possibilidade de fazer a crítica severa que a ditadura merecia.
Para você, o que tornou A resistência o livro vencedor do prêmio Jabuti nas categorias Romance e Ficção do ano?
Desde o início os leitores tiveram uma relação diferente com esse livro. Talvez pelo aspecto ambíguo que ele cria, de você não saber ao certo se está lendo uma ficção ou algo autobiográfico. Em comparação com meus livros anteriores, há um envolvimento do leitor com a obra que é de outra natureza, e eu mesmo senti um vínculo mais forte com o leitor desta vez, que vinham me procurar para comentar as sensações tiveram ao lê-lo. E críticos e jurados são fundamentalmente leitores. Se eles se deixam tocar da mesma maneira, também fazem uma apreciação – de outra ordem – estética. Mas eu não acho que as duas coisas estejam separadas: o sentimento que o livro provoca e a sensação estética que ele possibilita. Então, as duas coisas devem estar presentes na avaliação do júri.
Você tem consciência de que é um bom escritor e de que o seu livro ganharia o prêmio?
Eu me esforço bastante. Todo escritor em alguma medida tem algo de crítico literário, nem que seja crítico da própria obra. Eu dedico um olhar crítico à minha própria escrita e não saio de uma frase, de um parágrafo e de uma página até ficar plenamente satisfeito com ela. Então, de fato, ao terminar esse livro, eu estava, em alguma medida, contente com o que eu tinha alcançado. A minha relação é ambígua com o livro: algumas vezes eu o encaro literariamente e em outras eu o encaro como parte da minha intimidade. Eu não consigo enxergar plenamente como ele é ou como um leitor qualquer enxerga. Talvez nenhum autor consiga. Em termos de prêmio, eu sei que essas coisas são muito imprevisíveis. Já fui três vezes finalista do Jabuti, em nenhuma delas eu havia ganhado. Parte de mim tinha vontade que isso acontecesse. Como o que eu escrevia estava sendo valorizado, eu sentia que algum dia esse reconhecimento por meio do prêmio aconteceria, mas não necessariamente pensava que seria com esse livro. Pelo contrário, À procura do romance, um livro que tinha sido escrito de uma forma muito mais trabalhosa, é mais complexo que A resistência. E eu achava que ele teria uma apreciação critica maior do que teve. Neste, eu estava mais relaxado, tinha menos expectativa que ganhasse o prêmio. E, de repente, aconteceu. Foi bom.
Paula Pires é jornalista e mestranda em Comunicação e Audiovisual pela Universidade de São Paulo (USP).
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