terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Mandando fascistas para o inferno: Perfil de Woody Guthrie

(Foto: Hulton Archive/Getty Images)

Por João Batista Cesar
Caros Amigos - http://www.carosamigos.com.br/

Quando se anunciou que Bob Dylan havia ganho o Nobel de Literatura, os setores progressistas se dividiram. Uns viam a conivência de Dylan com o expansionismo sionista no Oriente Médio (presente, por exemplo, na música Neighborhood Bully), sua conversão ao cristianismo no fi nal dos anos 1970, sua postura aburguesada e conformista nas últimas décadas, como provas definitivas de que o velho bardo jamais havia desembarcado de verdade no campo progressista.
Outros, os que viveram com intensidade a história de seu tempo, que foram à luta, veem Dylan como um aliado de todas as horas: da luta à festa. Diferentes gerações que sonharam utopias ao redor de fogueiras e se horrorizaram com a miséria e a injustiça do mundo. Suas músicas foram a voz do movimento estudantil em diferentes momentos, sua oposição à guerra do Vietnã, sua crítica contundente ao establishment norte-americano. Não é à toa, por exemplo, que o senador Eduardo Suplicy repita Blowing in the Wind quase como um mantra, quando quer anunciar os novos tempos que estão chegando...

Quem conhece a vida e a obra de Dylan, vislumbra por trás de sua faceta rebelde, de sua crítica ácida, a presença do velho Woody Guthrie, um dos mais emblemáticos músicos do século 20, que militou no campo da esquerda durante toda a vida. Com seu inseparável violão, onde se destacava a frase “Máquina de matar fascistas”, Woody percorreu os Estados Unidos de ponta a ponta, misturado a seu povo, impregnando-se de vida cotidiana. Levava o brado de luta e resistência aos oprimidos e um enorme talento musical que fascinava as pessoas ao redor.

Woody Guthrie usava a música como arma. Desde cedo se ligou à música folk que brotava ao seu redor. Compôs mais de mil músicas, foi homem de rádio bem-sucedido, jornalista, escritor. Animou comícios, passeatas e greves. Viajou clandestino em vagões de trem, dormiu no mato, foi de carona, dez anos antes que os beatniks fizessem isso e vinte anos antes dos hippies.

Foi Woody Guthrie o responsável por Bob Dylan dar o pontapé inicial em sua carreira. Dylan tinha 19 anos e, já espírito inquieto, resolveu ir a Nova Iorque visitar Woody, que estava hospitalizado com uma doença mental degenerativa. Dylan se muda para o Leste para estar perto de seu ídolo. Ele passa tardes no hospital absorvendo o que pode do velho mestre, mostrando suas músicas para Woody, que adora aquele adolescente com trabalho tão original. Uma das primeiras músicas que Dylan compôs, a ele é dedicada: Song to Woody.

Claro, nesta época, em Nova Iorque – principalmente no Greenwich Village – estava reunida a intelectualidade de esquerda americana, entusiasta da música folk desde a década de 1930. Os velhos comunistas, os poetas beats, os intelectuais existencialistas e músicos de toda parte querendo descobrir um caminho. Woody Guthrie nasceu em 1912 em Okhema, Oklahoma, um estado emblemático nos Estados Unidos. No processo de expansão territorial do país, Oklahoma foi tomado dos espanhóis e se tornou uma espécie de reserva indígena. Para lá eram levadas as tribos que iam sendo expulsas de sua terra de origem, com a expansão dos colonos para o Oeste.

A isso se acrescentou uma grande quantidade de imigrantes, que chegaram no final do século 19. Gente que logo se tornou pequeno proprietário rural ou camponês empregado e enfrentava dificuldades para sobreviver. Com essa imensa população pobre, Oklahoma era, nas primeiras décadas do século 20, um estado que se destacava na luta social e no grande número de esquerdistas, era o segundo estado com maior número de socialistas nos EUA. Lá estava a principal organização socialista do país com 12 mil membros em 1914 , como escreve Howard Zinn em seu campeão de vendas naquele país, A People’s History of the United States.

Em casa, Woody aprende músicas do Velho Oeste, canções índias e o folk escocês com familiares. O folk era a expressão cultural que brotava de grupos populacionais meio à margem do sistema. Colônias étnicas, grupos religiosos, comunidades isoladas que praticavam suas atividades culturais de maneira isolada. Músicas vinculadas ao cotidiano de comunidades, às tradições étnicas, ao mundo rural. Um celeiro para artistas atrás de descobertas.

O folk era o gênero musical que ia de encontro às concepções culturais de certas facções de esquerda. Uma música nascida no seio do povo e que, por ter se mantido isolada, uma forma de resistência às práticas culturais desenvolvidas nas grandes cidades. Muitas vezes era transmitida oralmente.

Nos anos 1930, ainda como reflexo da crise de 29, vive-se uma profunda depressão econômica, uma pobreza nunca vista naquele capitalismo cintilante. No campo o quadro é ainda pior, com toda incerteza de uma economia desorganizada. A fome campeia. Mas isso não era o pior.

A superexploração do solo, o desmatamento, o emprego de técnicas inadequadas deram origem a um grande desastre ecológico, que tem entre os elementos o secamento do lago Owen, na Califórnia. As gigantescas tempestades de areia – a areia era levada pelo vento na terra descampada – que durante dez anos vão assolar uma enorme área no coração dos Estados Unidos. É o chamado Dust Bowl, em que nuvens quilométricas de areia cobrem toda a paisagem. Casas, vilas, estradas, plantações, currais, pastos inteiros vão sendo cobertos por areia, num processo de desertifi cação que torna a vida humana inviável.

Especuladores de terra, vindos de dentro das nuvens, agravam o estrago. Estima-se que uma em cada dez propriedades rurais dessa área tenha sido adquirida, desta maneira vil, de agricultores com a corda no pescoço. Famílias são jogadas na rua sem nada. Todo mundo começa a abandonar o lugar...

A Califórnia é a miragem. Uma caravana interminável – estima-se que mais de 400 mil pessoas tenham participado deste fluxo migratório – começa a circular pela Rota 66, “a estrada mais importante dos EUA”, ligando Chicago a Los Angeles. Ia-se de todo jeito: clandestino nos trens, a pé, a cavalo e também de Ford modelo T, para percorrer 4 mil quilômetros de estrada. O carro que revolucionara a indústria automobilística com a linha de montagem, custava dez anos depois, a bagatela de US$ 50.

Woody e sua família vivem a crise e a penúria. Ele deixa mulher e fi lhos e parte atrás de trabalho em direção à Califórnia. Segue com o violão, uma cabeça cheia de ideias e se dilui na multidão. Vai clandestino em vagões junto com mendigos, anda a pé por estradas secundárias, segue em carros abarrotados de gente e de carga dependurada. Faz bicos quando pode e ganha algum dinheiro tocando violão e pintando cartazes – o desenho é outro de seus talentos.

A música, no entanto, ocupa lugar cada vez maior. Ele mistura tudo que aprendeu em casa, com o que vai vendo no caminho, mais toda a infl uência das raízes populares da cultura americana, que vem pesquisando nos últimos anos. Músicas são compostas para um evento e logo esquecidas. Woody canta para mendigos, para enfermos, anima miseráveis. Vagabundeia pelo campo e dorme em acampamentos inabitáveis. Aqui sua história vai de novo resvalar na história de outro norte-americano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. John Steinbeck também está atento ao que acontece na Rota 66. Tem consciência de que aquela ferida aberta no coração do capitalismo era o grande épico de seu tempo. E contar essa história em As Vinhas da Ira vai render a Steinbeck, em 1959, o Nobel de Literatura. Da mesma forma que Woody Guthrie irá compor as suas Dust Bowl Songs (Canções da Tempestade de Areia) narrando essa grande odisseia humana.

Na Califórnia, o paraíso não era tão dourado assim. Além de não haver trabalho para todo mundo, ainda há um forte preconceito contra quem vem de fora. Migrantes são instalados em acampamentos, outros improvisam moradias com latas e papelão. Woody se sobressai. É talentoso, tem opiniões fortes, sabe o que quer. Logo está com um programa de rádio, falando de igual para igual com a sua gente.

Assim Woody, que chegara à Califórnia em 1937, já no final da década é um nome conhecido em Los Angeles. Seu programa de rádio, meio fora do esquema, só divulga música folk e artistas pouco conhecidos. É o “caipira” que passa a ser cada vez mais popular entre os seus, ao defender o interesse daquela massa tão maltratada.

Woody começa a se destacar também por seus comentários políticos e pelas controvérsias que provoca. Ataca políticos corruptos, critica a classe dominante, enaltece os sindicatos e a luta dos trabalhadores e denuncia as péssimas condições de vida no acampamento dos migrantes. O mesmo acontece em suas composições, que cada vez mais refletem sua vontade de dar voz aos que não têm voz.

Na Califórnia há um clima populista. Os imigrantes já estão assentados, já começam a participar da vida, a consumir... O “mercado” está de olho neles, ávido para capturá-los com seus tentáculos. Publicitários descobrem as músicas de Woody sobre o Dust Bowl e também uma canção sobre Thomas Mooney, um sindicalista condenado injustamente a cumprir longa pena. Woody era a ponte perfeita para falar com esse público.

O Partido Comunista também andava de olho em Woody. Os contatos foram intensificados e Woody passou a exercer diversas atividades em conjunto. Woody disse, em algumas entrevistas, que militava desde 1936. Se nunca se provou que ele tenha sido membro de carteirinha, tinha coluna fi xa no jornal do Partido, o The Daily Work. Por isso, quando a Segunda Guerra estava próxima, o proprietário da emissora de rádio começou a se livrar dos comunistas, a começar por Woody.

O espírito on the road que caracteriza Woody, logo o leva para Nova Iorque, onde é recebido com entusiasmo pela comunidade folk esquerdista. Logo está relembrando sua história e falando de sua música numa gravação famosa para a Biblioteca do Congresso. Também grava as Dust Bowl Songs. Em 1940, grava sua música mais famosa “This Land Is Your Land” que compôs para substituir ‘God Blessed America”, que ele odiava. Música das mais conhecidas do país, que vai se tornar uma espécie de hino nacional, num viés popular e sem chauvinisno.

No comitê de ajuda aos retirantes montado por Steinbeck, em Nova Iorque, Woody vai conhecer Pete Seeger, talvez seu principal parceiro musical e membro do Partido Comunista. Woody também se aproxima do lendário Huddie “Lead Belly” Ledbetter, um dos pioneiros do blues. O apartamento de Lead Belly era um famoso ponto de músicos e logo os dois estão tocando juntos em bares do Harlem.

Em 1941, desiludido com o clima de censura, com a rádio, com a indústria de entretenimento de Nova Iorque, resolve pôr o pé na estrada de novo. Consegue lugar na equipe de filmagem de um documentário que vai ser rodado no Rio Columbia, onde estava sendo construída uma grande barragem. É uma zona remota que o encanta e provoca um verdadeiro surto criativo. Compões 26 músicas, inclusive três de suas mais famosas: Roll On Columbia, Pastures of Plenty e Grand Coulee Dam, em menos de um mês.

Com Pete Seeger, Lead Belly, entre outros músicos de esquerda, ele monta o grupo de folk de protesto, Almanac Singers. Se organizam em modo cooperativo, com sede, claro, no Greenwich Village. Woody compõe junto com o grupo, que logo adota a luta antifascista como principal tema de suas músicas. As canções eram assinadas coletivamente. A música folk começava a encontrar seu espaço.

O Almanac Singers logo mostra a que veio. De um lado enfrenta restrições da esquerda tradicional, dos sindicatos que os tratam mais como animadores de torcida do que como parte de um projeto de conscientização de massas. De outro lado, o grupo entra na mira do FBI, por sua intensa atividade e suspeita de conspiração.

O Greenwich Village, bairro boêmio onde se localizava a Universidade de Nova Iorque, reunia artistas e intelectuais de esquerda e os músicos folk, além da fauna gauche. Gente que achava a história americana fruto do pensamento radical que eles representavam – a Revolução Americana, a luta abolicionista do século 19 e o movimento trabalhista do século 20.

Na Segunda Guerra, Woody se alistou na Marinha, onde lava pratos e anima tropas com suas apresentações. Suas posições antifascistas o tornam um soldado entusiasmado. Compõe dezenas de músicas atacando o nazismo e Hitler; outras encorajando os soldados à vitória. Destaque desta época para as músicas All You Fascists Bound To Lose e Talking Merchant Marine.

O talento de Woody para a escrita já havia sido comprovado na novela Bound for Glory, que narrava de forma quase autobiográfi ca seus anos de Dust Bowl. O livro publicado em 1943 recebeu boa aceitação da crítica. A Marinha aproveitou esse talento de Woody e o colocou para escrever livros alertando os soldados sobre o perigo das doenças venéreas. Suas ligações com o comunismo, entretanto, impedem que prossiga carreira militar e se desliga em 1945. Woody muda-se para Coney Island e entra numa fase familiar. Tem quatro filhos, entre eles Arlo Guthrie, que herdará a música do pai.

No começo dos anos 50, Woody já manifesta a doença mental que irá tirá-lo de circulação. A Doença de Huntington, enfermidade genética herdada da mãe, que oferece potencial de risco para pessoas próximas ao doente. Há histórias de incêndios suspeitos na família de Woody. Por isso, acreditando que ele se tornara um perigo para os filhos, a mulher o deixa. Ele vai para a Califórnia e vive numa comunidade formada por músicos e artistas de esquerda perseguidos. Os Estados Unidos fazia sua caça às bruxas. Quando questionado sobre suas ligações com o Partido Comunista, Woody respondia com bom humor: “Eu não sou necessariamente comunista... Mas tenho sido vermelho a vida inteira”.

Woody casa-se de novo e vai morar dentro de um ônibus na Flórida, onde ao tentar acender uma fogueira com gasolina, provoca uma explosão, queima o braço com gravidade e nunca mais voltará a tocar violão. O casal volta a Nova Iorque, mas sua companheira não aguenta cuidar dele em tempo integral e o abandona. Ele irá passar o resto de seus dias hospitalizado.

O folk, movimento musical que Woody Guthrie representa, não para de crescer. O recado estava sendo dado. Desde o final dos anos 50, uma juventude com maior consciência social, inconformada com a desigualdade e com a injustiça inicia uma grande luta pelos direitos civis e pela liberdade de expressão. Woody estava virando um mito.

Pouco tempo depois de sua morte, em 1967, sua presença, suas músicas e suas ideias embalavam a rebeldia de 500 mil jovens no Festival de Woodstock, em 69, um dos maiores momentos da história da música popular. Arlo Guthrie estava lá representando o pai ao lado dos músicos de esquerda do Greenwich Village, como Richie Havens. Estava lá o grupo folk Crosby, Still, Nash and Young, chamado para o festival por ter denunciado na música “Ohio” a morte de estudantes em manifestação. Estava lá Country Joe MacDonald, outro apaixonado por Woody. Joan Baez, a musa folk cantando a música “Joe Hill”, do comunista Pete Seeger, sobre o líder sindical, cantor e compositor condenado injustamente à morte nos EUA e executado em 1915.

O establishment americano estava acuado. Jimi Hendrix desconstruindo nas distorções de sua guitarra o hino americano era a maior metáfora disso. Os acordes do violão de Woody Guthrie estavam no ar naqueles dias: haviam matado uma caralhada de fascistas...

P.S.: fontes consultadas e para saber mais: site ofi cial de Woody Guthrie; “Woody 100”, site criado em 2012 para comemorar seu centenário; os documentários Pete Seeger – The Power of Sound, 2007; BBC Arena – Woody Guthrie; Woody Guthrie at 100 – Dust Bowl Troubador; as reportagens “Listen to Bob Dylan’s Many Infl uences”, reportagem do The New York Times de 15 de outubro 2016, e “‘Por que comigo, Senhor?’, diz Bob Dylan sobre seus críticos”, na Folha de S. Paulo, 19 de fevereiro de 2015.

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