quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Previdência: a chantagem da catástrofe


A Constituição estabelece essa condição para permitir o encerramento do chamado ano legislativo. Assim, não haveria a menor chance de alguma votação de matéria politicamente relevante para depois da aprovação da LOA, tal como ocorreu na noite de 13 de dezembro. Na verdade, o líder do governo, senador Romero Jucá (PMDB-RR), já havia cantado a bola e anunciado o resultado na antevéspera. 

Contrariando todos os esforços e o jogo de cena dos ministros da área econômica, Jucá se valeu da ausência de Temer e tornou público o que já era mesmo esperado. A tentativa desesperada da votação da reforma da Previdência ficaria mesmo para o ano que vem. Com o vice-presidente eleito sendo submetido a uma cirurgia de emergência em São Paulo, o governo ficou acéfalo por um período relativamente curto, mas estratégico para a pauta congressual.

Os desentendimentos entre o líder do governo, os presidentes das duas casas legislativas, o ministro da Casa Civil e o ministro da Fazenda ficaram evidentes. Mas como não havia sido atingida nenhuma margem de segurança para o quórum mínimo de 308 votos favoráveis entre os 513 deputados federais, a solução encontrada foi mesmo adiar a iniciativa para o ano que vem. O presidente da Câmara, Cesar Maia, chegou até a marcar simbolicamente data para o voto: dia 19 de fevereiro, uma segunda-feira.

Bate cabeça no núcleo duro do Planalto

O governo Temer acabou criando para si mesmo uma armadilha. No afã de projetar uma imagem de subserviência absoluta ao centro do financismo, colocou-se uma meta de aprovar as alterações constitucionais nas regras previdenciárias como sendo uma tarefa essencial. Assim, não bastariam os estragos já promovidos com a chamada “PEC do Fim do Mundo”, com o desmonte da CLT, com a entrega do pré-sal às multinacionais ou com a privatização generalizada da infraestrutura.

Temer aceitou o desafio propagandeado pelos colunistas dos grandes meios de comunicação e pelos representantes explícitos e implícitos do sistema financeiro. A verdadeira avaliação de sua gestão à frente do governo, depois do êxito da operação golpeachment, só seria positiva pela métrica de algum sucesso na reforma da Previdência. Obnubilado por tal missão, o núcleo duro do governo mandou às favas toda e qualquer preocupação com o pouco que restava de preocupação com a ética e mesmo com o equilíbrio fiscal. No afã de amealhar os votos necessários, distribuiu verbas, concedeu benesses, ampliou isenções tributárias, generalizou perdões de dívida pública e gastou milhões em campanhas de publicidade mentirosas e escandalosas, depois proibidas por decisões judiciais.

Mas nada disso funcionou até o presente momento. De acordo com pesquisas de opinião, a reforma continua sendo reprovada pela maioria da população e os deputados morrem de medo de colocar suas digitais em duas votações abertas e nominais, tal como a norma estabelece para mudança constitucional. Afinal, em outubro próximo haverá eleições e o receio do julgamento das urnas parece ter superado o preço do voto vendido na base do fisiologismo puro e escatológico. Os mais experientes no conhecimento da dinâmica de nosso parlamento afirmam ser quase impossível que a matéria venha a voto depois do carnaval, tal como previsto por enquanto. A conferir.

“Se votar, não vai voltar!”

A matéria é tão impopular que já promoveu a unidade de correntes adversárias no interior do próprio movimento dos trabalhadores e dos aposentados. Todas as centrais sindicais já acertaram um calendário nacional unificado de greves e mobilizações, com a consigna de “Se votar, não vai voltar!”. Trata-se de uma clara demonstração aos deputados de que sua imagem estaria bastante comprometida caso aceitem se submeter ao jogo de pressão do Palácio do Planalto.

Esgotado todo esse arsenal de convencimento, resta ao governo o apelo ao tradicional clima da antevéspera da catástrofe. O discurso dos representantes da área econômica beira o ridículo, não fosse mentiroso. O mantra repetido dia sim e outro também apela para a instauração do caos, caso a reforma da Previdência não seja aprovada. Ouvimos a lengalenga de que o Brasil vai quebrar se o Congresso Nacional “não assumir sua responsabilidade” e votar o remédio amargo, mas necessário.

E sobram ameaças de novos cortes em programas cujas dotações orçamentárias já foram bastante contingenciadas. Os números relativos ao deficit fiscal para 2017 e 2018 são supervalorizados, como se o rombo de R$ 160 bilhões fosse de responsabilidade dos gastos previdenciários. O governo nada fala a respeito da perda de receita tributária derivada da maior recessão de nossa história, que provocou fenomenal queda nas receitas tributárias. O governo não menciona a medida provisória que concede isenção de R$ 1 trilhão às empresa multinacionais que entrarem na exploração do pré-sal. Meirelles se esquece providencialmente dos valores de sonegação tributária, superiores a R$ 500 bilhões. Nada se ouve a respeito dos quase R$ 500 bilhões relativos às despesas anuais com juros da dívida pública.

Propaganda e manipulação

Assim, a chantagem da catástrofe se manifesta com todo o vigor e escancara sua desonestidade política e intelectual. Ora, é mais do que sabido que as contas da Previdência não terão um centavo alterado no orçamento de 2018, por mais maldosas que sejam as intenções dos responsáveis pela proposta da destruição do Regime Geral da Previdência Social. Quem já está aposentado vai continuar a receber seus benefícios e um contingente de novos aposentados passará a entrar na lista dos justamente beneficiados.

Assim, a eventual aprovação da reforma da Previdência não promoverá nenhuma redução das despesas dessa rubrica no orçamento de 2018 ou 2019. Seja na versão das maldades absolutas tal como desejava o núcleo do governo há um ano, quer seja na versão atual menos danosa e cheia de exceções para agradar determinados grupos de interesse. A única solução sustentável e justa para o desequilíbrio fiscal reside na retomada do crescimento da economia e a consequente recuperação da capacidade de arrecadação de tributos.

Na verdade, a estratégia velada do financismo passa pela fragilização e pelo desmonte de nosso sistema de previdência social, com o intuito de transformar esse volume trilionário de recursos públicos em uma massa de dinheiro a ser movimentada pelas instituições financeiras privadas. A previdência deixa de ser direito de cidadania, tal como definido na Constituição, e passa ser considerada como mais uma mercadoria, a exemplo do que já ocorre com os fundos de previdência privada.

Financismo exige: previdência é a mãe de todas as reformas

Ao contrário da mentira repetida à exaustão, aprovar a reforma da Previdência não resolve os problemas fiscais do governo federal do ano que vem nem dos seguintes. Para isso, o governo seria obrigado a propor cancelamento de benefícios já concedidos, redução de seus valores ou a proibição imediata de novas aposentadorias a partir do mês que vem. E tudo indica que ainda não chegaram nesse nível de monstruosidade, apesar de que não devemos subestimar a vocação genocida de muitos dos ocupantes de altos cargos no governo atual.

A verdadeira intenção é fazer com que o sistema público da previdência perca sua credibilidade e a opção privada cresça como alternativa para a população se aposentar no futuro. O próprio presidente do Bradesco já deu a linha para esse caminho, afirmando que a reforma da Previdência seria “quase uma mãe de todas as reformas estruturais”. Ao que tudo indica, ele está muito bem representado por outros dois banqueiros no coração da equipe econômica: o ex-presidente internacional do Bank of Boston (Meirelles) e o presidente do seu concorrente Itaú (Goldfajn).

À grande maioria da população, ao movimento sindical e às forças democráticas não resta outro caminho que não a mobilização para derrotar a enésima tentativa desesperada de Temer em demonstrar mais uma vez seu servilismo e ampliar a ficha de bons serviços prestados aos representantes do alto mundo das finanças.

Alto lá! Se votar, não vai voltar!


* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal

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