O psicanalista Tales Ab'Saber (Foto Ica Martinez)
Nos últimos três anos, observamos a ativação do ódio no processo político brasileiro. Não que sua aparição seja exatamente uma novidade na vida política do país, uma vez que a violência está no conjunto dos princípios primeiros, fundadores do Brasil. Entretanto, desde o golpe que no dia 31 de agosto de 2016 retirou a presidente Dilma Rousseff de seu cargo, vivemos uma ruptura do projeto de nação progressista e modernista constituído a partir dos anos 1920; um projeto singular, moderno e integrado, pautado pelo desejo de civilização.
A conclusão é do psicanalista Tales Ab’Saber, que atribui a “culpa” desse processo à violência da direita, que esgarçou todas as marcas simbólicas para chegar ao poder, e à fraqueza da esquerda, que se deixou desaparecer. O resultado: quatorze milhões de desempregados, fim de direitos trabalhistas e previdenciários, congelamento de gastos públicos com saúde e educação pelos próximos vinte anos, cortes históricos em programas sociais.
“Não se trata mais de um projeto, não há nenhum espaço para a política que importa, de constituição de civilização. O Estado não está sendo favorável à vida no Brasil”, afirma. Nesse contexto, diz, a democracia se torna uma fachada para a produção de violência, fascismo e desrespeito público – o que se reflete em sintoma social. Leia a seguir trechos da entrevista concedida à CULT.
Você afirma que há uma política de inimizade instalada no Brasil. Pode explicar esse conceito?
A política da inimizade é uma formulação do [filósofo camaronês] Achille Mbembe para as longas tendências políticas agressivas e excludentes, que durante muito tempo se convencionou chamar de fascismo. O Ocidente tem uma longa história de política da inimizade, uma história profunda que em uma de suas facetas se confunde com a sua colonização. Trata-se de um campo muito amplo de pensamento político ao redor da violência – e nos últimos três anos vimos o processo político brasileiro ser pautado pela violência na ação explícita das forças que produziram o impeachment, ou o golpe, dependendo de onde se vê. Isso gerou força para a produção de política, o que em si mesmo é uma degradação da estrutura simbólica de orientação histórica das coisas. Não por acaso, hoje temos pessoas absolutamente fora dos sistemas de legitimidade simbólico dizendo o que tem que ser feito da educação, por exemplo, os tais Escola Sem Partido. São pessoas que vêm da sua família, da sua religião, da sua igreja e tentam enquadrar todo o campo simbólico do outro. A política da inimizade também cria inimigos ao seu espelho. É a lógica projetiva de todo o fascismo. O judeu, o petista, o negro, o gay. São monstros perigosos que autorizam todo o tipo de violência. E essa violência, quando é um movimento político, se torna a organização de uma posição integradora do poder. Essas pessoas se sentem integradas por essa violência. Isso as constitui. É uma política da violência que está tentando responder a uma ordem de sofrimento que não consegue ser pensada de outro modo que não esse: elegendo o inimigo para o sacrifício.
Quem é esse inimigo, hoje, na política brasileira?
Todo o movimento de tomada do poder foi feito fixando artificialmente o campo petista como responsável pela totalidade da crise do sistema político brasileiro, o que é uma falsificação. Se estamos falando da degradação e da corrupção estrutural do sistema político brasileiro, então o responsável por isso é justamente o sistema político brasileiro. Mas se tornou o PT porque esse era um modo estratégico de produzir política e de colocar um certo grupo no poder, um grupo que retoma a tradição autoritária brasileira – e que em uma democracia só conseguiria mesmo governar por meio de uma alteração como o impeachment. É um grupo antiético, todo envolvido em corrupção, que usa o poder para se blindar, que cede legislação e direitos e interesses particulares diretos. Uma elite predadora que se formou em uma relação de violência extrema com o povo, numa posição de senhor de escravo. E o senhor de escravo só tem que dar um prato de comida para reproduzir a força mínima de trabalho, ele não tem que garantir a vida. É isso o que está no poder hoje. Não se trata mais de um projeto, não há nenhum espaço para a política que importa, de constituição de civilização. Esse grupo está numa relação de inimizade com a nação, poderíamos dizer, em que a nação tem que ceder tudo imediatamente. É uma guinada neoliberal bárbara, um assalto aos interesses do espaço público. O Estado não está sendo favorável à vida no Brasil. E tudo isso sob a égide de uma democracia, o que permite que continuem no lugar da legitimidade do Estado, que é a legitimidade de operar a violência. Esse é o paradoxo da situação institucional da dita democracia formal, que está produzindo um campo de violência, fascismo e desrespeito público no Brasil, mas está tudo “normal”. Esse é o sentido da política da inimizade entre nós. A democracia se tornou uma fachada para a produção de uma violência legítima. Tem alguma coisa muito errada. Se a democracia está servindo para isso, que democracia é essa?
Quais são os sintomas sociais dessa violência?
Muitos, um dos principais é a perda de limite da lei para o Estado policial. O assassinato frio de um carroceiro que pede comida em um restaurante por uma polícia que acha que pode dispor do povo brasileiro como bem entender. Essa radicalização da violência policial e essa radicalização do discurso de ataque à legislação universal e internacional dos direitos humanos é resultado da tomada do espaço público por essa direita autoritária. Ela insiste que a polícia tem o direito de decidir a vida e a morte por fora da lei. Esses caras estão trocando a lei pela polícia. Isso é muito grave. Fora isso, o que a gente verifica nas clínicas públicas é o avanço da perda de energia da vida, que vai paralisando as pessoas em estruturas ideológicas que não dão mais conta: são os 14 milhões de desempregados, uma geração inteira de vinte a trinta anos que começa a perceber que a vida está passando e que não vai ter nada para fazer. Isso começa uma ruína, aparece como depressão, como doença, uma doença social que diz respeito a esse Estado que radicaliza os interesses particulares e não dá respostas. A relação com o país é irresponsável e antissocial, e isso é uma política da inimizade. Só que para que isso se sustente, são necessárias ações de força para congelar as tensões sociais, o que evidentemente não acontece. Ao mesmo tempo, onde não há tensão social existe um arruinamento da vida. Nesse momento é isso o que começa a aparecer. Hoje não temos nenhum pacto social nem para que seja uma defesa ideológica do poder, nem para que seja um projeto de mediação para construção de alguma coisa, porque não há nada para ser construído. A vida pública e o cidadão só atrapalham os negócios.
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