domingo, 2 de dezembro de 2018

No Brasil atual, não se grita "herege!", mas "comunismo!", por Philipp Lichterbeck

O novo brasileiro não deve mais questionar, ele precisa obedecer: 'Brasil acima de tudo, Deus acima de todos'

              Foto: Tania Rego/Agência Brasil


Jornal GGN - O colunista da versão brasileira do jornal alemão Deutsche Welle, Philipp Lichterbeck, avalia a onda de retrocessos democráticos no Brasil como uma "moda" do anti-intelectualismo. Para ele, o nascimento do fenômeno, agora robusto e em ascensão, tem raízes na instrumentalização das igrejas evangélicas como modelos de negócios influenciando na credulidade e esperança de pessoas pobres, na demonização das artes e na "negação paranoica de modelos alternativos de família".

No campo puramente político, as conquistas sociais progressistas passaram a ser consideradas coisa de "comunistas": 

"No Brasil atual, não se grita ‘herege!’, mas ‘comunismo!’. É a acusação com a qual se demoniza a ciência e o progresso social. A emancipação de minorias e grupos menos favorecidos: comunismo! A liberdade artística: comunismo! Direitos humanos: comunismo! Justiça social: comunismo! Educação sexual: comunismo! O pensamento crítico em si: comunismo! (...) Porém, a própria acusação de comunismo é um anacronismo. Como se hoje houvesse um forte movimento comunista no Brasil. Mas não se trata disso. O novo brasileiro não deve mais questionar, ele precisa obedecer: 'Brasil acima de tudo, Deus acima de todos'", pontua o articulista.

Lichterbeck retoma a frase do escritor Isaac Asimov sobre o anti-intelectualismo "alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento". Tal perspectiva, rompe com a importante lógica da ciência que tem o discernimento como sua essência.

"Novos inquisidores amam vídeos com títulos como 'Feliciano destrói argumentos e bancada LGBT'. Destruir, acabar, detonar, desmoralizar - são seus conceitos fundamentais. E, para que ninguém se engane, o ataque vale para o próprio esclarecimento", pontua destacando que os "inquisidores não querem mais Immanuel Kant, querem Silas Malafaia. Não querem mais Paulo freire, querem Alexandre Frota. Não querem mais Jean-Jacques Rousseau, querem Olavo de Carvalho".

Sobre a repulsa construída em torno de Karl Marx, o colunista lembra que "qualquer faculdade de economia séria no mundo", ensina o pensador, "porque ele foi um dos primeiros a descrever o funcionamento do capitalismo":

"Mas os novos inquisidores do Brasil não querem Marx. Acham que o contato com a obra dele transformaria qualquer estudante em marxista convicto".

A mesma lógica é repetida na proposta Escola Sem Partido, que pretende limitar que os estudantes tenham acesso às várias linhas de conhecimento. 

"Está claríssimo que a restrição do pensamento começa na Escola. Por isso, os novos inquisidores se concentram especialmente nela". Leia a seguir a coluna.



No Brasil, está na moda um anti-intelectualismo que lembra a Inquisição. Seus representantes preferem Silas Malafaia a Immanuel Kant. Os ataques miram o próprio esclarecimento, escreve o colunista Philipp Lichterbeck.

É sabido que viajar educa o indivíduo, fazendo com que alguém contemple algo de perspectivas diferentes. Quem deixa o Brasil nos dias de hoje deve se preocupar. O país está caminhando rumo ao passado.

No Brasil, pode ser que isso seja algo menos perceptível, porque as pessoas estão expostas ao moinho cotidiano de informações. Mas, de fora, estas formam um mosaico assustador. Atualmente, estou em viagem pelo Caribe – e o Brasil que se vê a partir daqui é de dar medo.

Na história, já houve momentos frequentes de regresso. Jared Diamond os descreve bem em seu livro Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Motivos que contribuem para o fracasso são, entre outros, destruição do meio ambiente, negação de fatos, fanatismo religioso. Assim como nos tempos da Inquisição, quando o conhecimento em si já era suficiente para tornar alguém suspeito de blasfêmia.

No Brasil atual, não se grita "herege!", mas "comunismo!". É a acusação com a qual se demoniza a ciência e o progresso social. A emancipação de minorias e grupos menos favorecidos: comunismo! A liberdade artística: comunismo! Direitos humanos: comunismo! Justiça social: comunismo! Educação sexual: comunismo! O pensamento crítico em si: comunismo!

Tudo isso são conquistas que não são questionadas em sociedades progressistas. O Brasil de hoje não as quer mais. 

Porém, a própria acusação de comunismo é um anacronismo. Como se hoje houvesse um forte movimento comunista no Brasil. Mas não se trata disso. O novo brasileiro não deve mais questionar, ele precisa obedecer: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". 

Está na moda um anti-intelectualismo horrendo, "alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento", segundo dizia o escritor Isaac Asimov. Ouvi uma anedota de um pai brasileiro que tirou o filho da escola porque não queria que ele aprendesse sobre o cubismo. O pai alegou que o filho não precisa saber nada sobre Cuba, que isso era doutrinação marxista. Não sei se a historia é verdade. O pior é que bem que poderia ser.

A essência da ciência é o discernimento. Mas os novos inquisidores amam vídeos com títulos como "Feliciano destrói argumentos e bancada LGBT". Destruir, acabar, detonar, desmoralizar – são seus conceitos fundamentais. E, para que ninguém se engane, o ataque vale para o próprio esclarecimento.

Os inquisidores não querem mais Immanuel Kant, querem Silas Malafaia. Não querem mais Paulo Freire, querem Alexandre Frota. Não querem mais Jean-Jacques Rousseau, querem Olavo de Carvalho. Não querem Chico Mendes, querem a "musa do veneno" (imagino que seja para ingerir ainda mais agrotóxicos). 

Dá para imaginar para onde vai uma sociedade que tem esse tipo de fanático como exemplo: para o nada. Os sinais de alerta estão acesos em toda parte.

O desmatamento da Floresta Amazônica teve neste ano o seu maior aumento em uma década: 8 mil quilômetros quadrados foram destruídos entre 2017 e 2018. Mas consórcios de mineradoras e o agronegócio pressionam por uma maior abertura da floresta.

Jair Bolsonaro quer realizar seus desejos. O próximo presidente não acredita que a seca crescente no Sudeste do Brasil poderia ter algo a ver com a ausência de formação de nuvens sobre as áreas desmatadas. E ele não acredita nas mudanças climáticas. Para ele, ambientalistas são subversivos.

Existe um consenso entre os cientistas conhecedores do assunto no mundo inteiro: dizem que a Terra está se aquecendo drasticamente por causa das emissões de dióxido de carbono do ser humano e que isso terá consequências catastróficas. Mas Bolsonaro, igual a Trump, prefere não ouvi-los. Prefere ignorar o problema.

Para o próximo ministro brasileiro do Exterior, Ernesto Araújo, o aquecimento global é até um complô marxista internacional. Ele age como se tivesse alguma noção de pesquisas sobre o clima. É exatamente esse o problema: a ignorância no Brasil de hoje conta mais do que o conhecimento. O Brasil prefere acreditar num diplomata de terceira categoria do que no Instituto Potsdam de Pesquisa sobre o Impacto Climático, que estuda seriamente o tema há trinta anos.

Araújo, aliás, também diz que o sexo entre heterossexuais ou comer carne vermelha são comportamentos que estão sendo "criminalizados". Ele fala sério. Ao mesmo tempo, o Tinder bomba no Brasil. E, segundo o IBGE, há 220 milhões de cabeças de gado nos pastos do país. Mas não importa. O extremista Araújo não se interessa por fatos, mas pela disseminação de crenças. Para Jared Diamond, isso é um comportamento caraterístico de sociedades que fracassam. 

Obviamente, está claríssimo que a restrição do pensamento começa na escola. Por isso, os novos inquisidores se concentram especialmente nela. A "Escola Sem Partido" tenta fazer exatamente isso. Leandro Karnal, uma das cabeças mais inteligentes do Brasil, com razão descreve a ideia como "asneira sem tamanho".

A Escola Sem Partido foi idealizada por pessoas sem noção de pedagogia, formação e educação. Eles querem reprimir o conhecimento e a discussão. Clique aqui para continuar lendo.

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