domingo, 2 de dezembro de 2018

O pesadelo de Polanyi

por Alejandro Nadal [*]

Para entender o dano que o neoliberalismo provocou nas nossas sociedades é preciso tomar alguma distância histórica. A perspectiva a partir de horizontes temporais longos permite questionar os mitos e lendas que impedem uma crítica correcta da economia de mercado e do capitalismo. Um olhar sobre o passado ajuda a compreender que as feridas no tecido social não são superficiais e são acompanhadas por uma perigosa mutação até na própria forma de pensarmos. 

A primeira coisa que a perspectiva histórica ensina é que a sociedade de mercado nem sempre existiu. Este é o achado fundamental de Karl Polanyi , autor da obra magistral A grande transformação. Apesar de os mercados serem conhecidos desde os fins da chamada idade da pedra, as relações puramente mercantis estavam balizadas por outro tipo de relações sociais que nada tinham a ver com preços e muito menos com uma finalidade de lucro. Para dizê-lo nas palavras de Polanyi, não é a mesma coisa uma sociedade com mercados e uma sociedade de mercado. 

Nenhuma sociedade pode sobreviver sem um sistema económico. Mas o sistema económico baseado na ideia de um mercado auto-regulado é uma novidade na história. Na antiguidade existiram mercados de todo tipo de bens, desde tecidos e sandálias até utensílios e alimentos. Havia preços e moedas. Mas as relações mercantis estavam submersas numa matriz de relações sociais cuja racionalidade não era obter lucro ou benefício económico. Como diz Polanyi, aquelas relações mercantis estavam encapsuladas em outro tipo de relações sociais. 

As coisas mudaram há uns 200 anos. A sociedade do século XVIII foi testemunha desta mudança portentosa e saudou-a como se se houvesse alcançado o ápice da civilização. A admiração cresceu com o mito de que essa transformação culminava um processo cujo motor era uma suposta propensão natural dos seres humanas à troca, para utilizar as palavras de Adam Smith. Essa crença é o que anima a mitologia sobre uma evolução natural que conduziu à sociedade de mercado. 

A realidade é que não há nada natural na expansão do tecido mercantil. Nos povoados e cidades da Europa medieval o comércio era visto com receio e como ameaça às instituições sociais. Por isso era regulado de maneira estrita, com a obrigação de tornar públicos os pormenores de preços e prazo para qualquer transacção mercantil e a proibição de utilizar intermediários. Além disso, manteve-se uma separação rigorosa entre o comércio local e o de longas distâncias. Os comerciantes dedicados a estas últimas actividades estavam impedidos de exercer o comércio a retalho. Os mercados foram sempre uma dimensão acessória das relações sociais. 

O surgimento de estados unificados territorialmente impulsionou a destruição das barreiras proteccionistas dos povoados e primeiras aglomerações urbanas, além de projectar a política do mercantilismo a um primeiro plano. Assim foi aberta a porta para a criação de mercados nacionais. Se as relações de mercado chegaram a cobrir com o seu manto toda a trama de relações sociais, isso resultou da acção do poder público ou do que Polanyi chamou estímulos artificiais, não de uma pretensa evolução natural. 

A sociedade de mercado que se impôs em fins do século XVIII tinha na sua lógica a necessidade de converter tudo o que tocava numa mercadoria. Entre outras coisas precisou da mercantilização de bens (como a terra), que anteriormente não haviam sido objecto de transacções num mercado. Só assim podia pretender o título de mercado auto-regulado. Quando chegou a revolução industrial, a sociedade de mercado já havia transformado a estrutura das relações sociais que havia imperado na Europa. O capitalismo nascido nas relações agrárias na Inglaterra completou o processo ao converter o trabalho em mercadoria e em outro espaço de rentabilidade. 

O neoliberalismo e a globalização das últimas três décadas também foram impostos pela acção do Estado. E o que antes fora visto como uma ameaça para as instituições converteu-se numa realidade tóxica para o tecido social. Tudo o que nos rodeia e até o nosso próprio corpo foi transformado em espaço de rentabilidade para as relações mercantis. O pior pesadelo de Polanyi tornou-se realidade. 

Nas costas de uma teoria económica requentada e refuncionalizada para servir de sustento ideológico, o neoliberalismo dependeu da astúcia do capital para criar novos espaço de rentabilidade. As forças do mercado geral deformaram as instituições sociais e criaram uma cultura do sentido comum que a cada dia nos afasta mais da humanidade e do universo. Forjaram uma cultura popular que gira em torno da competição e do individualismo possessivo, com consequências nefastas para os grupos mais vulneráveis. A história do neoliberalismo é um pesadelo do qual urge despertar. 

30/Novembro/2018

[*] Economista, mexicano. 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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