Utopia versus Distopia
por Fernando Nogueira da Costa*
O termo distopia é compreendido como o oposto de utopia. Esta deve ser vista não como concepção de uma sociedade imaginária, mas sim como contraponto crítico à sociedade real.
A distopia, em ficção científica, é apresentada como uma sociedade imaginária, controlada por Estado totalitário ou por outros meios extremos de opressão, criando condições de vida insuportáveis aos indivíduos. Normalmente, tem como base a realidade da sociedade atual, mas concebida com seus defeitos em condições extremas no futuro. A utopia seria idealizada em condições socialmente benéficas no futuro.
Alguns traços característicos da sociedade distópica são o poder político totalitário, mantido por uma minoria militarizada, a privação extrema e o desespero de um povo, levando-o a se tornar corruptível. Há distopia aqui e agora?
Imaginou-se uma utopia: no começo da quarentena nacional da Itália, visando estancar a disseminação do coronavírus, existiam ruas onde as pessoas de suas varandas cantavam juntas em solidariedade. Um mês depois da primeira experiência de um rígido distanciamento social na Europa, a boa vontade começa a diminuir.
Imagina-se uma distopia: “não tenho mais dinheiro!”. Quem não consegue ter acesso a seus pagamentos de benefícios estatal, vive sua aposentadoria com recebimento de alugueis ou juros, grita desesperadamente. “Vocês deveriam vir à minha casa e ver minha cozinha, está completamente vazia. Vocês são nojentos! O Estado é nojento!”
Um homem chega ao caixa de um supermercado, mas não tem dinheiro para pagar sequer pão. Não adianta argumentar a funcionários sob obediência de ordem superior.
Os cidadãos passam a se exasperar com as consequências sociais e econômicas das restrições sanitárias. Por quanto tempo cada sociedade será capaz de resistir à quarentena será uma avaliação decisiva para as democracias do Ocidente.
As tensões serão mais evidentes nas regiões mais pobres. Policiais armados serão destacados para supermercados, por causa do temor de alguns clientes não pagarem pela comida. O ressentimento na população terá o risco de transbordar em violência.
A maioria dos cidadãos segue as regras. Quem não as cumpre, inclusive divulgando informações falsas ou pregando contra elas, sofre sanções. Há pessoas inconscientes, tendo testado positivo para o vírus da covid-19, não respeitam suas quarentenas.
Os controles passam a ser mais rígidos. A polícia emite advertências e imputar punição dura aos reincidentes. Persegue “os espertinhos” capazes de enfraquecerem o regime.
Viver com essas restrições, sem uma expectativa de quando acabarão, começará a irritar muitas pessoas insensatas. “Quanto mais tempo passo em casa isolada, menor fica a minha casa”, dizem. Se quiserem sair à rua, precisam preencher um formulário para explicar seu motivo. Isso deve valer em conglomerações, mas não só na natureza.
Se as autoridades julgarem um cidadão ter violado as regras restritivas das saídas, permitidas só para compra de suprimentos essenciais ou por motivos de saúde ou trabalho, poderão impor multa. O endurecimento das restrições, desde o início da quarentena, como a proibição de correr longe das imediações da residência ou a redução do horário dos mercados, reforçarão a frustração pessoal ou mesmo a social.
Como o número de pessoas infectadas e mortas continua alto, as restrições serão mantidas, enquanto for necessário para derrotar o vírus. É natural se sentir como um presidiário. Passará a ter maior empatia com todos os prisioneiros.
Um risco é “o guarda-da-esquina” se exceder “por cumprir ordens” sem discernimento. Por exemplo, multar filhos quando eles estão apenas indo entregar comida para seus pais idosos.
Em outros casos, as autoridades agem após indignação pública. Pelas regras, as pessoas podem sair de casa para levar cães para passear. Mas se um homem leva uma galinha para passear, gera reações iradas. Leva a polícia a tomar medidas contra ele. Infelizmente, o convívio do animal humano com outros animais está na origem das epidemias. Mas ele mantém essa promiscuidade aprisionando os bichos próximos de si.
Para evitar essa distopia, necessário emitir moeda para custear cestas básicas para a população. Posteriormente à crise, ela será recolhida via pagamentos de impostos.
Por exemplo, há o direito constitucional à moradia; não é direito à propriedade da habitação. Pacote estatal de ajuda econômica pode incluir medidas como moratória nos pagamentos de financiamentos imobiliários e suspensão dos despejos de famílias vulneráveis por seis meses após o fim do estado de emergência. Visam proteger os desempregados, trabalhadores afastados temporariamente, autônomos de baixa renda, profissionais com perda de “contratos pejotizados” e trabalhadores domésticos.
Fundos de investimentos imobiliários e outros grandes proprietários de imóveis terão de aceitar uma perda de 50% sobre a dívida acumulada pelos inquilinos ou reestruturar esse valor. Alguns contratos de locação serão automaticamente renovados. Mas como ficam os casos de idosos aposentados, cujas insuficientes pensões são complementadas por aluguel de um imóvel para dar conta de pagar alimentos e remédios? Ou de famílias cujos rendimentos são inteiramente dependentes de locação comercial?
No Brasil, a PNAD Contínua estima em 18% as unidades habitacionais alugadas em 2018. Dos 71 milhões de domicílios existentes no Brasil, 12,9 milhões eram alugados. No Sudeste, 20,5% de todos os domicílios eram alugados. As residências próprias, em todo território brasileiro, eram 51,5 milhões, ou seja, 72,5%.
Neste momento de tensão social, é bom ter dimensões de o que se está falando. Por exemplo, segundo a última DIRPF 2018-AC2017, publicada pela SRF (o governo “ultraliberal” deixou de divulgar essas informações), rendimentos de aplicações financeiras somaram R$ 89,9 bilhões, abaixo do rendimento agregado do 13º. salário: R$ 93,8 bilhões. Participação nos lucros ou resultados (R$ 26,7 bilhões) somada com ganho de capital na alienação de bens (R$ 25,5 bilhões) e juros sobre capital próprio (R$ 15 bilhões) atinge R$ 67,2 bilhões e também fica abaixo de um mês de salário agregado.
Nos rendimentos isentos ou não tributáveis, lucros e dividendos somam R$ 280,6 bilhões, e transferências patrimoniais em doações e heranças, R$ 105,6 bilhões. Esses fluxos de lucros, acumulados no ano, são muitos superiores aos aluguéis de imóveis declarados em pagamentos e doações de Pessoa Física: R$ 6,1 bilhões ou 0,9% do total.
Essas informações de aluguel parecem ser sonegadas. Constata-se a dificuldade técnica de mensuração do arbítrio pela carência de informações quantitativas precisas sobre os fluxos de renda e os estoques de riqueza em uma sociedade muito diversificada. A média per capita, quando é possível a calcular, não revela os grandes desvios em relação a ela.
Pela diversidade de quase 13 milhões de casos de aluguel residencial, é prudente evitar a intervenção do governo no tema de renegociações e/ou flexibilizações nos pagamentos desses alugueis pelos inquilinos, se não houver abusos ou oportunismos. Se o poder público intervir, poderá gerar uma corrida ao Judiciário. Não há ainda relatos de ações de despejo. Estima-se os pedidos residenciais representarem 35% das renegociações contra 65% das locações comerciais. A maioria dos proprietários aluga um único imóvel. Locadores e locatários necessitam se entender sem tutela.
É diferente da arrecadação do governo. Poder Executivo e Poder Legislativo podem arbitrar medida isentando as pequenas empresas e autônomos dos pagamentos de seguridade social por seis meses. Além disso, as companhias estatais de água e energia podem ser proibidas de cortar o fornecimento a clientes com pagamentos atrasados.
Afinal, o Estado emite moeda nacional e depois a recolhe sob forma de impostos. Pode adiá-los. Mas famílias e pequenas empresas sem reservas financeiras não conseguem pagar seus compromissos quando têm seus fluxos de recebimentos interrompidos.
Em lugar de cortar salários, seja de empregados do setor privado, seja de servidores públicos, o Estado pode, por meio de um decreto, proibir demissões “sem justa causa ou por conta de diminuição de trabalho e força maior” pelos próximos 60 dias. A medida impediria empresas demitirem pelo fato de trabalhadores estarem realizando a quarentena obrigatória no país.
Outro decreto pode também liberar, durante a emergência, a contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Esses recursos podem ser usados pelas empresas. Tem o objetivo de facilitar acesso a capital de giro por empresas micro, pequenas e médias empresas e evitar demissões.
Na utopia, cidadãos conscientes reclamam com protestos sob forma de panelaços do presidente indiferente à defesa da saúde pública. Na distopia, empresários reacionários reclamam com carreatas e buzinaços do Estado pela ampliação da quarentena obrigatória. Quero imaginar a melhor utopia para a cidadania: A Comunidade imporá seus interesses a O Estado e O Mercado.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Capital e Dívida: Dinâmica do Sistema” (2020; download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
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