Vamos tentar entender: em maio, todos já sabíamos – ou deveríamos saber… – do estrago que o coronavírus provocava, tanto que a Organização Mundial da Saúde classificara a situação como uma pandemia. Mas todos quem?
Por Jornal GGN
Bob Woodward é autor de "Rage", lançado em setembro. Créditos: Wikimedia Commons.
da objETHOS
por Sylvia Debossan Moretzsohn
Primeiro foi o Medo. Agora, a Raiva. Qual será o próximo?
“Cinismo”, talvez, a julgar pelas respostas à reação indignada ao áudio da conversa entre Bob Woodward e o presidente Trump, uma semana antes do lançamento do mais recente anunciado best-seller do jornalista-escritor que se tornou um mito ao revelar, com seu colega Carl Bernstein, o escândalo de Watergate.
O áudio era a prova de que Trump sabia dos efeitos devastadores da pandemia antes mesmo de ela atingir os Estados Unidos, mas preferiu minimizá-la. “Para não causar pânico”, ele argumentava. E sua forma de não causar pânico foi a que se viu: mentir, confundir, desorientar. Deixar morrer.
A divulgação do trecho dessa gravação era parte da campanha publicitária do lançamento de Raiva. Porém, como é óbvio, não atingiu apenas o personagem do livro, mas também seu autor. Porque, se Trump sabia, Woodward sabia que ele sabia. E guardou silêncio até agora. O que deu margem ao próprio Trump de – cinicamente, como sempre – inverter os sinais e tirar proveito da situação: “Bob Woodward guardou minhas declarações por muitos meses. Se pensava que eram tão ruins ou perigosas, por que ele não as divulgou imediatamente, num esforço para salvar vidas? Ele não tinha obrigação de fazer isso? Não, porque sabia que as respostas eram boas e adequadas. Calma, nada de pânico!”
A reação ao comportamento de Woodward foi imediata e, em muitos casos, fulminante. O Independent reuniu várias dessas críticas: Jessica Huseman, da ProPublica, imaginava como os apoiadores de Trump poderiam ter se comportado diferentemente se soubessem da real ameaça do vírus a tempo; Scott Nover, da AdWeeks, confrontava o comportamento de Woodward com o compromisso do jornalista com o interesse público; John Stanton apontava o imperativo moral de denunciar a irresponsabilidade do presidente, porque o que estava em jogo era a possibilidade de salvar vidas. Na Esquire, Charles P. Pierce escandalizava-se ao imaginar como o jornalista pôde acompanhar durante seis (na verdade, sete) meses, sem se abalar, as mentiras diárias de Trump enquanto a contagem de corpos disparava, e assinalava a morte do jornalismo como serviço público como dano colateral nessa história. Dois articulistas da Jacobin acusavam Woodward de ser cúmplice num crime contra a humanidade. Na Folha de S.Paulo, Lúcia Guimarães perguntava: quantas vidas vale a criação de um best-seller?
Woodward procurou justificar-se. Em entrevista à Associated Press, disse, primeiro, que duvidou quando Trump, no dia 7 de fevereiro, lhe afirmou a gravidade daquela “coisa mortal”, “que se pega pelo ar”: “Uau, isso é interessante, mas será verdade?”. Claro, é preciso duvidar de um mentiroso contumaz, e sabe-se lá que casca de banana esse sujeito poderia estar jogando: se já plantou tantas outras armadilhas para acusar a imprensa de disseminar fake news, um ícone do jornalismo seria um alvo especialmente atraente, e teria muitos motivos para preservar-se. Mas e depois, quando o número de contaminados e de mortos começou a crescer exponencialmente, e o presidente continuava a comportar-se daquela forma? Woodward diz que apenas em maio pôde confirmar que Trump de fato já sabia de tudo meses antes, mas, se desse essa informação naquele momento, “isso não diria nada além do que já sabíamos”.
Credibilidade e ignorância
Muitos dos colunistas que saíram em socorro do colega ressaltaram esse argumento. Um deles, Tom Jones, do Poynter, conseguiu a proeza de jogar a responsabilidade para o público: “Enquanto o país via dezenas ou centenas de pessoas morrendo a cada mês e o presidente dizendo e fazendo o que dizia e fazia, como você poderia não saber que Trump estava minimizando o vírus?”. E depois: “Na época em que Woodward teve certeza de que Trump dizia a verdade, o país sabia, ou deveria saber, a verdade sobre o coronavírus. Se você não sabia, o problema é seu”.
Vamos tentar entender: em maio, todos já sabíamos – ou deveríamos saber… – do estrago que o coronavírus provocava, tanto que a Organização Mundial da Saúde classificara a situação como uma pandemia. Mas todos quem? Todos nós, talvez, os mais bem informados. Certamente não a maioria, dado o grau de disseminação de mentiras e informações contraditórias, muito menos os apoiadores de Trump, que, por sinal, fartou-se de desqualificar a OMS, de acusá-la de fazer parte da “conspiração chinesa”, e acabou por retirar-lhe o financiamento. Além disso: ainda que, num dado momento, todos realmente já soubéssemos de tudo, ninguém sabia que Trump sempre soube e agiu como se não soubesse. Portanto, mais que irresponsavelmente, agiu criminosamente. Como de hábito, mentiu, mas desta vez a mentira se materializava numa crescente pilha de cadáveres.
Finalmente, dizer “se você não sabia, o problema é seu” é no mínimo constrangedor para um articulista de uma instituição como o Poynter, referência nas pesquisas em jornalismo. Significa afirmar: as informações estão aí, você é ignorante porque quer. Como se o processo de conhecimento da realidade fosse o mesmo para todos, como se os critérios de credibilidade estivessem incorporados igualmente por todos, como se não existisse a gigantesca estrutura de desinformação que esteve na base do Brexit e da eleição de Trump e tantos outros, como Bolsonaro, que segue precisamente a mesma cartilha. Mas, especialmente, esta frase que joga para o público a responsabilidade pela própria ignorância é muito reveladora para quem estuda a credibilidade no jornalismo: é um exemplo claríssimo do comportamento de quem imagina que cumpriu sua missão quando deu a informação correta, e não precisa se importar se o público vai compreender dessa forma.
Cinismo
Na mesma entrevista à AP, Woodward deixa claro que não foi mesmo para “vender livros”, como tantos afirmaram, que guardou o segredo: àquela altura, diz a reportagem, “a questão não era mais de saúde pública, mas de política”, então a prioridade de Woodward era “divulgar a história antes da eleição, em novembro”.
A questão não era mais de saúde pública, embora o número de mortos aumentasse indefinidamente e esteja hoje no patamar dos 200 mil. Pode haver algo mais cínico do que isto?
Pode.
Não bastasse a canhestra justificativa de que “todos já sabíamos” e que, por isso, não faria diferença o momento da divulgação, foi recorrente o argumento de que, se Woodward tivesse publicado o que sabia desde o início, não teria tido a oportunidade de realizar as 18 entrevistas que foram a base de seu livro, pois Trump lhe negaria novos contatos. Mas o argumento principal, para isentar o autor de qualquer responsabilidade ética, foi o de que ele já não era mais um repórter, mas um escritor. Foi o que ele mesmo declarou em entrevista a Margaret Sullivan no Washington Post, onde fez carreira e do qual é editor associado, e o fato de este ser um cargo formal, como um título honorário, diz bem do cultivo da imagem. Por isso não surpreende que, no mesmo jornal, o crítico de mídia Erik Wemple apele: “Deixe Woodward ser Woodward”.
Pois Woodward é isto: um ícone, um mito, alguém a ser reverenciado, o “legendary reporter” do caso Watergate, o homem que derrubou Nixon. A mitificação é assim, ignora contextos, idealiza o papel do indivíduo na História. Pois é claro que sem o empenho e a tenacidade de Woodward e Bernstein – e sem o apoio de seu editor, Ben Bradlee, e da proprietária do Post à época – o presidente não teria caído, mas nem a melhor série de reportagens seria capaz de produzir esse efeito se não houvesse uma conjuntura política favorável a isso. Porém, fazer essas considerações estraga a lenda.
Kathleen Parker escreveu um raro artigo crítico no próprio jornal onde Woodward fez sua fama. Lembrou que, se não é mais um “repórter do dia-a-dia” mas um autor, é ele quem decide o quê e quando publicar. Como tantos, Kathleen considera que, se a verdade tivesse sido revelada em tempo, Trump teria sido constrangido a agir de outra forma e uma parcela maior da população norte-americana teria tomado mais cuidados. Por isso, conclui seu artigo com uma paráfrase a uma máxima do meio profissional (e acadêmico), ao imaginar o conselho que os editores teriam dado ao repórter, se ele ainda ocupasse essa função: “Publish lest others perish” [“publique antes que outros morram”].
Um velho jornalista brasileiro dizia que gostava mesmo era de fazer móveis, e que sua ética era a mesma da do marceneiro, pois um jornalista não tem ética própria: o que é ruim para o cidadão é ruim para ele. Não se pode cindir o sujeito em dois, o cidadão e o profissional, qualquer que seja a profissão.
Woodward não sabe quem foi Claudio Abramo. É possível que já esteja pensando em seu novo livro. A julgar pelas questões éticas despertadas por este último, material não lhe falta.
Nem título.
Sylvia Debossan Moretzsohn – Professora aposentada da UFF, pesquisadora do ObjETHOS, pós-doutoranda na Universidade do Minho
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