Já está na Livraria da Travessa o livro Tribunal de Contas no Brasil, a falsa cisão entre técnica e política. Fruto de tese de doutorado de Álvaro Miranda, foi lançado de forma virtual pela Editora da UFRJ, na quinta-feira, 17 de setembro e é de uma qualidade impressionante. Editoração cuidadosa em todos os detalhes, capa, contracapa, tudo. Gostaria de dividir com os futuros leitores as impressões que tive ao ler suas 446 páginas. A leitura me fez recordar um desenho animado canadense que assisti já faz algum tempo. Nele, a câmera começava mostrando um inseto, que depois descobria-se ser minúsculo. Isso porque a câmera ia se afastando lentamente e via-se a mão e depois o braço e em seguida toda a imagem de um remador. A câmera continuava se distanciando e ganhando altura. Então, aparecia um lago e em seguida os acidentes geográficos circundantes. Isso sem perder o foco inicial.
A câmera continuava se distanciando cada vez mais e finalmente tínhamos uma imagem da terra vista do espaço. Ou seja, partindo-se do foco no inseto chegava-se a uma panorâmica da Terra vista do espaço. Em seguida, a câmera ia voltando lentamente até finalmente chegar de volta ao inseto. O livro de Álvaro Miranda desenvolve processo semelhante.
Ao focar no Tribunal de Contas e a falsa (aqui já toma posição, o que é ótimo) cisão entre técnica e política, responde com profundidade cada uma das questões e hipóteses colocadas pela pesquisa que deu origem ao livro. Mas, muito mais que isso, responde ao longo da leitura as dúvidas que o leitor tenha sobre a complexa relação entre o que Gramsci conceituou como Sociedade política e Sociedade civil.
Nesse aspecto, e voltando ao título que o autor foi buscar em Bobbio: “a falsa cisão entre técnica e política” – não se pode não pensar no livro como aquele com o melhor título entre todos que se dispõem a analisar essa disputa interesseira que nos é imposta. Falo de “A Tolice da Inteligência Brasileira” de Jessé Souza. Lá ficam muito claras as razões dessa guerra em que o Estado é colocado como inimigo da sociedade, que nada mais é do que o interesse privado (e quase sempre alienígena) travestido em modernidade e democracia.
Continuando a falar sobre a forte – e entusiasmada – impressão que me causou o livro de Álvaro Miranda, diria que nada nele é por acaso. Nada é “descosturado”. É tudo fruto de muito estudo, muita reflexão, pesquisa e conhecimento adquirido duramente. Tudo muito sofrido embora, paradoxalmente, com muito gosto, como se fosse um poema.
Bastante significativo também é que as epigrafes sejam citações de Guerreiro Ramos e Celso Furtado. “O que faz uma ciência é um espírito, uma atitude militante de compreensão de uma circunstância historicamente concreta”. Guerreiro Ramos; “Não se deve perder de vista que a luta contra a dependência não é senão um aspecto do processo de desenvolvimento, e este não existe sem a libertação da capacidade criadora de um povo. Quiçá o aspecto maios negativo da tutela das transnacionais sobre os sistemas de produção na periferia esteja na transformação dos seus quadros dirigentes em simples correias de transmissão de valores culturais gerados no exterior”. Celso Furtado.
E aí, me vem mais uma analogia com uma lembrança do mundo da arte. Carlos Henrique Machado Freitas, músico e pesquisador fantástico, ao falar sobre a origem do samba, a relação do choro com o samba, e outras questões que comprovam a origem “valeparaibana” da nossa música popular, disse que Ernesto Nazareth tocava piano “ouvindo o batuque que trazia na memória”. Quando Álvaro Miranda repete a expressão “República inacabada” emprestada de Faoro, quando fala da incompletude das instituições republicanas e por cada página de seu livro, o “batuque” que se ouve vindo do fundo do coração e da mente é ainda mais forte e sonoro do que o do pandeiro que toca com maestria. O que ele “ouve” e está perceptível por todo o livro é a onipresença da Questão Nacional.
Lendo-se O Tribunal de Contas, a falsa cisão entre ética e política, percebe-se a onipresença das teses de Comblin, Methol e Abelardo Ramos, de que no Brasil, como nos demais “países chicos” desta Pátria Grande, a incompletude (e o atraso, o subdesenvolvimento, a pobreza) tem origem no fato de as independências terem sido apenas formais não sendo frutos de revoluções nacionais. Aqui, as classes hegemônicas são dependentes do ponto de vista cultural, econômico e ideológico dos países imperialistas, particularmente do imperialismo anglo-saxão.
E com isso torna-se impossível não recordar Barbosa Lima e os dois partidos que, segundo ele, disputam o poder no Brasil: o de Tiradentes e o de Silvério dos Reis. O livro de Álvaro Miranda é um instrumento do Partido de Tiradentes. A inteligência tola de que nos fala Jessé Souza serve ao partido de Silvério dos Reis. Enfim, uma obra que passa pela geopolítica, quando foca na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) imposta aos governantes de todos os níveis de poder do país pelo Consenso de Washington; quando demonstra a hegemonia da New Public Management em nossas instituições estatais e até quando deixa claro a absoluta ausência de conceitos em português para se escrever sobre nossas questões de estado.
Ao contrário da nossa República e do Tribunal de Contas que dela faz parte, o livro de Álvaro Miranda não sofre ou causa qualquer impressão de “inacabamento” ou incompletude. Ao recorrer (e ele destacou isso no lançamento) ao materialismo histórico como método e com e por isso valorizar Marx, também fez da luta de classes, que não é só “o motor da história”, um animado batuque a soprar nos seus ouvidos atentos enquanto escrevia um livro fundamental.
*Helid Raphael de Carvalho
Professor colaborador e Pesquisador associado do Inst. de Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e Laboratório de Política Internacional (LEPIN/UFF). Mestre em Política pela PUC/RJ. Doutor em Política pela UFF.
*Originalmente publicado no GGN
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