Por Jornal GGN
foto Jornal 140
do A Terra É Redonda
por Antônio Sales Rios Neto
“Tendo eliminado todos os outros inimigos, o homem é agora o seu pior inimigo.
Ao terminar com todos os seus predadores, o homem é o predador de si mesmo.”
(Garrett Hardin)
A história da humanidade é uma sucessão de modos de viver patriarcais, caracterizados pelo desejo insano de controle, dominação, superioridade, guerra, luta, apropriação da verdade e destruição dos recursos naturais, isto é, pela pulsão de morte que permeou toda a trajetória do Homo sapiens – termo apropriadamente utilizado pelo filósofo britânico John Gray, para quem “a súbita extinção de modos de vida é a norma humana” – nos últimos seis a sete mil anos. Este nosso condicionamento ao patriarcado teve início, segundo a socióloga austríaca Riane Eisler, depois que houve a grande bifurcação cultural no neolítico, quando os povos guerreiros indo-europeus fizeram uso das armas para promover a passagem da “sociedade de parceria”, até então predominante, para a “sociedade de dominação” (O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro, Palas Athena, 2007). Foi a partir daí que as dimensões cultural e biológica foram dissociadas pelo animal humano, afastando-se ele de sua condição natural, e, com isso, o patriarcado passou a orientar todo o tortuoso processo civilizatório. Abordei recentemente este assunto, tratando de suas implicações no nosso presente, em um artigo intitulado Complexidades emergentes.
No entendimento do historiador francês Jacques Attali, que converge em muitos pontos com o de Eisler, o processo civilizatório foi guiado por três principais formas de poder ou “ordens políticas”, como ele chama, que coexistiram e se alternaram para controlar as riquezas, os territórios e o conhecimento e, assim, forjar o desastroso curso da história humana, culminando com a atual situação de crise planetária que está nos arrastando para um colapso civilizatório. Inclusive, não são poucos os cientistas que hoje já cogitam a possibilidade de um autoaniquilamento. São elas: Ordem Ritual (poder religioso, surgido há 30 mil anos), Ordem Imperial (poder militar, há 6 mil anos) e a Ordem Comercial (poder do mercado, 1290 a.C. aos dias atuais). Tanto a Ordem Imperial quanto a Ordem Comercial são expressões típicas do patriarcado, da “sociedade de dominação”, tal como concebida por Eisler. A primeira, em razão da força das armas, e a segunda, pelo domínio no campo das subjetividades. A Ordem Ritual, conforme descrita por Attali, expressa mais um modo de vida orientado pela transcendência do que uma manifestação de poder que possa ser enquadrado como uma força de natureza patriarcal.
A proposta aqui, então, é refletir um pouco sobre esta forma de expressão patriarcal ainda prevalente, a Ordem Comercial, que se destacou sobre as demais, especialmente nos últimos cinco séculos, e ainda deve prevalecer por um bom tempo. Compreender como esta ordem política, vinculada ao fetiche da mercadoria, tornou-se hegemônica, moldou e continua a moldar nosso modo de viver e vem se reinventando nos últimos vinte anos, sob o influxo dos algoritmos, nos ajuda a projetar os graves riscos de profunda regressão para as próximas décadas e nos convoca a pensar, com urgência, como nos libertarmos desse condicionamento milenar e imaginarmos uma sociedade fora da arena patriarcal autodestrutiva.
A longa história da Ordem Comercial
De acordo com Attali, os primeiros esboços de democracia de mercado remontam a doze séculos antes de Cristo. Naqueles tempos longínquos, “mais de cinquenta impérios convivem, combatem entre si ou se esgotam”. Nessa mesma época, “algumas tribos vindas da Ásia se instalaram no litoral e nas ilhas do Mediterrâneo”. Diante do ambiente de profunda degradação social gerado pela força da Ordem Imperial, elas perceberam que “o comércio e o dinheiro são as suas melhores armas. Mar e portos, os seus principais terrenos de caça”. A partir de então, a Ordem Comercial foi, gradualmente, se estabelecendo como uma eficiente forma de controle, dominação e manutenção da ordem entre os humanos.
No entanto, é no ano de 1492, considerado por muitos historiadores um ano singular – não só pela descoberta do “novo mundo”, mas por seus desdobramentos no contexto mundial –, que a Ordem Comercial se sobrepõe com mais vigor sobre as demais. Os muitos eventos combinados que ocorreram em 1492 forjaram o nascimento, imbricado, do Estado-nação e da economia de mercado, iniciando o longo período em que a humanidade passou a ser conduzida pelas forças resultantes dessa simbiose, a chamada democracia de mercado, que aparenta aproximar-se do seu ocaso na contemporaneidade.
Foi em decorrência desse entrelaçamento orgânico entre Estado e mercado que, gradualmente, surgiu a sociedade de mercado, deixando para trás os absolutismos medievais. A partir de então, a Ordem Comercial assumiu o protagonismo da História, antes sob a duradoura hegemonia das Ordens Ritual e Imperial. Na avaliação de Attali, 1492 “é considerado como data importante não apenas por marcar a descoberta fortuita de um novo mundo enquanto se procurava outra coisa, mas também por condicionar e esclarecer o presente”. Para ele, “é o ano no qual a Europa se torna o que denominamos um Continente-História, capaz de impor aos demais povos um nome, uma língua, uma maneira de contar sua própria História, impondo-lhes ideologia e visão do futuro”.
Attali assim descreve o ano cujos eventos mudaram o curso da História: “a partir de 1492, a Europa promove-se a senhora de um mundo a ser conquistado. (…) Novos nômades, os europeus impõem ao planeta sua visão de História, sua criatividade, suas línguas, seus sonhos e suas fantasias. É na Europa que a economia mundial vai concentrar suas riquezas. Tudo isso não ocorre apenas pelo desvendamento de um continente. Em 1492 acontecem inúmeros outros eventos, na Europa e em outros lugares, cuja influência sobre a nova ordem mundial ultrapassa de longe a da viagem de Colombo. Acontecimentos maiores ou apenas simbólicos formam uma totalidade complexa, um ano quase único, no qual a Espanha desempenha papel espantosamente privilegiado. Cai o último reino islâmico da Europa ocidental; os últimos judeus são expulsos da Espanha; a Bretanha acaba por tornar-se francesa; a Borgonha desaparece para sempre; a Inglaterra sai de uma guerra civil. (…) A ordem econômica mundial transforma-se.”
Estes e outros eventos ocorridos em 1492 assentaram a ideologia do chamado “novo mundo”, na qual, segundo Attali, a Europa impôs uma nova ordem política sob três domínios: o da transcendência (Pureza), o do espaço (Estado-nação) e o do tempo (Progresso). O sonho de pureza serviu para a Europa desprender-se de suas raízes orientais, perder o que ainda tinha de tolerância, irradiar seu novo ideal para o Ocidente e, assim, justificar as expulsões, massacres e extermínios dos impuros (o século XX foi o ápice dessa busca insana por pureza). O sonho do progresso viabiliza-se com o desaparecimento dos impérios medievais e o surgimento do nacionalismo impulsionado, de um lado, pela razão de Estado e pelo homem político moderno e, de outro, pelo mercado e pela visão econômica de mundo. As monarquias absolutistas sucumbiram diante dessas novas forças e as instabilidades da civilização passaram a ser resolvidas, doravante, pela via do totalitarismo de Estado. Assim se estabeleceu o novo motor da História: um patriarcado revigorado, desta vez aprimorado sob a forma de democracia de mercado, a qual exerceu prevalência sobre o modus vivendi nos últimos cinco séculos.
Vale ressaltar que a expressão “democracia de mercado” é ilustrativa e, portanto, comporta várias representações. Comumente ela é mais associada ao período pós-Segunda Guerra Mundial, quando se alcançou uma curta experiência de capitalismo combinado com Estado de bem-estar social, o tal sonho irrealizável do “capitalismo democrático” que os americanos tanto desejaram impor ao mundo. No entanto, prefiro utilizá-la para caracterizar o modo de vida hegemônico dos mais recentes quinhentos anos de História, como o faz Attali, compreendidos entre os acontecimentos na Antuérpia da imprensa pujante de 1500, considerada o primeiro centro financeiro da Europa, e o que acontece, desde 1980, no Vale do Silício dos algoritmos que orientam o modo de viver atual e que se encarregaram de levar a financeirização ao resto mundo. Estes dois núcleos comerciais, como os demais que os entremearam (Gênova, 1560; Amsterdã, 1620; Londres, 1788; Boston, 1890 e Nova Iorque, 1929) e também aqueles que os antecederam (Bruges, 1200 e Veneza, 1350), cada qual, a seu modo, utilizaram ferramentas de transmissão de dados e de indução do comportamento humano para impulsionar os ideais greco-judaicos do progresso, da razão e do individualismo, os mitos que sustentaram o patriarcado de mercado da era moderna e ainda o sustentam na contemporaneidade.
Seguindo os parâmetros de Attali, se 1492 pode ser considerado o marco inicial da longa hegemonia da sociedade de mercado, quando a liberdade da política entrelaçada à do capital se consolida como principal vetor da História, 2020 tem muitos elementos para se revelar no futuro, quando os emblemáticos tempos atuais forem interpretados e registrados, o ano em que se encerra o longo ciclo da democracia de mercado. A irrupção da Covid-19 abriu espaço para um “novo normal” e, assim, parece ter lançado a última pá de cal para selar a disjunção entre mercado e democracia, que já vinha sendo gradualmente minada desde a chegada da doutrina neoliberal, a partir dos anos 1970. A pandemia do coronavírus representa um desses raros eventos de escala planetária que aceleram (ou retardam) e mudam o curso da História. Por isso, 2020 certamente será um ano que despertará o interesse de muitos pensadores, sobretudo do campo das ciências sociais, para se entender o tipo de sociedade que emergirá nas próximas décadas.
Pelo menos dois aspectos saltam aos olhos quando observamos como a pandemia afeta a ordem política mundial e dizem muito sobre como esta será reconfigurada nos próximos anos. O primeiro é como alguns países asiáticos como China, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e outros conseguiram, por meio dos algoritmos, que já fazem parte do cotidiano e da cultura destas nações, administrar a pandemia em seus territórios com uma espantosa efetividade. A China, por exemplo, país onde o capitalismo de Estado está funcionando a pleno vapor, mesmo tendo sido o epicentro da pandemia (o primeiro país a ser afetado), representando 18,3% da população mundial, teve apenas 0,45% das mortes provocadas pela Covid-19 no mundo, enquanto os Estados Unidos, ainda considerado por alguns o centro de inovação do sistema capitalista, com 4,3% da população mundial, respondem por 20% das mortes do globo, provocadas pela Covid-19 (Fonte: John Hopkins University – https://coronavirus.jhu.edu/map.html, acesso em 15/10/2020).
O segundo aspecto é o acirramento das chamadas “guerras híbridas” – o uso combinado de armas políticas, convencionais, comerciais e, sobretudo, cibernéticas, com o objetivo de desestabilização de governos, que se sofisticam a cada dia – entre as nações desenvolvidas, amplificadas pela crise econômica e financeira desencadeada pela pandemia e, em especial, pela postura furtiva do presidente Donald Trump. Este cenário beligerante é um dos sintomas de que a democracia liberal estadunidense, o chamado capitalismo democrático que sustentou o imperialismo dos Estados Unidos desde 1890 e garantiu razoável estabilidade à ordem política mundial no pós-Segunda Guerra Mundial, parece estar se aproximando do seu declínio irrefreável dentro do seu próprio território. O ambiente de degradação política e institucional que os americanos enfrentam atualmente parece confirmar o prognóstico apontado por Gray tempos atrás: “o perigo para os Estados Unidos é que, confrontados com um comparativo e logo, talvez, absoluto declínio econômico, uma epidemia de crime incontrolável e instituições políticas fracas ou paralisadas, vão ser levados mais e mais na direção do isolamento e da desordem. Na pior das hipóteses, enfrentam uma metamorfose que fará deles uma espécie de proto-Brasil, com o estatuto de uma potência regional ineficaz mais do que de uma superpotência global.”
Dentro dessa nova (des)ordem política mundial, amplificada pela pandemia, o capitalismo vem, mais uma vez, se reinventando para dar resposta às sucessivas crises econômicas e financeiras, agora com lastro nos algoritmos, e em uma direção que parece apontar para o declínio da democracia de mercado, confirmando o diagnóstico dos professores de ciência política em Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, de que as “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. Ao mesmo tempo, as novas conformações políticas e econômicas indicam o fim do último império global, pois, parece não haver mais espaço na atual lógica da economia de plataformas, muito menos condições geopolíticas, para que outro país assuma este posto. De agora em diante, o mundo provavelmente ficará mais horizontalizado, com algumas potências regionais – orbitando ao redor de países como Estados Unidos, China, Rússia, Japão e de uma conflituosa União Europeia – descoordenadas e em crescente estado de tensão e instabilidade.
Mais uma vez, fenômenos contraditórios continuam a guiar a humanidade. De um lado, estamos diante da possibilidade de retornarmos, após milênios, a ter um mundo mais policêntrico e menos hierarquizado, o que representa o lado positivo das transformações em curso nessa incognoscível mudança de época histórica que a humanidade está vivenciando. No entanto, de outro lado, emerge um totalitarismo de mercado laissez-faire, virtual e difuso, com potencial nunca antes visto de acelerar ainda mais as instabilidades geopolíticas, que, aliadas às catástrofes ambientais, poderá nos arrastar para um colapso civilizacional, como já alertava o historiador inglês Eric Hobsbawm: “enfrentaremos os problemas do século 21 com uma coleção de mecanismos políticos dramaticamente inadequados para lidar com eles”. Para Hobsbawm, se a humanidade insistir em continuar no mesmo modelo civilizatório do século XX, como vem ocorrendo nas duas primeiras décadas deste século, “o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão”. E muitos elementos indicam que a nova sociedade de plataformas, que emergiu nos últimos anos, caminha rumo ao abismo.
Da democracia de mercado ao capitalismo de vigilância
As pessoas, em geral, interpretam a realidade em que estão inseridas como uma condição de natureza permanente e imutável, inclusive porque todas as grandes transformações já ocorridas nas sociedades se deram no transcurso de mais de uma geração e, desse modo, são imperceptíveis aos nossos sentidos. É por isso que hoje não conseguimos, por exemplo, ver alternativas à visão econômica de mundo imposta pelo sistema capitalista. O filósofo britânico Mark Fisher afirmava que nós somos moldados por mecanismos que nos fazem acreditar, diante de tantas evidências apocalípticas, ser “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Esta mesma percepção é mais forte ainda em relação ao modo de vida patriarcal que aprisiona nossas mentes há milênios. No entanto, Fisher recomenda uma boa estratégia para sairmos desse condicionamento mental. Segundo ele, “o realismo capitalista só pode ser ameaçado se for de alguma forma exposto como inconsistente ou insustentável, ou seja, mostrando que o ostensivo ‘realismo’ do ‘capitalismo’ na verdade não tem nada de realista”.
É mais ou menos isto o que tento fazer aqui, pois mesmo sob fortes influências externas que nos impõem a todo instante uma única visão de mundo – a visão mercadológica –, no fundo, cada um de nós cria a realidade na qual vive. Contudo, dentro do condicionamento da cultura patriarcal predominante, abrimos mão de criar nossa realidade e estamos sempre nos refugiando na realidade que melhor satisfaz às nossas crenças, valores e desejos, pois somos, essencialmente, movidos pela emoção e pela subjetividade, ao contrário do que se pensa no senso comum que sempre dá centralidade à razão e à objetividade para justificar nossas ações.
Dentro dessa dinâmica patriarcal à qual estamos submetidos há tanto tempo, o animal humano nunca foi muito inclinado a fazer suas escolhas e sempre esteve mais propenso a ser moldado pela realidade que lhe é imposta do que o contrário. Como diz Gray, “é raro que indivíduos valorizem sua liberdade mais do que o conforto que vem com a subserviência, e mais raro ainda que povos inteiros o façam”. Aliás, este é um pensamento bem próximo da concepção de “servidão voluntária” desenvolvida em 1549 pelo filósofo francês Étienne de La Boétie, para quem “a primeira razão da servidão voluntária é o hábito” e que, portanto, “temos de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural”. Para responder esse dilema de La Boétie, o filósofo, sociólogo e arqueólogo francês Edgar Morin nos dá uma boa explicação. Segundo ele, somos moldados pelo imprinting cultural, isto é, pelas crenças e valores que vão se enraizando em nossas mentes ao longo da vida. E, atualmente, o nosso modo de vida encontra-se profundamente imerso em uma visão mercadológica de mundo. Este me parece o melhor argumento para entender o processo cognitivo que trava e condiciona o comportamento humano à insensatez do patriarcado.
O fato é que nos últimos vinte anos, a realidade vem sendo moldada, sem nenhuma resistência, pelos algoritmos, uma espécie de visão cibernética de mundo. A partir da revolução tecnológica iniciada nos anos 1980, a sociabilidade de mercado vem passando por mudanças abruptas e aceleradas, com uma capacidade de alterar o comportamento humano jamais vista. A inventividade capitalista parece não ter limites para explorar novas fronteiras de subjetividade e, desse modo, vai criando e recriando desejos e impondo à humanidade novos modos de viver.
Hoje, parece haver um consenso de que o sistema capitalista conseguiu, por meio da doutrina neoliberal em simbiose com a tecnologia, transmutar-se, simultaneamente, em quase todos os países, para um capitalismo de plataforma, cada vez mais pouco afeito aos regimes democráticos. Em um artigo bastante elucidativo sobre esta mutação, intitulado Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma, o pesquisador Roberto Moraes descreve, com base em muitas fontes de pesquisa, a fenomenologia social, política e econômica por trás desse novo capitalismo de plataforma, que “nega a política para manipular a democracia e promover governos caóticos” e vem se constituindo o mais novo modo de reprodução do capital e também vem moldando as diversas dimensões da experiência humana.
A expressão “capitalismo de plataforma” foi cunhada em 2017 pelo canadense, professor de economia digital, Nick Srnicek, e parece ser a mais utilizada para descrever o novo modelo capitalista. Outros autores, como o professor de ciência política na University of California, em Berkeley, John Zysmam, preferem a denominação “economia de plataforma”. No entanto, o termo “capitalismo de vigilância”, tal como concebido pela filósofa e psicóloga social estadunidense Shoshana Zuboff, do ponto de vista de uma leitura política da realidade, parece expressar bem melhor o tipo de sociabilidade que está emergindo. Segundo Zuboff, o capitalismo de vigilância surgiu por volta de 2001 como desdobramento da crise financeira que atingiu as gigantes pontocom, quando a Google enfrentou a perda de confiança dos investidores e os seus líderes foram pressionados a explorar o nebuloso mercado de publicidade. A partir daí, os dados comportamentais dos usuários tornaram-se um valioso ativo no mundo das chamadas Big Techs, hoje lideras pelo Facebook, Amazon e Tesla.
Como no passado, a mesma dinâmica de “sobrevivência do mais apto” que impulsionou o capitalismo mercantil do final do século XV, o capitalismo de vigilância, de acordo com Zuboff, “é uma criação humana. Vive na história, não na inevitabilidade tecnológica. Ele foi criado e elaborado por meio de tentativa e erro no Google, da mesma forma que a Ford Motor Company descobriu a nova economia da produção em massa ou a General Motors descobriu a lógica do capitalismo gerencial.” Nesse sentido, a expressão “vigilância” aqui não constitui a centralidade do capitalismo do ponto de vista econômico, mas, sim, do político e social. Ela representa o modo como o capital está passando a operar para manter o controle e a dominação sobre as sociedades. Nesse capitalismo de vigilância, a mercadoria, por excelência, será o próprio tempo, artigo que os humanos (a minoria que pode participar da economia de mercado) terão cada vez mais em abundância num mundo cujo trabalho será progressivamente realizado pelos algoritmos. Nessa nova conjuntura, os dois segmentos que tenderão a dominar a economia mundial, como já podemos observar hoje, serão o de seguros e o de entretenimento, os dois refúgios onde o animal humano tentará proteger-se e distrair-se dos horrores da distopia crescente que este novo capitalismo está produzindo.
Ao propor que o capitalismo vem se reinventando como um sistema de vigilância, Zuboff está ressaltando a lógica não só econômica, mas política por trás do mercado de plataformas que “reivindica a experiência humana privada como fonte de matéria-prima gratuita, subordinada à dinâmica do mercado e renascida como dados comportamentais”. Países asiáticos como a China partiram na frente no domínio dessa nova modalidade de poder estatal, inclusive porque ela já tinha uma tradição cultural adaptada a relações sociais mais autoritárias. No entanto, Zuboff alerta que “se destruirmos a democracia, tudo o que resta é esse tipo de governança computacional, que é uma nova forma de absolutismo”. Por isso a vigilância vem, aos poucos, se constituindo como o novo motor da Ordem Comercial, tendente a destruir os regimes democráticos e a assumir o lugar da democracia de mercado que prevaleceu por quinhentos anos.
Diferentemente das versões anteriores de reprodução do capital, o maior impacto do capitalismo de vigilância para o futuro da humanidade reside na “substituição da política pela computação”. Por isso Zuboff o identificou como um metabolismo de vigilância, uma vez que os pulsos eletromagnéticos, gradualmente, estão dispensando o Estado policial, assim como a democracia de mercado havia dispensado o absolutismo medieval. E é aqui que se situa, conforme já havia previsto Attali vinte anos atrás, “a mais profunda revolução que nos espera no próximo meio século”. Se continuarmos nesse caminho, Attali alerta que as ferramentas vigilantes tenderão a ser “o objeto substituto do Estado” e o mercado laissez-faire, por natureza cultuador da lei do mais forte, reinará supremo e, por consequência, “a apologia do indivíduo, do individualismo, fará do ego, do eu, os valores absolutos” desta nova realidade.
Assim como ocorreu com o Sacro Império Romano-Germânico, que sucumbiu somente após mil anos de hegemonia (800-1806), o capitalismo um dia declinará, porém, ao que as plataformas vêm prometendo, o Estado-nação perecerá bem antes. A partir dos anos 1980, iniciou-se uma inflexão que aponta nessa direção: o declínio dos regimes democráticos, impulsionado pelos algoritmos, em que, de forma quase imperceptível, o mercado vai absorvendo o Estado. Estamos assistindo inertes ao surgimento de uma nova forma de totalitarismo, agora, só de mercado. Nessa perspectiva, os pulsos magnéticos representam hoje a mais nova ferramenta de controle e modelagem da realidade e, provavelmente, a última forma de expressão da cultura patriarcal, após milênios de prevalência, haja vista que, os muitos fenômenos e crises (de alcance planetário) combinados que estão em curso, para o bem e o mal, apontam nesse sentido.
Mudanças climáticas, superpopulação, escassez e hipervigilância: a regressão inevitável
O autoengano é uma das características típicas da cultura patriarcal. A cegueira cognitiva em relação às transformações históricas que mencionei antes torna-se ainda mais emblemática quando examinamos a percepção humana acerca dos problemas de escala global. Por exemplo, a negação de grande parte do senso comum, e até mesmo de uma parcela da academia, em relação às mudanças climáticas e seus impactos sobre as novas gerações é um desses casos de autoengano. Numa afirmação recentemente, o sociólogo e ativista ambiental estadunidense Jeremy Rifkin afirmou que “enfrentamos a sexta extinção e as pessoas nem sequer sabem. Os cientistas dizem que, em oito décadas, metade de todos os habitats e animais da terra vão desaparecer. Esse é o marco em que estamos, cara a cara com uma extinção em potência da natureza para a qual não estamos preparados”. Esta constatação de Rifkin reflete a dimensão do drama vivido pela humanidade e não há, hoje, no âmbito global, nenhuma política consistente em movimento para, pelo menos, atenuar as mudanças climáticas ou outros problemas de escala planetária. Nossos dilemas globais só se amplificam no tempo.
O último Consenso de Copenhague, ocorrido em 2012, havia estabelecido os seguintes desafios para a humanidade: conflitos armados, ameaças à biodiversidade, doenças crônicas, mudanças climáticas, educação, fome e desnutrição, doenças infecciosas, desastres naturais, crescimento populacional, escassez de água e ausência de saneamento. Tais desafios poderiam hoje ser aglutinados em quatro principais questões globais, que se retroalimentam e se potencializam assustadoramente. São elas: mudanças no clima, sobrecarga populacional, escassez de recurso naturais e hipervigilância digital. A inclusão desta última (que talvez seja menos óbvia) é em razão dos impactos negativos do capitalismo de vigilância para os regimes democráticos e para a sustentação dos Estados-nações, conforme abordado aqui. Todas estas questões representam comunalidades – problemas de âmbito global sem solução dentro de fronteiras nacionais – e, portanto, precisariam ser tratadas a partir de uma política de civilização. Seus efeitos combinados já são catalizadores de conflitos em várias partes do planeta e de crescentes tensões geopolíticas e, no entanto, não há em curso nenhum esforço político, no contexto mundial, de entendimento e proposição de ações de mitigação das inevitáveis regressões decorrentes deste cenário, o que só compromete ainda mais o futuro da humanidade.
Os prováveis desdobramentos dos eventos que se sucederam no século XXI, decorrentes das crescentes instabilidades geopolíticas e das mudanças climáticas, são algo imponderável. O máximo que podemos vislumbrar, diante dos muitos desastres ambientais já ocorridos, é que teremos um quadro apocalíptico pela frente, pois o efeito inercial das perturbações humanas já provocadas ao meio ambiente foi disparado há bastante tempo e se amplifica assombrosamente enquanto a paralisia humana para conter as mudanças climáticas continuar. O cientista e ambientalista britânico James Lovelock, que formulou junto com a bióloga americana Lynn Margulis a teoria de Gaia, de que o planeta Terra se comporta como um organismo vivo, entende que a Terra sofre de uma praga de gente. Para ele, as possíveis respostas de Gaia à sobrecarga humana são: “destruição dos organismos patogênicos invasores; infecção crônica; destruição do hospedeiro; ou simbiose, um duradouro relacionamento de benefício mútuo para o hospedeiro e o invasor”. Se considerarmos que a realidade segue a lógica não-linear de sistemas adaptativos complexos – a compreensão de que a realidade é uma teia de interações e retroalimentações buscando incessantemente novos padrões de comportamento –, muito provavelmente, veremos, ainda neste século, um resultado próximo do primeiro cenário apontado por Lovelock: uma baixa fenomenal na população mundial, amplificada por guerras de escassez patrocinadas pelo nosso impulso patriarcal.
O pensamento que epigrafa este artigo é do ecologista e microbiologista Garrett Hardin, considerado um dos precursores em pesquisas sobre os impactos da população humana no planeta. Para Hardin, até o momento das descobertas de Louis Pasteur no campo da prevenção de doenças, em meados do século XIX, o dispositivo natural de regulação das populações eram as epidemias como febre tifoide, cólera, varíola, peste bubônica etc, que reduziam o crescimento populacional na mesma proporção da sua densidade. Após o desenvolvimento da medicina bacteriológica, essa lógica mudou. Segundo Hardin, “agora, o controle de retroalimentação é o próprio homem”. Sem barreiras epidemiológicas, a revolução tecnológica iniciada nos anos 1970 exponencializou ainda mais o crescimento populacional. Apenas no período de 1975 a 2020, a população mundial quase dobrou, passando de 4,06 bilhões para 7,8 bilhões. Na perspectiva predatória da cultura patriarcal, o animal humano agora só tem uma única ameaça: ele próprio. Após ter eliminado todos os seus inimigos (incluindo muitos ecossistemas do planeta), ele se volta agora contra si mesmo e caminha para a autodestruição. Por isso se fala muito hoje em necropolítica ou necropoder para explicar a dinâmica de governo em muitos países. Mas esta percepção está muito longe de ser uma obviedade para o senso comum. Como afirma Hardin, “a realidade desta verdade fica temporariamente escurecida pelo crescente tamanho do banquete obtido com os avanços tecnológicos, mas isto é apenas uma fase passageira que deve logo chegar ao fim”. (os excertos são do livro de Hardin, Nature and Man’s Fate – Rinehart, New York, 1959, citados por Gray)
Este cenário futuro cataclísmico converge com o prognóstico de muitos pensadores que estudam os desdobramentos das mudanças climáticas, imbricados aos da instável conjuntura geopolítica atual. Para Gray, “nos dias de hoje a mais poderosa força que atua contra a civilização é a guerra por recursos, em última instância um subproduto do crescimento da população humana”. As guerras do século XXI não serão decorrentes de conflitos ideológicos como foram as do século XX, serão principalmente guerras de escassez, potencializadas pela ausência de agentes políticos que possam mediar ações que mudem nossa relação predatória com a Terra. Num mundo de supremacia de mercado cada vez mais ascendente, uma boa lição da História que serve de alerta, mas que parece ter sido esquecida, é aquela máxima que sempre prevaleceu quando o mercado laissez-faire atuou sem os contrapesos do Estado, conforme nos lembra Attali: “após a violência do dinheiro, virá, como já está ocorrendo, a violência das armas”.
A História nos mostra que a intensidade das regressões sempre acompanha a evolução das ferramentas criadas pelo homem, isto é, é cada vez mais avassaladora, como consta nos registros do trágico século XX. Por isso é que Gray afirma que, “se existe alguma coisa certa sobre este século, é esta: o poder conferido à ‘humanidade’ pelas novas tecnologias será usado para cometer crimes atrozes contra ela”. Contudo, a percepção do senso comum é o oposto disto. A humanidade parece estar hoje entorpecida com os algoritmos e vive uma espécie de deslumbramento, assim como viveu em relação a outras ferramentas criadas no passado. O cenário deste início de século XXI é muito similar ao da Belle Époque do final do século XIX, uma época de encantamento, frivolidades e paz vivenciada na Europa, que, pouco tempo depois, foi devastada pelo horror das duas grandes guerras mundiais. Isso confirma que o animal humano não é muito afeito a tirar lições da História e desconhece que quanto mais tecnologia o patriarcado incorpora, maiores são os riscos de massacres contra a humanidade. Como diz Gray, “os que ignoram o potencial destrutivo das novas tecnologias só o podem fazer porque ignoram a história”.
Sob esta ótica de que os rumos da civilização serão, doravante, conduzidos por um capitalismo de vigilância, numa aldeia global com quase 8 bilhões de indivíduos, sobrevivendo sob os padrões impostos pela lógica predatória e competitiva do mercado, com Estados e democracias institucionalmente debilitados e recursos naturais cada vez mais declinantes, não há como evitar que as instabilidades políticas acabem deslizando para conflitos regionais, com potencial de se alastrarem globalmente. Nessa perspectiva, o capitalismo de vigilância provavelmente terá uma duração muito efêmera, se comparada com a das modalidades anteriores experimentadas pela economia de mercado. Como antevê Attali, “os desastres serão, de novo, os melhores advogados da mudança”.
Um futuro à espera da metamorfose
Diante do horizonte catastrófico aqui desenhado, não há como imaginar que ainda haja espaço para uma outra forma de controle e dominação patriarcal na experiência humana, mesmo dentro da Ordem Comercial. Qualquer tentativa de prospectar o futuro, com uma leitura da realidade a partir das novas Ciências da Complexidade, o atual contexto de crise planetária indica que esbarramos nos limites lógicos e materiais de sustentação da cultura patriarcal. Nessa perspectiva, o capitalismo de vigilância, que aparenta estar apenas no início de sua hegemonia, pode se revelar a última expressão do patriarcado, que, conforme abordado aqui, assumiu duas formas: a Ordem Imperial (o controle pelas armas) e a Ordem Comercial (o controle pela subjetividade). Diante do arsenal nuclear hoje existente, a possibilidade de a Ordem Militar retomar o curso da História é impraticável e, portanto, certamente improvável. Dentro da atual dinâmica da Ordem Comercial, também fica difícil imaginar o capitalismo (ou outra narrativa de mercado) assumindo uma nova modalidade de controle sobre a realidade.
Sob certo ângulo, a Ordem Comercial não deixa de ser um avanço “civilizatório” em relação à Ordem Imperial. A criação do mercado e do Estado-nação representaram dois mecanismos revolucionários de distribuição do poder e das riquezas, antes concentrado nas mãos dos príncipes e padres que dominavam reinos e impérios, até por volta do século XV. Com a nova a classe dos comerciantes que despontou a partir do século XVI, o poder ficou bem mais aquinhoado, assim como a revolução tecnológica, que surgiu a partir dos anos 1980, permitiu um empoderamento a um maior número de indivíduos. No entanto, a História tem mostrado que as desigualdades, conflitos, massacres e destruições crescem na mesma proporção das ferramentas criadas pelo homem. Na lógica da cultura patriarcal na qual estamos imersos há milênios, não há uma seta que aponte para uma emancipação humana. Ao contrário, ela constitui uma regressão progressiva rumo à autodestruição.
Ainda assim, aqueles mais irremediavelmente condicionados à lógica patriarcal, que não veem outra perspectiva fora da fantasia da universalização do liberalismo econômico, certamente haverão de pensar que se trata de um devaneio imaginar que o animal humano irá algum dia abrir mão do seu desejo de moldar o mundo à sua imagem. Neste caso, o questionamento sobre qual rumo a civilização poderá escolher após experimentar mais uma profunda regressão seria: uma vez esgotados os limites lógicos de prevalência das Ordens Militar e Comercial, em escala global, ainda haverá margem para o surgimento de uma nova Ordem de manutenção do impulso patriarcal, diante do grau de esgotamento dos recursos naturais, das mudanças climáticas e da ausência de instrumentos democráticos e de mediações políticas?
Há uma corrente de pensamento que entende que os algoritmos podem de algum modo contornar todos os nossos problemas globais e forjar uma nova ordem mundial duradoura. Parece ser o caso de nomes como o do professor israelense de História, Yuval Noah Harari, autor de uma trilogia de ensaios best-sellers: Sapiens – Uma breve história da humanidade, Homo Deus – Uma breve história do amanhã e 21 lições para o Século 21. Harari cogita a possibilidade de um novo salto civilizatório que ele chama de “Homo deus”, promovido pela revolução tecnológica. No entanto, se considerarmos os resultados proporcionados pelo desenvolvimento da tecnologia até este momento, não há indicativos de que as plataformas, sob o comando de uma “inteligência artificial”, serão capazes de nos tornar “pós-humanos”, superando as ditas “limitações biológicas”, conforme defende o movimento transumanista. Ao contrário, me parece bem mais razoável acreditar que, se alcançarmos um mundo reconhecível, após a regressão que se avizinha, será pela superação dos condicionamentos da cultura patriarcal e não continuando sob o domínio das ferramentas criadas pelo animal humano. A aposta na tecnologia é mais uma ilusão humana de moldar a realidade segundo à sua imagem.
Algumas tentativas de exploração e dominação patriarcal são mais fantasiosas ainda. Esse nosso profundo condicionamento mental, associado ao sentimento de esgotamento dos ecossistemas da Terra, talvez explique o desejo humano recorrente de descobrir e habitar outros planetas com condições similares às do nosso. Tal projeto é irrealizável, pois se há uma característica que define o Universo são as suas singularidades. Se a vida é um “imperativo cósmico”, como defende Christian de Duve, Nobel de Fisiologia (1974), certamente ela existe em abundância no Universo. Entretanto, se o homem algum dia encontrar vida em algum outro planeta, será em condições físico-químicas bem peculiares. Nosso “acoplamento estrutural” com Gaia, lembrando os ensinamentos do neurobiólogo chileno Humberto Maturana, é único no Universo. E mesmo que se tente desenvolver um aparato tecnológico para viabilizar este acoplamento seria muito custoso e inútil. As fronteiras do patriarcado estão umbilicalmente ligadas ao sistema Terra. Não há muitas opções disponíveis para a continuidade da nossa civilização: ou superamos a cultura patriarcal milenar e nos reconciliamos com a nossa condição natural, ou destruímos as condições que asseguram nossa permanência no planeta, se é que não já ultrapassamos os limites da intervenção humana nos ecossistemas da Terra.
Diante dessa realidade distópica que nos reserva o novo capitalismo de vigilância, qual percurso poderia nos desviar do colapso? Com muito esforço de otimismo, se buscarmos algum aprendizado das regressões do passado, um novo modo de viver certamente seria algo que aceitasse a nossa limitada e contraditória condição natural e tentasse superar a cultura patriarcal. Não resta à civilização outra saída que não seja abandonar a visão mercadológica de mundo e assumir uma visão relacional de mundo, que considere o entrelaçamento de todas as dimensões da condição humana. Se tivéssemos hoje alguma instância de governança global com esse propósito, que alcançasse os consensos necessários entre os países desenvolvidos, uma política de civilização contemplaria pelo menos quatro abordagens: uma estratégia de redução da sobrecarga populacional sobre a Terra, para mitigar as mudanças climáticas em curso; a articulação de uma democracia global, que tolere o pluralismo de modos de vida; o resgate do sentido de comunidade, que foi destruído pelas relações individualistas e excludentes do mercado; e a formulação de uma nova economia, que dê centralidade à vida e não à acumulação e ao consumo. A construção de um futuro reconhecível necessariamente passa por este caminho, mas ele está muito longe de ser uma realidade.
Provavelmente, o futuro da humanidade ficará sob os desígnios do acaso e, especialmente, da metamorfose, com todas as indesejáveis agruras que esse tipo de fenômeno comporta. Morin já havia nos alertado para esse desdobramento civilizatório quando disse que “a desintegração é provável. O improvável, mas possível é a metamorfose”. Há aproximadamente vinte anos, quando escrevia o último livro de sua principal obra, La Méthode 6 – Éthique (Editions du seuil, 2004), ele vislumbrava dois desfechos para o atual impasse civilizatório imposto pelas múltiplas crises da contemporaneidade. Segundo ele, poderíamos sair da História “por cima”, pela regeneração do poder absoluto dos Estados, ou “sair por baixo”, pela regressão generalizada e pela “explosão de uma barbárie à Mad Max”. No entanto, Morin parece já ter descartado a primeira saída, conforme podemos observar das suas manifestações nos últimos anos, e indica ter se rendido aos prognósticos do seu conterrâneo, Jacques Attali, para quem “a barbárie é o mais provável. O político é uma rolha flutuando à deriva, na tempestade das paixões”.
O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman dizia que “a liberdade é o nosso destino: uma sorte de que não se pode desejar o afastamento e que não se vai embora por mais intensamente que possamos desviar dela os nossos olhos”. A liberdade parece, desse modo, constituir um atributo inerente à vida, embora o patriarcado tenha desvirtuado esta lógica natural e nos empurrado para a arena dos dualismos e nos condicionado à acomodação em relações assimétricas de poder. De um lado, somos “programados” biologicamente para sermos livres e, de outro, fomos, por milhares de anos, culturalmente condicionados a sermos servos e a lutarmos pela sobrevivência em uma suposta realidade regida pela competição predatória, hostil à vida. Talvez já estejamos imersos na metamorfose que poderá fazer emergir sociedades neomatrísticas, aquele modo de viver que permitiu a evolução do Homo sapiens (e todas as demais formas de vida deste planeta) por 350 mil anos, época em que nossa condição biológica e cultural guardavam uma congruência. Chegamos hoje à grande encruzilhada da evolução humana. Embora a sombria realidade que está à nossa frente diga o contrário, precisamos refletir sobre as nossas crenças e valores que nos trouxeram até aqui e compreender que não estamos irremediavelmente condenados às diversas formas de servidão e à cegueira cognitiva impostas pelo patriarcado.
O nosso genial e irreverente Ariano Suassuna, que tão bem soube compreender a contraditória e instável condição humana e expressá-la por meio da dramaturgia, dizia que “o otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”. De um modo parecido, situo-me entre aqueles que têm esperança na metamorfose que se aproxima. Se houve uma transformação cultural antes, da cultura matrística para a patriarcal – da “sociedade de parceria” para a “sociedade de dominação”, conforme apontam os estudos de Eisler –, é razoável imaginar que o Homo sapiens demens está suscetível a uma outra transformação cultural que o faça se reconciliar com sua condição natural.
Creio que o horror da distopia que essa nova sociabilidade do capitalismo de vigilância reserva à humanidade, num futuro próximo, será tão insuportável que o animal humano perceberá que não faz mais sentido nutrir o patriarcado que aprisiona mentes e corações, há tanto tempo. Assim, fico inclinado a pensar que as poucas iniciativas, hoje ainda muito marginais e irrelevantes para provocar mudanças globais, de pessoas que atuam na direção contrária à do patriarcado e que já perceberam o fracasso de todas as tentativas do homem de moldar o mundo à sua imagem, emergirão a ponto de tornarem possível uma democracia planetária, que abraça o pluralismo de modos de viver, e uma economia que reencontre o seu sentido original – a preservação da vida e o cuidado da nossa única Casa Comum –, a tempo de evitar a interrupção prematura da experiência humana. Não custa muito imaginar e tentar!
Antônio Sales Rios Neto – Engenheiro Civil e Consultor Organizacional
Referências
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