domingo, 13 de dezembro de 2020

Precisamos de uma lei contra “roubo de salários”

Por Renato da Fonseca Janon

Há algo profundamente errado no sistema jurídico de um país que prende um jovem pobre por furtar dois pacotes de bolacha, ao mesmo tempo em que assegura a impunidade de empresários ricos que, intencionalmente, deixam de pagar a remuneração de seus trabalhadores. Não estamos falando daqueles que não conseguem pagar suas dívidas porque quebraram em virtude de uma crise econômica ou do risco natural do empreendimento, e sim de quem age de forma deliberada, usando a inadimplência como estratégia de enriquecimento ilícito. A retenção dolosa dos salários prejudica não apenas os empregados diretamente atingidos, mas também a imensa maioria de empregadores honestos, vítimas de uma concorrência desleal por parte de quem se beneficia da sonegação. Portanto, se ponderamos as consequências para o conjunto da sociedade, veremos que a atitude de quem se apropria do salário alheio é muito mais reprovável do que a do rapaz esfomeado que furtou os dois pacotes de bolacha.

A contradição é gritante: se o funcionário de uma loja for flagrado furtando R$ 100,00 (cem reais) do caixa de seu patrão, ele poderá ser demitido por justa causa e processado criminalmente. Será chamado de ladrão e, dependendo dos antecedentes, poderá até ser preso. Entretanto, se o patrão, voluntariamente, deixar de pagar o salário de centenas de empregados, acumulando uma dívida milionária, ele ficará impune e, mesmo tendo recursos, a depender da blindagem patrimonial, poderá nem sequer saldar a dívida. 

Para acabar com a cultura da inadimplência deliberada, que remonta ao nosso passado escravocrata, precisamos cumprir a Convenção no. 95 da OIT e regulamentar, com urgência, o artigo 7o, inciso X, da Constituição Federal: “X – proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa “. Essa garantia constitucional, até hoje, não foi regulamentada pelo Congresso Nacional, lembrando que a jurisprudência criminal resiste em enquadrar a retenção dolosa de salários nos artigos 168 ou 203 do Código Penal em virtude do princípio da tipicidade estrita: 

[…] 2. A retenção dolosa de salário, conquanto tenha sido prevista no art. 7º, X da Constituição Federal como crime, ainda ressente-se da necessária lei, criando o tipo penal respectivo. 3. Também não há como subsumir a conduta à apropriação indébita (art. 168 do Código Penal) porque o numerário ao qual o empregado tem direito, até que lhe seja entregue, em espécie ou por depósito, é de propriedade da empresa (empregador), não havendo se falar, então, em inversão da posse, necessária para a tipicidade do crime. […]. (STJ: HC 177.508/PB, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 15/08/2013, DJe 26/08/2013) 

Daí a necessidade de uma lei específica que coíba, com rigor, a conduta ilícita que, nos EUA e na Austrália, vem sendo chamada de “roubo de salários” (Wage Theft). É espantoso observar que, enquanto, no Brasil, estamos abrandando cada vez mais as punições para quem não paga os salários (vide, por exemplo, a lei 13.467/2017), nos Estados Unidos e na Austrália, onde, supostamente, haveria “menos proteção”, diversas normas estaduais estão instituindo sanções muito mais rigorosas para inibir o que, lá, eles chamam de “roubo de salários” (aqui, seria “retenção dolosa”), prevendo indenizações compensatórias, multas elevadas e até penas de prisão. 

Por exemplo, a partir de 01 de julho de 2020, entrou em vigor, no Estado norte-americano de VIRGÍNIA, a chamada “Lei Contra Roubo de Salários” (“WAGE THEFT LAW”), estabelecendo que, se um Tribunal concluir que um empregador, conscientemente, falhou em pagar a remuneração de seus trabalhadores, ele deverá indenizá-los em três vezes a quantidade de salários devidos (danos “triplos”), mais honorários advocatícios razoáveis, mediante taxa de juros de 8% (oito por cento). Se o valor devido for superior a US $ 10.000 (dez mil dólares) ou se o infrator for reincidente, o empregador poderá responder por crime passível de prisão. O novo Estatuto também responsabiliza os empreiteiros gerais pelas violações cometidas pelos seus subcontratados[1].

No Estado de MINNESOTA, a “Lei Contra Roubo de Salário” (“WAGE THEFT LAW”), que entrou em vigor em 01 de Agosto de 2019, é ainda mais severa e, dependendo da extensão do dano e da reincidência, os empregadores responsáveis pela retenção dolosa de salários podem estar sujeitos à pena de prisão e a pesadas multas. A maior pena é de 20 anos de prisão e a multa pode chegar a US $100.000 (cem mil dólares), dependendo do número de trabalhadores lesados – Estatuto do Minnesota 2018, seção 16C.285 (Minnesota Statutes 2018, section 16C.285, subdivision 3). A lei estadual considera como “roubo de salário” as seguintes práticas: deixar de pagar salários ao empregado; fazer deduções não autorizadas no contracheque; não pagar horas extras a funcionário que não seja isento; classificar, incorretamente, um trabalhador como contratado independente e se apropriar de impostos retidos. Vale lembrar que, nos EUA, os Estados federados podem legislar sobre direito do trabalho e direito penal[2].

No Estado do COLORADO, onde fica a próspera cidade de Denver, uma lei que entrou em vigor em 01 de janeiro de 2020, o Estatuto HB19-1267, estabelece que o empregador pode ser considerado culpado de “roubo de salários” se, de forma consciente e voluntária, recusar-se a pagar a remuneração de seus trabalhadores ou negar o valor de uma reivindicação salarial que sabe ser devida. A condenação poderá resultar em indenizações compensatórias e danos punitivos (punitive damages), sem prejuízo de penas que podem variar de 01 a 24 (vinte e quatro) anos de prisão”[3].

Na CALIFÓRNIA, Estado que tem uma economia maior do que a brasileira, o estatuto denominado “Fair Day’s Pay Act”, de 11.10.2015, impede que empresas condenadas por “roubo de salário” realizem negócios que precisem da anuência da administração pública. O “Fair Day’s Pay Act” também estabelece que proprietários, diretores e executivos podem ser responsabilizados pessoalmente por violações de salários, conforme seção 558.1 do Código do Trabalho da Califórnia (California Labor Code 558.1), incluindo a constrição de contas bancárias e penhora de bens pessoais. Por sua vez, a Lei de Prevenção de Roubo de Salários (AB 469), de 09.10.2011 – “The Wage Theft Prevention Act (AB 469)”, criminaliza violações intencionais por não pagamento de salários após uma sentença judicial ou ordem administrativa final, além de aumentar as multas para os empregadores que deixaram de efetuar o pagamento no momento correto[4].

Para se ter uma ideia da seriedade com que a legislação da Califórnia trata o “roubo de salário” (conceito que, no estatuto local, inclui o não pagamento de horas extras), basta ver um acordo celebrado em novembro de 2019, em uma class action que tramitava no Tribunal Superior do Condado de Los Angeles, no qual o McDonald´s se comprometeu a pagar US$ 26 milhões (vinte e seis milhões de dólares!) aos seus trabalhadores da cozinha e do atendimento ao público por ter deixado de remunerar, corretamente, as horas laboradas além da 8a.diária e por não ter concedido pausas para descanso[5]. 

No Estado de NOVA JERSEY, a “Lei Contra Roubo de Salário” (“WAGE THEFT ACT”), de 06 de Agosto de 2019, aumentou as penalidades para o empregador que deixar de cumprir as normas estaduais, acrescentando indenização por danos e fornecendo proteção extra para reivindicações de retaliação (garantia de indenidade). Além disso, a WTA torna os empreiteiros e contratantes de mão de obra, solidariamente, responsáveis “por quaisquer violações das disposições das leis estaduais de salários e horas de trabalho”, incluindo aquelas sobre retaliação. A Lei contra Roubo de Salário de New Jersey estabelece Indenizações por danos liquidados de até 200% (duzentos por cento) dos salários devidos aos empregados, além de estender o prazo de prescrição de dois para seis anos, facilitando o acesso à Justiça[6].

Renato da Fonseca Janon
Juiz do Trabalho

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