quinta-feira, 17 de junho de 2021

No sepulcro de Lázaro


por Alexandre Brasil Fonseca

Quem precisa de lágrimas – ou mesmo de um milagre – quando se tem hidroxicloroquina?

No início de junho 42% dos norte-americanos estão totalmente vacinados. No Brasil, essa porcentagem é de 11% da população. Quando se trata da pandemia, os dois países com o maior número de mortes de Covid-19 têm muito em comum. Mas há uma diferença enorme: embora os presidentes de ambos os países tenham defendido o uso da hidroxicloroquina (HCQ) e da cloroquina (CQ) como tratamentos para o vírus, nos EUA esses medicamentos foram amplamente abandonados quando o FDA, a agência responsável e com base em várias pesquisas, declarou seu uso ineficaz. No Brasil, por outro lado, o presidente Jair Bolsonaro continua a apoiar o seu uso, mesmo após a agência brasileira, a Anvisa, ter afirmado que o seu uso deveria ser exclusivamente para as indicações que constam na bula, o que, inclusive, parece ter motivado alguns a pensar em mudar a bula por decreto. Pesquisadores, a partir de dados do Facebook, afirmam que nos últimos quinze meses Bolsonaro foi responsável por 11 milhões de interações relacionadas a estes medicamentos na plataforma, enquanto o ex-presidente Trump foi por 1,1 milhões.

As diferenças neste caso indicam que, talvez, as instituições democráticas estabelecidas possam, de fato, oferecer resistências aos políticos tomados por suas próprias crenças inexplicáveis. Mas tal resistência tem ocorrido com menor capacidade de enfrentamento no Brasil do que nos EUA, como tem sido demonstrado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado Federal sobre as ações e omissões do governo brasileiro na pandemia. Nas sessões da CPI, apoiadores de Bolsonaro continuam a defender estes medicamentos comprovadamente ineficazes e as apurações indicam que boa parte da lenta velocidade da vacinação do Brasil é decorrência da demora para a compra de vacinas, realidade que se soma a postura negacionista que, além de defender o uso da CQ para um “tratamento precoce”, defende o que denominam de “imunidade de rebanho”.

Por que isto está acontecendo? Como chegamos a esta guerra de informações e desinformação?

Talvez a resposta se encontre naquilo que Casarões e Magalhães identificaram como “uma resposta do populismo médico à Covid-19”, guiada pela “ciência alternativa” e que reuniu líderes da extrema direita global. Olhar mais de perto para situações semelhantes no Brasil e nos EUA, que envolveram generais, mórmons e gabinetes paralelos, nos dará uma melhor compreensão da fragilidade de nossas democracias e da importância de instituições que atuem em seu papel constitucional.

Nos Estados Unidos, no estado de Utah foi nomeado o general de reserva Jefferson Burton para coordenar sua resposta à pandemia. No Brasil, o general da ativa Eduardo Pazuello foi o ministro da Saúde durante a maior parte do ano de 2020. Esta situação paralela também conta com dois mórmons dedicados, ex-missionários da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias: Garry Herbert, governador de Utah até janeiro de 2021, e Carlos Wizard, um conselheiro informal do Ministério da Saúde, que foi anunciado para um alto cargo no Ministério da Saúde, mas que não chegou a assumir. Por fim, nos dois casos, também é possível identificar a criação de “gabinetes paralelos” que reuniram parlamentares, gestores públicos, profissionais de saúde e empresários que, com recursos públicos, atuaram na defesa do uso de medicamentos ineficazes.

Lázaro (Thomas Hawk/Flickr)

Em de março de 2020, em meio a uma enorme ansiedade em torno do vírus, a identificação de um medicamento prontamente disponível para tratar a doença foi animadora. No dia 16 de março, a jornalista norte-americana Laura Ingraham entrevistou defensores do medicamento em seu programa da Fox News; três dias depois, Donald Trump afirmou que este tratamento era “uma mudança no jogo”. A partir daí, Trump tornou-se um defensor desta “droga muito poderosa” – mas sua defesa foi até certa forma tímida diante da liderança mundial assumida por Bolsonaro nessa cruzada.

Em seu programa de 19 de março, Ingraham testemunhou que depois de tomar CQ, “um paciente foi descrito como Lázaro, levantando-se de onde estava, ele estava como se estivesse às portas da morte”. No dia seguinte, Lázaro também foi invocado em Utah em uma coletiva de imprensa com representantes do departamento estadual de saúde, da assembleia legislativa, de profissionais de saúde e empresários com o objetivo de anunciar a ampla distribuição de CQ e HCQ para toda a população do estado. O médico Kurt Hegmann afirmou que “Há respostas que são equivalentes a Lázaro – literalmente como o personagem bíblico Lázaro -, pessoas que praticamente mortas se restabeleceram. É um medicamento impressionante. Não tenho dúvidas de que este será um programa muito eficaz”.

Em 21 de março Bolsonaro, sintonizado (como sempre) com Trump, também apareceu ao vivo em suas redes de mídia social, afirmando seu entusiasmo pela medicação e anunciando que ele havia ordenado aos militares que a produzissem. Somando forças, Trump enviou dois milhões de comprimidos de HCQ para o Brasil em maio. No Painel de Compras do governo federal é possível identificar compras relacionadas a CQ num total de um pouco mais de 3 milhões de reais – além disso também é preciso considerar os custos relacionados à propaganda e à distribuição deste medicamento que chegou a contar com um aplicativo destinado a facilitar sua prescrição. Estima-se que o governo brasileiro gastou noventa milhões de reais em medicamentos ineficazes na luta contra o Covid-19.

Em Utah, foi desenvolvido um plano que envolveu o uso de um aplicativo, a compra e o planejamento de ampla distribuição dos medicamentos CQ e HCQ. Incialmente, em março de 2020, houve a liberação de uma subvenção para uso emergencial por parte do governo estadual para a compra de comprimidos no total de 4 milhões de reais e foram aprovados pela assembleia estadual a verba de 40 milhões de reais para uso posterior no programa. Servidores públicos do governo estadual e especialistas se opuseram a esta linha de ação, bem como ao financiamento de emergência. No final de abril de 2020, o General Burton reconheceu que o uso de recursos públicos para a compra de HCQ não havia sido “uma compra sensata” e completou que atribuía essa situação às dificuldades do momento, à “névoa da guerra”.

Enquanto isso, no Brasil também houve resistência a uma linha de ação semelhante. Mas ao contrário do que aconteceu em Utah, dois ministros da Saúde que discordaram desse desejo de Bolsonaro caíram. Bolsonaro, em busca de alguém para executar seu plano, resolveu nomear um general com alegada experiência em logística para Ministro da Saúde que levou esse plano adiante, numa postura bem distinta daquela tomada pelo general à frente da resposta à Covid-19 em Utah.

O que aconteceu em Utah chama a atenção e representa uma possibilidade de esperança concreta na forma como as instituições públicas, e a própria democracia, podem funcionar. O governador Herbert decidiu por não comprar os medicamentos e conseguiu obter o reembolso dos valores já gastos ao considerar a opinião de especialistas, pressões da sociedade civil e diante de uma recomendação da FDA publicada em abril de 2020 que restringiu o uso da HQ e da HCQ, para depois, em junho de 2020, o órgão revogar definitivamente o uso desses medicamentos para a Covid-19. Herbert se mostrou um político responsável – e não um negacionista.

Enquanto isso, Carlos Wizard, o bilionário empresário mórmon brasileiro, declarou em junho de 2020, quando foi anunciada sua nomeação para um cargo no Ministério da Saúde, que iria “apostar 100% na CQ” como gestor público. Isso quando as evidências já eram mais do que conhecidas contra a medicação, inclusive ele permanece nessa mesma linha, como atesta entrevista feita no final de março de 2021 em que ele defendeu tanto o uso de medicamentos ineficazes como o tratamento precoce.

Não se deve esquecer dos recursos públicos investidos que viabilizaram a compra desses medicamentos ineficazes. Também é importante sublinhar que nos dois países foram criados “gabinetes paralelos” com pessoas de fora da administração pública para essa defesa. No Brasil, o Senado está atualmente investigando a questão do uso de recursos públicos; enquanto isso, uma auditoria foi iniciada em Utah visando examinar vários aspectos do que ocorreu, incluindo o envolvimento de lobista da indústria farmacêutica no tratamento da pandemia pelo Estado. O jornal New York Times publicou que Donald Trump teria ações de uma empresa que vende CQ e HCQ. No Brasil também se questiona a aprovação de empréstimos públicos para o desenvolvimento desses medicamentos pelo setor privado.

Carlos Wizard foi convocado para responder às perguntas dos senadores na CPI. Essa poderia ser uma ótima oportunidade para ele seguir os passos de seu colega norte-americano e apoiar medidas efetivas para o enfrentamento da pandemia. Dar uma importante demonstração pública de seu engajamento social, especialmente se ele reforçar a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) na execução do Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19. Além de medicamentos ineficazes, Wizard, também defende um plano que levou a mudanças na legislação e que prevê que o setor privado brasileiro compre vacinas para o uso que considerar mais apropriado. Algo, no mínimo, bastante questionável em meio a uma pandemia. Há notícias de que Wizard está nos EUA, onde teria sido vacinado e de onde tem feito contatos visando não ir à CPI.

Provavelmente um agravamento da triste situação enfrentada pelo Brasil, para além do disseminado uso de medicamentos ineficazes, seria o aumento de posturas negacionistas em relação à vacinação. São várias as campanhas de veículos da imprensa, igrejas, organizações e movimentos sociais que afirmam a segurança e a necessidade da vacina. Graças à dedicação de cientistas, gestores e profissionais de saúde, temos uma real resposta para a pandemia. Outra questão grave que impera envolve a busca de respostas para se lidar com o aumento da fome e da pobreza. O mote das ruas tem afirmado: “vacina no braço e comida no prato”. Bolsonaro, que se diz comprometido tanto com a economia quanto com a saúde pública, não demonstrou a capacidade de cuidar de nenhum dos dois. Em relação à Bolsonaro, recente editorial da The Economist afirma de forma contundente que “a mais urgente prioridade é derrotá-lo nas urnas”.

Há uma última semelhança que passa por uma menção a Lázaro feita no Brasil. O jornalista Reinaldo Azevedo foi quem se referiu ao personagem bíblico, porém não em uma alusão aos efeitos milagrosos da CQ, conforme dito por sua colega norte-americana. O que ele ironicamente questionou foi se Jesus teria dito algo como: “Lázaro, toma cloroquina e anda!”, isso ao comentar sobre a defesa do medicamento por apoiadores de Bolsonaro.

Segundo o relato bíblico, antes de ressuscitar Lázaro, Jesus chorou. Naquele momento, o luto e o lamento estavam presentes. Diante das muitas mortes as lágrimas são uma realidade tristemente constante. Podemos desejar milagres, mas caso venham certamente não serão por meio da hidroxicloroquina. E, por enquanto, a comparação entre os dois países parece demonstrar que personagens com trajetórias e papéis bem semelhantes podem – graças à um melhor funcionamento das instituições democráticas e do sistema de freios e contrapesos – atuar de maneiras diferentes e, assim, contribuir na preservação de vidas.


Alexandre Brasil Fonseca é sociólogo, professor associado e diretor do Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este texto é uma versão traduzida e adaptada do texto “At the Tomb of Lazarus”, publicado no website Current.

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