segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A ômicron e o que nos faz tolerar o insuportável


Mais uma vez está claro que só uma nova ordem nos livrará da crise civilizatória. Mais uma vez, o Ocidente reage da pior maneira possível. E, de novo, estamos atônitos e paralisados – porque, no fundo, tememos nos separar do que somos

Por Slavoj Zizek, na RT | Tradução: Antonio Martins

A reação à mais recente variante de Covid confirmou uma verdade desagradável. Embora muitos abracem a ideia de colaboração para combater a pandemia, nada fazem de relevante. Precisaremmos de uma crise ainda maior para despertar?

Todos já sabemos que a Organização Mundial de Saúde declarou uma nova variante de preocupação do Covid-19. Chamada Omicron e codificada como B.1.1.529, foi reportada pela primeira vez à OMS pela África do Sul, em 24 de novembro. Tem mais de 30 mutações e a suspeita é que se espalhe muito mais rápido do que outras variantes — incluindo a Delta. Por isso, ainda é incerto se as vacinas que temos hoje irão funcionar contra ela.

A reação em todo o mundo foi previsível: voos da África Austral cancelados, ações em queda, e assim por diante. Não é terrível que movimentos tão defensivos como a proibição de viagens tenham sido a reação mais forte nos países desenvolvidos ao fantasma de um novo desastre? Como salientou Richard Lessells, especialista em doenças infecciosas da Universidade de KwaZulu-Natal, em Durban, África do Sul, “não houve uma só palavra de apoio aos países africanos para ajudá-los a controlar a pandemia e, particularmente, nenhuma menção de enfrentar a iniquidade vacinal sobre a qual alertamos durante todo o ano e [da qual] estamos agora sofrendo as consequências”.

A propagação da variante ômicron foi facilitada por um triplo escândalo de negligência. Em primeiro lugar, é muito mais provável que o vírus mute em locais onde a vacinação é baixa e a transmissão alta. Portanto, a enorme diferença entre as taxas de vacinação no mundo desenvolvido e no mundo em desenvolvimento é provavelmente a culpada. Alguns países ocidentais estão até destruindo vacinas, em vez de oferecê-las gratuitamente a países com taxa de vacinação mais baixa.

Em segundo lugar, como registrou o The Lancet em abril, “as empresas farmacêuticas beneficiaram-se de enormes somas de financiamento público para pesquisa e desenvolvimento. Entre 2,2 bilhões e 4,1 bilhões de dólares foram gastos até fevereiro de 2021 na Alemanha, no Reino Unido e na América do Norte”. No entanto, quando solicitou-se às empresas que permitissem o licenciamento gratuito das vacinas, todas recusaram, impedindo que muitos países mais pobres – que não podem pagar o preço das patentes – as produzissem.

Finalmente, mesmo nos próprios países desenvolvidos, o nacionalismo pandêmico prevaleceu muito rapidamente sobre uma coordenação séria de esforços.

Nos três casos, os países desenvolvidos fracassaram em perseguir os objetivos que proclamaram publicamente, e agora estão pagando o preço. Como um bumerangue, a catástrofe que tentaram conter no Terceiro Mundo voltou para assombrá-los. Como?

O filósofo alemão Friedrich Jacobi escreveu, por volta de 1800: La vérité en la repoussant, on l’embrasse: “Ao repelir a verdade, nós a abraçamos”. Exemplos deste paradoxo abundam. O Iluminismo, por exemplo triunfou realmente contra a fé e a autoridade tradicionais quando os partidários da visão tradicional começaram a usar a argumentação racional dos iluministas para justificar sua posição (“uma sociedade precisa de autoridade firme e inquestionável para desfrutar de uma vida estável”, etc.)

Mas será que o oposto também é válido? Será que ao abraçar a verdade, nós a repelimos? Isto é exatamente o que está acontecendo agora. A “verdade” – a necessidade urgente de cooperação global, etc. – é rechaçada no exato momento em que os governantes alardeiam, de público, a necessidade de ação para deter aquecimento global ou de colaboração na luta contra a pandemia. Foi que vimos na COP26 de Glasgow, cheia de blá blá declarativo, mas que pouco se entregou em termos de compromissos claros.

Este mecanismo foi descrito em 1937 por George Orwell, emO caminho para Wigan Pier. Ele descreveu a ambiguidade da atitude predominante da esquerda, em relação às diferenças de classe:

Todos nos opomos às distinções de classe, mas muito poucas pessoas querem seriamente aboli-las. Aqui se descobre o importante fato de que toda opinião revolucionária tira parte de sua força de uma convicção secreta de que nada pode ser mudado. (…) Se for apenas questão de melhorar o destino do trabalhador, todo mundo decente está de acordo. (…) Mas infelizmente, não se vai muito longe apenas desejando o fim das distinções de classe. Mais precisamente: é necessário desejá-lo, mas este desejo não tem eficácia, a não ser que se compreenda o que ele envolve. O fato que tem de ser enfrentado é que abolir as distinções de classe significa abolir uma parte de si mesmo. (…) Tenho que me transformar tão completamente que ao fim dificilmente poderei ser reconhecido como a mesma pessoa”.

O argumento de Orwell é que os radicais invocam a necessidade de uma mudança revolucionária como uma espécie de sinal supersticioso que tende a alcançar o oposto – ou seja, evitar que a mudança realmente ocorra. Os esquerdistas acadêmicos de hoje que criticam o imperialismo cultural capitalista horrorizam-se com a ideia de que o seu campo de estudo pode desmoronar.

Todos nos opomos ao aquecimento global e à pandemia, mas muito poucas pessoas querem seriamente aboli-los. Aqui se descobre o importante fato de que toda opinião revolucionária tira parte de sua força de uma convicção secreta de que nada pode ser mudado. (…) Se for apenas questão de melhorar o destino das pessoas comuns, todo mundo decente está de acordo. (…) Mas infelizmente, não se vai muito longe apenas desejando o fim do aquecimento global e da pandemia. Mais precisamente: é necessário desejá-lo, mas este desejo não tem eficácia, a não ser que se compreenda o que ele envolve. O fato que tem de ser enfrentado é que acabar com o aquecimento global e a pandemia significa abolir uma parte de si mesmo. (…) Tenho que me transformar tão completamente que ao fim dificilmente poderei ser reconhecido como a mesma pessoa”.

A razão desta inatividade seria apenas o medo de perder privilégios – os econômicos e outros? As coisas são mais complexas do que isso: a mudança necessária é o dupla: subjetiva e objetiva.

O filósofo norte-americano Adrian Johnston caracterizou o cenário geopolítico atual como uma situação “em que as sociedades do mundo e a humanidade como um todo enfrentam múltiplas crises agudas (uma pandemia global, desastres ambientais, desigualdade maciça, bolsões de pobreza, guerras potencialmente devastadoras, etc.), mas parecem incapazes de tomar as medidas (reconhecidamente radicais ou revolucionárias) necessárias para resolver essas crises. Sabemos que a ordem está rompida. Sabemos o que precisa ser refeito. Por vezes até temos ideias sobre como fazê-lo. No entanto, continuamos a não fazer nada para reparar os danos já causados ou para evitar novos danos facilmente previsíveis”.

De onde vem esta passividade? Nossos meios de comunicação costumam especular sobre que motivos ocultos fazem com que os anti-vaxxers persistam com tanta firmeza em sua postura, mas até onde sei eles nunca evocam a razão mais óbvia: em algum nível, querem que a pandemia continue, e sabem que recusar medidas anti-pandêmicas irá prolongá-la.

Se for assim, a próxima questão a ser levantada é: o que faz os anti-vaxxers desejarem a continuação da pandemia?

Devemos evitar aqui quaisquer noções pseudo-freudianas, como alguma versão da pulsão da morte, de um desejo de sofrer e morrer. A explicação segundo a qual os anti-vaxxers opõem-se às medidas anti-pandêmicas porque não estão dispostos a sacrificar o modo de vida liberal ocidental – para eles o único quadro possível de liberdade e dignidade –, é verdadeira, mas não suficiente. Devemos acrescentar aqui um gozo perverso na própria renúncia aos prazeres comuns que a pandemia traz consigo. Não devemos subestimar a satisfação secreta proporcionada pela vida passiva de depressão e apatia, de apenas nos arrastarmos, sem um projeto de vida claro.

Contudo, a mudança necessária não é apenas subjetiva, mas uma mudança social global. No início da pandemia, escrevi que a doença daria um golpe mortal no capitalismo. Referia-me à cena final de Kill Bill 2, de Quentin Tarantino onde Beatrix desativa o malvado Bill e o golpeia com a “Five Point Palm Exploding Heart Technique”, a combinação de cinco golpes com a ponta de um dedo em cinco pontos de pressão diferentes, no corpo do alvo. Quando o alvo se afasta e dá cinco passos, seu coração explode em seu corpo e ele estatela-se no chão.

Eu sustentava que a epidemia do coronavírus é uma espécie de ataque da “Técnica de Explodir o Coração com Pressão em Cinco Pontos” ao sistema capitalista global – um sinal de que não podemos seguir o caminho que adotamos até agora, que uma mudança radical é necessária.

Muitas pessoas riram-se de mim mais tarde: o capitalismo não só conteve a crise, como até a explorou para se fortalecer. Mas eu ainda acho que estava certo. Nos últimos anos, o capitalismo global mudou tão radicalmente que alguns (como Yanis Varoufakis ou Jodi Dean) já não chamam a ordem emergente de “novo capitalismo”, mas de “neofudalismo corporativo”. A pandemia deu impulso a esta nova ordem corporativa, em que novos senhores feudais como Bill Gates ou Mark Zuckerberg controlam cada vez mais nossos espaços comuns de comunicação e intercâmbio.

A conclusão pessimista que se impõe é que serão necessários choques e crises ainda mais fortes para nos despertar. O capitalismo neoliberal está morrendo, mas a próxima batalha não será entre neoliberalismo e o que está além, mas entre duas formas deste depois. Ou seja: entre o neofudalismo corporativo, que promete bolhas protetoras contra as ameaças, dentro das quais podemos continuar sonhando — como o “metaverso” de Zuckerberg – e um rude despertar, que nos obrigará a inventar novas formas de solidariedade.



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