segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

O Brasil e a questão da consciência de classe



A esquerda não precisa se aliar com a direita para governar, ela precisa ter um projeto para que a classe trabalhadora crie consciência de classe"

Carlos D'Incao
https://www.brasil247.com/

Era uma tarde quente de novembro de 1974 quando informaram o General Geisel que os resultados eleitorais tinham ficado para muito além do esperado. O MDB havia praticamente aniquilado com as esperanças dos militares da linha-dura em ficar no poder ad infinitum. Na realidade, o governo agora tinha menos de 2/3 do Congresso e do Senado, o que impedia qualquer reforma constitucional vinda de emendas do Executivo.

“O povo não está com a revolução…” assim lamentou Geisel. A esmagadora derrota do governo veio do Sul e do Sudeste principalmente. Para os militares restava dar mais um golpe dentro do golpe. No dia 1º de abril de 1977 Geisel usou o poder do AI-5 e fechou o Parlamento para realizar uma reforma constitucional. Foram 14 dias de debate e o resultado foi a prorrogação da Ditadura Militar até 1985.

O assim chamado “Pacote de Abril” estabelecia que os senadores seriam na próxima eleição indicados pelo executivo, que as eleições para governador seria indireta, que os Estados do Norte e Nordeste teriam maior representação no Congresso e que o mandato presidencial passaria de 5 para 6 anos. A ditadura que poderia ter acabado em 1978 se prolongaria por mais 8 anos, um período suficiente para os militares entregarem o poder a um governo democrático junto com um país com hiperinflação, a mais alta dívida externa do mundo e abarrotado de miseráveis.

O que aconteceu com o Brasil que tinha o Sul e o Sudeste como grandes bastiões da democracia e local de surgimento de grandes sindicatos e partidos de esquerda? Como em tão pouco tempo (historicamente falando) essas regiões se tornaram em grandes pólos reacionários e de extrema-direita?

Para toda pergunta bem constituída há sempre respostas. Mas nem sempre são boas e corretas.

A filósofa Marilena Chauí tem uma interpretação que flerta com o anarquismo: a culpa seria da classe média emburguesada e do avanço dos evangélicos neopentecostais, entre outros fenômenos que não são causas, mas resultantes do processo histórico brasileiro. Essa explicação possuí grande influência no campo da esquerda devido à seriedade e o respeito que essa filósofa merecidamente tem em todo universo acadêmico. Mas falta a ela o bom e velho materialismo-histórico e dialético para a compreensão dos fenômenos, algo que os filósofos da USP não entendem muito bem.

Vejamos sob a luz dessa outra teoria como poderíamos desvendar o mistério da “metamorfose” do Sudeste e do Sul para o campo do reacionarismo.

Tudo começou na implementação do neoliberalismo dos anos 90. Entre várias medidas nefastas, os dois mandatos de FHC criou o fenômeno da “Guerra Fiscal” entre os Estados. Na prática, grandes corporações que estavam situadas nessas regiões e que tinham que pagar salários mais altos pressionados por uma ação muito ativa do sindicalismo, puderam se mudar para o Nordeste (principalmente) onde poderiam aplicar salários mais baixos, sem pressões sindicais.

Vastas regiões do Sul e do Sudeste foram economicamente devastadas por um certo período. O sindicalismo se esvaziou e milhões de trabalhadores seguiram, em regra, 4 caminhos: a) a pejotização ou formação de microempresas; b) deslocamento para o setor de serviços que é altamente volátil, itinerário, sindicalmente frágil e extremamente competitivo no interior dos próprios assalariados - que ganham a maior parte de seus vencimentos por comissões; c) a informalidade que ficou ao serviço de grandes empresas que “alugam” os trabalhadores sem pagar nenhum direito trabalhista (hoje temos os aplicativos como grandes patrões invisíveis que exploram o trabalho de milhares de trabalhadores que não possuem nem mesmo legislação clara de como buscar qualquer direito) e d) a informalidade na forma da pauperização do trabalhador que vive de bicos e/ou serviços diversos, fortemente ligados à construção civil.

Sem condições de criar sindicatos e de se organizarem na forma de uma classe trabalhadora fixa e definida, o que temos é a impossibilidade material de milhões de trabalhadores de formarem consciência de classe. Caso a direita prometa o fim dos direitos trabalhistas em troca de mais serviços, obviamente que esses milhões de cidadãos, que vivem no limbo do mundo do trabalho, vão embarcar na promessa de “mais serviços”… pois direitos eles já não possuem de qualquer forma…

No Nordeste ocorreu o oposto. Lá os direitos trabalhistas interessam, lá os governos petistas fundaram dezenas de empresas públicas e desenvolveu as já existentes. Em suma, fixaram a possibilidade da formação de uma consciência de classe que reconhece programas como o Bolsa Família de forma distinta do que no Sul e Sudeste. No Nordeste Bolsa Família é apoio aos pequenos proprietários de terra, ou seja, ao campesinato; nas cidades é visto como complemento de renda em momentos de crise. No Sul e Sudeste, Bolsa Família é assistencialismo para ajudar vagabundos que não lutam pelo seu ganha pão de maneira digna, ou seja, são regiões que expressam da forma mais reacionária possível qualquer programa de inversão de renda aos mais pobres, ainda que tenhamos aqui milhões deles.

Quando Lula entrou no poder ele não inverteu esse processo, ao contrário, aprofundou o mesmo ao promover a terceirização dentro de empresas públicas e reconhecer a China como economia de mercado, o que na prática destruiu a indústria têxtil de Santa Catarina.

Pouco adianta o vice de Lula ser o próprio Papa. Esse político não terá inserção nessas regiões enquanto não possuir um projeto que fortalece a classe trabalhadora, que estabeleça direitos aos informais, que forme uma federação de trabalhadores do transporte de cargas com direitos salariais, etc.

Na verdade, chega a ser surpreendente a falta de conhecimento histórico e dos mais básicos princípios das teorias progressistas já consagrados historicamente. Vejamos o caso do transporte de cargas. Até a década de 60 o principal meio de transporte era o ferroviário que, sob a luz da esquerda daquela época, era extremamente estratégico - afinal vivemos em um mundo onde a produção de mercadorias se torna inútil sem sua circulação.

A “nova” esquerda dos anos 80 abandonou os caminhoneiros à sua própria sorte, vivendo em parte com financiamentos de seu próprio caminhão para melhor negociar um frete que varia de acordo com os desejos da classe produtora de mercadorias. Ou seja, a esquerda entregou de bandeja um dos setores mais importantes da economia capitalista à direita e - atualmente - ao bolsonarismo.

Sem lutas e nem projetos essa esquerda parece acreditar que os caminhoneiros possuem um problema genético que lhes impedem de ter consciência de classe. Essas pobres almas, na atual conjuntura, se somam aos milhões de trabalhadores que não possuem direitos e que estão na busca de mais “serviço”. Caso a esquerda seja um empecilho a isso, eles vão para a extrema-direita.

A esquerda não precisa se aliar com a direita para governar, ela precisa ter um projeto para que a classe trabalhadora crie consciência de classe. Algo que vai além das palavras e da nostalgia dos tempos da cerveja e do churrasco. Há que se dar condições materiais para que a esmagadora maioria da população crie tal consciência. Para tanto, é necessário leitura histórica, boa filosofia, o fim da naturalização da consciência social do Sul e Sudeste e a certeza de que não existe vazio na consciência: ou é de classe ou está a serviço do capital.

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