Por JOSÉ LUÍS FIORI*
Hipóteses, fatos, e refutações
“O longo debate filosófico e ético dos clássicos, sobre a guerra e a paz, permanece até hoje prisioneiro de um raciocínio circular. Para eles a paz é um valor positivo e universal, mas ao mesmo tempo, a guerra pode ser “virtuosa” sempre que tenha como objetivo a paz. Ou seja, para os clássicos seria perfeitamente ético interromper a paz e declarar a guerra para obter a paz, o que vem a ser um paradoxo lógico e ético” (José Luís Fiori. “Dialética da guerra e da paz”, em Sobre a Guerra).
No início da década de 70 do século passado, dois cientistas sociais norte-americanos – Charles Kindleberger e Robert Gilpin – formularam quase ao mesmo tempo uma tese sobre a “ordem mundial” que ficou conhecida pelo nome de “teoria da estabilidade hegemônica”. O mundo vivia o fim do sistema de Bretton Woods e assistia à derrota dos Estados Unidos no Vietnã. Esses dois autores estavam preocupados com a possibilidade de que se repetisse a Grande Depressão dos anos 1930, por falta de uma liderança mundial, e foi com essa preocupação que Kindleberger formulou seu argumento de que “uma economia liberal mundial necessitaria de um estabilizador e um só país estabilizador”[1] para poder funcionar “normalmente” – um país que assumisse a responsabilidade e garantisse ao sistema mundial certos “bens públicos” indispensáveis para seu funcionamento, como seria o caso da moeda internacional, do livre-comércio e da coordenação das políticas econômicas nacionais.
A tese de Kindleberger era quase idêntica à de Robert Gilpin: “a experiência histórica sugere que, na ausência de uma potência liberal dominante, a cooperação econômica internacional mostrou-se extremamente difícil de ser alcançada ou mantida”. Primeiro, Kindleberger falou da necessidade de uma “liderança” ou “primazia” no sistema mundial, mas depois um número cada vez maior de autores passou a utilizar a palavra “hegemonia mundial”. Às vezes, referindo-se a um poder acima de todos os demais poderes; outras vezes, ao poder global de um Estado que fosse aceito e legitimado pelos demais Estados. Na época da Segunda Guerra Mundial, e preocupado sobretudo com a questão da paz dentro de um sistema internacional anárquico, o cientista social inglês Edward Carr chegou a uma conclusão realista e análoga à de Kindleberger e Gilpin.
Segundo Carr, para que existisse paz, seria necessário que existisse uma legislação internacional, e para que “existisse uma legislação internacional, seria necessário que existisse também um superestado”.[2] E alguns anos depois, o cientista social francês, Raymond Aron, também reconhecia a impossibilidade da paz mundial “enquanto a humanidade não se tivesse unido num Estado Universal”.[3] Aron, no entanto, distinguia dois tipos de sistemas internacionais que coexistiriam lado a lado: um mais “homogêneo”, onde haveria mais consenso e menos guerras, e um outro, mais “heterogêneo”, onde as divergências culturais e as guerras seriam mais frequentes, e onde se faria mais necessária a presença de um “Estado Universal” ou “superestado”, que cumprisse a função de “apaziguar” o sistema.
Do lado oposto ao dos realistas, alguns autores “liberais” ou “pluralistas”, como Joseph Nye e Robert Keohane, defendiam a possibilidade de que o mundo fosse pacificado e ordenado através de um sistema de “regimes supranacionais”, mas mesmo eles reconheciam a existência de situações “em que não existiriam acordos sobre as normas e os procedimentos, ou em que as exceções às regras fossem mais importantes que as adesões”, e consideravam que nessas circunstâncias era necessária a existência ou intervenção de uma potência hegemônica. Edward Carr e Raymond Aron, assim como Joseph Nye e Robert Kehoane, estavam preocupados com o problema e o desafio da estabilização da paz entre as nações; Charles Kindleberger e Robert Gilpin, por sua vez, pensavam o bom funcionamento da economia mundial como uma condição indispensável à preservação da paz entre os povos.
Mas todos chegaram a uma mesma conclusão: a necessidade de um “superestado” ou “hegemon” como condição indispensável para poder ordenar e estabilizar a paz mundial. No entanto, apesar desse grande consenso teórico, por cima de diferentes escolas de pensamento, o que aconteceu no mundo depois de 1991 refutou na prática, e de forma indiscutível, todas essas hipóteses realistas e liberais. A supremacia político-militar conquistada pelos norte-americanos depois do fim da Guerra Fria, e em particular depois de sua esmagadora vitória na Guerra do Golfo, transformou os Estados Unidos numa potência hegemônica unipolar, ou mesmo numa espécie de “superestado”, como preconizava Edward Carr.
Apesar disso, nos 30 anos que se seguiram, aumentou o número das guerras que se sucederam de forma quase contínua, e em quase todas elas os Estados Unidos estiveram envolvidos de forma direta ou indireta. Por outro lado – como preconizaram Kindleberger e Gilpin – os Estados Unidos concentraram em suas mãos – durante quase todo este período – todos os instrumentos de poder indispensáveis ao exercício da liderança ou hegemonia econômica mundial, arbitraram isoladamente o sistema monetário internacional, promoveram a abertura e a desregulação das demais economias nacionais, defenderam o livre-comércio e promoveram ativamente a convergência das políticas macroeconômicas de quase todos os países capitalistas relevantes.
Além disso, mantiveram e aumentaram seu poder no plano industrial, tecnológico, militar, financeiro e cultural. E apesar de tudo isso, o mundo viveu nesse período uma sucessão de crises financeiras, e a maior delas, a de 2008, acabou atingindo a economia mundial e destruindo a utopia da globalização. A partir daí, a maior parte da economia internacional entrou em um período de baixo crescimento, prolongado com a notável exceção dos próprios Estados Unidos, da China e da Índia, e alguns pequenos países asiáticos. Somados todos esses fatos e evidências, pode-se afirmar que as guerras e crises econômicas dos últimos 30 anos refutam peremptoriamente a tese central da teoria da “estabilidade hegemônica” e colocam sob suspeita todas as esperanças pacifistas depositadas na existência de um ou mais Estados “homogêneos” e “superiores” que seriam capazes de ordenar e pacificar o resto do sistema interestatal.
Mas ao mesmo tempo, a experiência histórica das últimas décadas deixou no ar, e sem explicação, duas grandes observações ou constatações muito intrigantes: a primeira é que a maioria das guerras ocorridas nesse período envolveu um ou mais membros do grupo das “grandes potências homogêneas” de que fala Raymond Aron; a segunda é que os Estados Unidos, que viria a se transformar num “superestado” depois de 1991, iniciou ou participou direta ou indiretamente de todos os grandes conflitos travados depois do fim da Guerra Fria. Essas duas observações estiveram na origem de nossas perguntas e de nossa pesquisa sobre o tema da guerra e da paz, que começou pelo estudo dos grandes impérios clássicos que dominaram o mundo a partir dos séculos VII e VI a.C., para depois se debruçar de forma particular sobre o estudo da guerra e da paz dentro do sistema interestatal europeu a partir dos séculos XV e XVI.
Os resultados parciais da nossa pesquisa aparecem nos dois livros que publicamos nos últimos três anos: o primeiro em 2018, Sobre a Guerra,[4] e o segundo agora em 2021, Sobre a Paz.[5] A primeira e grande conclusão que extraímos deste nosso estudo da história é que a experiência recente dos Estados Unidos não é um caso excepcional. Pelo contrário, o que a história do sistema interestatal ensina é que suas grandes “potências homogêneas”, e sua “potência hegemônica”, em particular, foram as grandes responsáveis pela maioria das grandes guerras dos últimos cinco séculos. Fosse no caso da Espanha e da França entre os séculos XV e XVII, fosse no caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, entre os séculos XVII e XXI.
Comprova-se, em todos os casos, que “a” ou “as” “grandes potências hegemônicas ”iniciam suas guerras e desestabilizam todas as situações de paz simplesmente porque necessitam seguir expandindo seu poder para poder manter o poder que já possuem, ou seja, de forma mais concreta, precisam estar sempre à frente de seus competidores imediatos, para impedir que surja em qualquer ponto do sistema algum rival com poder suficiente para ameaçar sua dominação ou liderança global ou regional, em todos e qualquer canto do mundo. Tudo isto porque, em última instância, no campo das relações internacionais, não existe nada que possa se desenvolver fora do espaço-tempo das relações hierárquicas, assimétricas e conflitivas de poder, fosse entre os antigos impérios, ou entre os Estados nacionais modernos.
Basta olhar com mais cuidado, por exemplo, para o movimento contemporâneo das nações favoráveis à redução dos gases de efeito estufa, e da substituição das fontes de energia fóssil por novas fontes de “energia limpa”, que é apoiada por 196 países e conta com a benção generosa do Papa, para entender um pouco melhor como funciona este sistema de poder internacional em que vivemos. Porque a própria transição “ecológica” ou “energética” não poderá ser jamais pacífica ou multilateral, porque envolve disputas e competições não declaradas que terão ganhadores e perdedores, e que darão origem às hierarquias e desigualdades de poder entre os que têm e os que não têm, por exemplo, acesso a algumas das novas fontes ou componentes da “energia limpa”, como o “cobalto”, o “lítio” ou as “terras raras”, por exemplo, que estão mais concentradas do que as reservas tradicionais de petróleo, carvão e gás natural. E nessas disputas assimétricas nunca haverá possibilidade de uma arbitragem “justa”, “consensual” ou definitiva, dependendo da posição que o árbitro ocupe na hierarquia e da assimetria do próprio poder.
E por isso mesmo, nunca haverá uma paz conquistada através da guerra que possa ser equânime, porque toda paz será sempre injusta do ponto de vista dos derrotados. Por isso, concluímos nossos dois livros com uma tese que não é nem realista nem idealista, é simplesmente dialética: “a paz é quase sempre um período de ‘trégua’ que dura o tempo imposto pela ‘compulsão expansiva’ dos ganhadores, e pela necessidade de ‘revanche’ dos derrotados. Por isso se pode dizer que toda paz está sempre ‘grávida’ de uma nova guerra. Apesar disto, a ‘paz’ mantém-se como um desejo de todos os homens, e aparece no plano da sua consciência individual e social como uma obrigação moral, um imperativo político, e uma utopia ética quase universal. Por isso, a guerra e a paz devem ser vistas e analisadas como dimensões inseparáveis de um mesmo processo, contraditório e permanente de busca dos homens, por uma transcendência moral muito difícil de ser alcançada”.
*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).
Artigo apresentado na mesa de lançamento do livro Sobre a Paz, no IV Encontro Nacional de Economia Política Internacional.
Notas
[1] Kindleberger, C. The World in Depression, 1929-1939. Los Angeles: University of California Press, 1973, p. 304.
[2] Carr, E. The Twenty Year´s Crisis 1919-1939. London: Perennial, 2001, p. 211.
[3] Aron, R. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: Editora UnB, 2002, p. 47.
[4] Fiori, J. L. (org). Sobre a Guerra. Petrópolis, Vozes, 2018.
[5] Fiori, J. L. (org). Sobre a Paz. Petrópolis, Vozes, 2021.
[6] Fiori, J. L. (org.). Sobre a Paz. Petrópolis, Vozes, 2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12