Olga Jacobina em depoimento a Luigi Mazza, na Piauí
Psicóloga conta as mudanças nos centros de assistência social. Frente à pandemia e inflação, um novo perfil desponta. Fila tem de engenheiros a artistas desempregados, esgotados e com vergonha. Espera por direitos leva seis meses
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Trabalho com assistência social há mais de dez anos e, desde 2017, estou lotada em um Centro de Referência em Assistência Social (Cras) no Guará, região administrativa do Distrito Federal. Como sou psicóloga, meu trabalho é fazer o atendimento socioassistencial de pessoas em situação vulnerável. Cuidamos daqueles casos em que a pessoa não está carente só de dinheiro – às vezes ela precisa de ajuda para melhorar a relação com alguém da família, com os vizinhos, ou precisa de apoio para obter os benefícios a que ela tem direito. Trabalhamos com os cinco aspectos básicos que devem ser garantidos pela assistência social: renda, convívio, acolhida, autonomia e apoio. Às vezes a pessoa pede um determinado tipo de auxílio, mas na verdade precisa de outro e nem sabe. Como diz uma das minhas colegas, tratamos de penico a bomba atômica.
A política de assistência social no Brasil nunca alcançou o tanto de pessoas que precisam dela. Isso porque é uma política muito nova. Durante décadas, ela se resumiu a conceder benefícios – vale-alimentação, programas para complementar a renda etc. –, sem se preocupar em enxergar a raiz dos problemas. Afinal, a gente não quer só comida, né? É preciso consolidar os direitos sociais. Isso começou a mudar depois da Constituição de 1988 e principalmente a partir de 2004, com a criação da Política Nacional de Assistência Social. Ainda estamos num processo de transformação, trocando a lógica do favor pela lógica do direito.
Sempre houve uma massa de pessoas que precisavam de assistência social e não tinham acesso a ela. Mas, com a pandemia, isso aumentou de uma maneira que eu nunca tinha visto. A nossa fila multiplicou de tamanho. Muita gente que passou a vida sem saber o que era um Cras começou a nos procurar. Os benefícios temporários que nós mais concedemos desde então são o Prato Cheio [auxílio do governo do Distrito Federal que paga 250 reais por seis meses] e o auxílio calamidade, de 408 reais, voltado para quem perdeu a renda por causa da pandemia. Não é um auxílio mensal: a pessoa tem que entrar com um pedido a cada vez que estiver precisando.
A psicóloga Olga Jacobina no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) onde trabalha, em Brasília. Foto: Acervo pessoal
Passamos a lidar com um perfil diferente de pessoas: gente com educação superior, advogados, engenheiros, jornalistas, atores, atrizes. Todo esse pessoal perdeu o trabalho logo no começo da pandemia e não tinha outra opção senão vir até nós. Lembro de um engenheiro que ficou desempregado e passou a trabalhar como Uber, mas, logo que começou, o carro enguiçou e ele não tinha dinheiro para pagar o conserto. A mulher dele, funcionária de um salão de beleza, também ficou sem trabalhar. Eles não tinham saída.
Essas pessoas de classe média que, de repente, se viram numa situação de fragilidade costumam chegar até o Cras com muita vergonha. Acho que é assim porque nunca pensaram que iriam precisar de ajuda do governo, e talvez não enxergassem a assistência social como um direito deles. É como se fosse uma coisa humilhante, uma degradação. Geralmente eles nem sabem como funciona o serviço ou a que tipo de benefício eles têm direito. Só sabem que damos cestas básicas. Chegam e perguntam: o que que tem aí?
No começo da pandemia, a fila de atendimento ainda andava com certa rapidez. Mas à medida que esse novo público descobria os Cras, ela disparou. Com a chegada da primeira leva do auxílio emergencial, em 2020, sentimos um alívio. Muita gente que acessava os serviços do Cras deixou de nos procurar, já que o valor do auxílio era maior do que os benefícios de transferência de renda que já recebiam do governo, como o Bolsa Família [hoje rebatizado de Auxílio Brasil]. Mas tudo voltou a piorar desde o meio do ano passado, quando o valor do auxílio emergencial foi reduzido. As pessoas que tinham se afastado voltaram a buscar a assistência social. É nessa situação que estamos atualmente. Hoje, essas pessoas têm que esperar, em média, seis meses para serem atendidas.
E agora, com a inflação, a situação degringolou de vez. Quase todo dia ouço as pessoas dizerem que o dinheiro no mercado não dá mais para nada. Não conseguem comprar mais carne. Quando acaba o dinheiro do Prato Cheio, as pessoas voltam desesperadas.
Nesta semana, estou atendendo pessoas que solicitaram atendimento em outubro ou novembro do ano passado. Feito o atendimento, ainda demora cerca de dois meses para que o benefício chegue até elas, então imagine só. Está difícil até mesmo achar abrigo para quem está em situação de rua. A única ajuda imediata que oferecemos hoje é o auxílio funeral. Se morrer alguém na sua família hoje e você procurar um Cras, amanhã a pessoa estará enterrada.
As pessoas chegam até nós com urgência. Às vezes precisam de atendimento rápido porque, no dia seguinte, passarão por uma perícia do INSS e precisam ter toda a papelada certinha. Aí a gente diz que vai demorar três meses para conseguir resolver aquilo. Ninguém lida bem com isso. Algumas pessoas vão embora resignadas; outras partem para o embate. Há poucos meses, uma colega nossa sofreu uma agressão horrível de uma mulher que foi buscar atendimento no Cras e não conseguiu o que precisava. Casos como esse vêm acontecendo com alguma frequência. Agora a gente não fica mais com a porta da unidade escancarada. Temos que controlar o acesso das pessoas, para não ter problema.
É compreensível: a pessoa está com uma necessidade básica de alimento, de dignidade, e aí recebe a resposta de que só vai conseguir atendimento dali a seis meses? Imagina a nossa cara, tendo que dizer isso o dia inteiro. Para a pessoa que recorre ao Cras, quem representa o Estado? É o governador, é o presidente? Não, sou eu, que estou com a carinha ali. Sou eu que ela vai xingar, em que vai querer bater. Todo aquele ódio vai ser extravasado ali mesmo. A gente atende pessoas que estão numa situação de vulnerabilidade muito grande. E quando você está com fome, não há civilidade. É barbárie.
Eu percebo que só agora nós estamos vendo o saldo mais profundo da pandemia. Ontem atendi uma mulher que perdeu a filha de 26 anos para a Covid. A filha não era quem provia o dinheiro da casa; era a mãe. Mas, desde que a filha morreu, a mãe não conseguiu mais fazer nada. Está num luto que não passa. Ela passou a ter fibromialgia, uma síndrome que tem forte componente emocional e que causa dores no corpo. É um problema que te imobiliza a ponto de não te deixar trabalhar, mas que ao mesmo tempo não te permite obter um laudo médico atestando sua incapacidade – o que garantiria a ela um auxílio mais estável do governo. Ela vai depender de alguns benefícios pingados para se sustentar.
Nessa nova leva de atendimentos, tenho reparado que as pessoas vêm até nós como se estivessem esgotadas. É uma percepção minha mesmo. Sinto que é uma situação diferente de antes. Muitas pessoas parecem ter ficado presas numa fenda de tempo; é como se estivessem paralisadas, e agora que a vida está voltando a ser o que era antes da pandemia elas não sabem o que fazer. É como se estivéssemos numa ressaca.
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