Foto tirada no que foi considerado o maior manicômio da história do Brasil, localizado no município de Barbacena (MG). (Créditos: Luiz Alfredo/Acervo da Prefeitura de Barbacena)
por Rachel Gouveia Passos
O clássico modelo manicomial e seu funcionamento contribuem para o desenvolvimento do capitalismo e fazem parte do maquinário que possibilita a reprodução do controle, da subjugação e mortificação de corpos e subjetividades considerados desviantes
Em tempos de ataques e retrocessos direcionados para a política de saúde mental, álcool e outras drogas, vinculada ao Ministério da Saúde, torna-se necessário afirmar a concepção de saúde mental defendida pela luta antimanicomial. Apesar do tema estar presente nas mídias sociais, principalmente pelos impactos da pandemia, é preciso desmistificar uma certa homogeneização dos discursos, já que tratar da saúde mental da população sempre fez parte das disputas dos projetos societários.
O clássico modelo manicomial e seu funcionamento – centrado na internação, no isolamento, na violência, no saber e poder médico e no hospício – contribuem para o desenvolvimento do capitalismo e fazem parte do maquinário que possibilita a reprodução do controle, da subjugação e mortificação de corpos e subjetividades considerados desviantes. Podemos dizer que há uma intersecção entre as instituições punitivas e curativas, conforme destaca Angela Davis: “as instituições psiquiátricas com frequência são parte importante do complexo industrial-prisional”. [1]
Nesse sentido, foram criadas estratégias de aniquilamento, o que significa que em vez de proporcionar vida, o que supostamente seria tratamento, gera a morte subjetiva e, consequentemente, a física. Os efeitos deletérios do manicômio brasileiro podem ser lidos em Holocausto brasileiro, de autoria da jornalista Daniela Arbex, ou assistidos no filme Bicho de sete cabeças, baseado na vida do militante Austragésilo Carrano Bueno.
Foto tirada no que foi considerado o maior manicômio da história do Brasil, localizado no município de Barbacena (MG). (Créditos: Luiz Alfredo/Acervo da Prefeitura de Barbacena)
O aparato manicomial sempre foi utilizado para controlar e tratar as denominadas “classes perigosas”. Inclusive, o pensamento eugenista influenciou a psiquiatria brasileira e, ainda hoje, ecoa na formação dos jovens médicos. No Brasil é impossível tratar de saúde mental sem reconhecer que o racismo, a privação de liberdade e o punitivismo estruturaram o modelo clássico.
Na contramão desse projeto conservador temos a luta antimanicomial que vem reivindicando “uma sociedade sem manicômios” e tem como princípios: a liberdade, a emancipação e os direitos humanos. A liberdade, ainda que em disputa no interior do projeto antimanicomial, é compreendida como terapêutica, o que significa que o cuidado em saúde mental deve ser efetivado na vida, nas relações, no território e não mais na clausura, no silenciamento e com violência.
Para que o projeto antimanicomial crie fissuras e possibilidades concretas de transformação torna-se necessário a construção de uma “clínica da delicadeza”. Mas o que seria isso? Explico.
Na constituição da luta antimanicomial brasileira é imprescindível resgatarmos suas bases, retratadas no Manifesto de Bauru de 1987, e que afirmam sua direção política. Vejamos.
O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.
Ao reconhecermos a proposta da luta antimanicomial identificamos como sua direção segue na defesa da vida e contra as opressões e explorações. A clínica da delicadeza é a produção do cuidado em liberdade que nega o silenciamento, o apagamento e a homogeneização das experiências. O manicômio destrói as singularidades, afirmando uma noção de loucura como experiência universal, ou seja, “o louco de todo o gênero”. Dessa forma, acreditamos ser urgente a construção de um cuidado em saúde mental que não atue reproduzindo as opressões, o que não é simples, em uma sociedade produtora de sofrimento e adoecimento psicossocial e que oferta a patologização e a medicalização como resposta.
Torna-se necessário deixar explícito que a noção de clínica aqui adotada não se confunde com os princípios da clínica médica, pois não está direcionada para um tratamento medicamentoso, ao contrário, incorpora outros saberes, disciplinas e práticas socioculturais. É na clínica ampliada que os diversos trabalhadores que compõem as equipes dos serviços de saúde mental viram referências para os múltiplos conteúdos de intervenção, no que se refere à objetivação do trabalho. Contudo, para a produção de novas práticas é preciso romper com as opressões e explorações que forjam os afetos, as relações, o trabalho e as instituições e, para isso, há uma delicadeza para proporcionar um cuidado em saúde mental que não seja violento e destruidor. Nesse sentido, a delicadeza está na ruptura e no agenciamento de novas práticas que transformam dialeticamente o operador e o agente do cuidado.
São nas experiências de diferentes grupos, movimentos, coletivos e instituições que temos encontrado a resistência antimanicomial. Que neste 18 de Maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, possamos retomar o fortalecimento das bases dos coletivos e movimentos sociais para fortalecermos a bandeira: “por uma sociedade sem manicômios”. A estratégia do aquilombamento é um caminho a ser fortalecido e adotado, não como mero discurso e, sim, como prática. O resgate dos valores, das tradições, das práticas de cuidado em saúde, dos afetos construídos como estratégias de resistência pela população negra é primordial para afirmarmos o projeto antimanicomial. Afinal, qual a saúde mental que queremos?
Rachel Gouveia Passos é assistente social, pós-doutoranda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense e autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe.
[1] DAVIS, A. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.
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