domingo, 12 de junho de 2022

Bol$onaro e Guede$: a operação Terra Arrasada


Ataque ao SUS e ao ensino público. Privatização selvagem da Eletrobrás. Renúncia do Estado ao pré-sal. Cada vez mais próximo da derrota, governo trama operações multibilionárias e suspeitas, para entregar a seu sucessor país devastado
As origens do termo terra arrasada são imprecisas; mas os sentidos aziagos desta tática militar, bastante conhecidos. Na iminência de perder seus territórios, exércitos em fuga apelam para a devastação generalizada. Lavouras, instalações industriais, cidades – tudo é destruído, para que as populações, ao retornar, deparem-se com o caos. Em fuga, saqueia-se o que é possível. Nas últimas duas semanas, o governo Bolsonaro deu sinais nítidos de que, em face da derrota eleitoral provável, prepara-se para submeter o Brasil a uma operação política deste tipo. A ação ainda não está escancarada porque parte de seus movimentos atende também a outros interesses, como se verá. Mas basta examinar três esforços do governo – a retirada de cerca de R$ 105 bilhões da receita de ICMS dos estados e municípios, a privatização às pressas da Eletrobrás e o recente projeto para vender a participação do Estado brasileiro no pré-sal – para identificar os dois elementos essenciais da terra arrasada: vandalização generalizada e pilhagem.

Das três operações devastadoras, a mais visível é, naturalmente, a de corte forçado das receitas do ICMS. Envolve o preço dos combustíveis e coloca em choque o Planalto e os governos estaduais. Expressa no projeto de lei complementar (PLP-18-22), prevê redução das alíquotas atuais do imposto ao teto 17%, além do fim da cobrança de PIS e Cofins sobre derivados de petróleo, eletricidade e telecomunicações. Já aprovada na Câmara, com apoio da bancada bolsonarista e do Centrão, irá a voto no Senado nos próximos dias. Pode reduzir em R$ 41,3 bilhões a receita tributária dos estados e municípios e em R$ 35,2 bi a da União – apenas nos 6 meses que restam do ano.

Gasolina, diesel e gás de cozinha alcançaram, de fato, cotações incompatíveis dada a condição do Brasil, que além de exportar petróleo é capaz de produzi-lo com fartura e a custos comparáveis aos mais baixos do mundo. Estudos consistentes sugerem que o custo final da produção e refino da gasolina esteja em torno de R$ 1,00 por litro, enquanto a Petrobrás vende a gasolina a R$ 3,86.

Mas a tentativa de reduzir os preços cortando tributos e amputando receitas do orçamento agrava o disparte, ao invés de amenizá-lo, por três razões. Obrigará os governadores a cortes imediatos nos serviços públicos. Durará apenas até o final do ano, provocando um choque inflacionário certo no início do próximo governo – equivalendo, portanto, a um claro estelionato eleitoral. Acima de tudo, é adotada para preservar os interesses poderosos dos acionistas privados da Petrobrás, que hoje controlam 63,4% do capital da empresa e são, na proporção de 70,1%, estrangeiros (O Estado brasileiro detém, por lei, 50,5% das ações com direito a voto).

Se houvesse algum interesse em corrigir injustiças, e baixar os preços dos combustíveis de modo sustentável, bastaria medida muito mais simples e inofensiva aos investimentos públicos. O governo determinaria à Petrobrás alterar sua política de preços, deixando de atrelá-la às cotações dos países ricos (o conceito de “preço internacional” dos derivados é totalmente fictício). Os brasileiros pagariam muito menos. Mas os megafundos financeiros, que detêm a maior parte do capital não votante da Petrobrás, deixariam de pilhar o Brasil nos níveis atuais. No ano passado, eles receberam R$ 101,4 bilhões em dividendos. Este ano, é provável que o valor aumente. Para que ampliem sem cessar seus rendimentos, a população que usa o SUS e o ensino público precisa empobrecer um pouco mais.

O afago ao baronato financeiro, presente em todos os atos recentes do bolsonarismo, merece ser examinado em detalhes. Cheira a uma combinação entre comparsas. Ao governo importa que as operações de pilhagem tenham apoio político e, sobretudo, não sejam compreendidas como tal pela população. Os senhores do capitalismo rentista já não apostam todas as suas fichas num presidente cada vez mais impopular. Mas a eles interessa avançar o máximo possível sobre a riqueza pública, enquanto têm no Palácio do Planalto alguém incapaz de afrontar seus desejos.

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A privatização da Eletrobrás, que avançou mais alguns passos esta semana, tira proveito da mesma lógica. Os enormes danos que ela pode produzir, ao submeter a geração de energia e o controle das represas e rios a grandes grupos corporativos, já foram analisados em uma série de artigos publicados por Outras Palavras. Mas também chama atenção, por seu aspecto incomum, a forma da privatização. O Estado e a sociedade brasileira sequer sabem quem assumirá o controle de uma empresa cujo caráter estratégico é evidente. As ações estão sendo pulverizadas e entregues a quem deseja adquiri-las. Se a operação não for barrada agora – ou anulada, num futuro governo –, o destino da Eletrobrás cairá nas mãos do grupo com mais poder de fogo financeiro para formar uma minoria de controle. Ele poderá, inclusive, nunca ter atuado no setor de energia. E seu interesse único será tirar proveito de seu poder sobre um recurso indispensável para obter o lucro máximo. A União arrecadará míseros R$ 33,7 bilhões — insuficientes sequer para compensar o que os entes públicos brasileiros gastarão, em apenas seis meses, com a isenção de impostos sobre combustíveis e energia.

Para compreender como se dão as privatizações deste tipo, basta olhar para o exemplo da BR Distribuidora, líder inconteste em seu setor e segunda maior companhia do Brasil em faturamento. Até 2019, a Petrobrás controlava a empresa, que construiu num esforço de quatro décadas. Mas foi forçada pelo governo Bolsonaro a abrir mão dela, num movimento oposto à diversificação de atividades perseguida por todas as petroleiras importantes do mundo. Três rodadas de vendas de ações, no mesmo modelo agora previsto para a Eletrobrás, colocaram a BR sob o tacão de um obscuro fundo de investimentos – o Samambaia Master, do banqueiro Ronaldo Cezar Coelho. Na rodada decisiva, em que perdeu o controle da distribuidora, a Petrobrás vendeu 37,5% do capital da BR por apenas R$ 11,3 bilhões. Os possíveis aspectos obscuros da operação nunca foram investigados. Mas se alguém no governo recebeu vantagens indevidas, não houve dificuldades em esconder o dinheiro no exterior. Bastaria para tanto, por exemplo, transferi-lo à Dreadnoughts Internacional, empresa offshore que o ministro Paulo Guedes mantém no paraíso fiscal das Ilhas Virgens britânicas…

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Ainda mais bizarra – tanto no aspecto de dilapidação do patrimônio público quando no de possível rapina – é a proposta que o governo enviou esta semana ao Congresso, para que o Estado brasileiro… afaste-se totalmente do pré-sal! A proposta extingue a exploração de petróleo por meio do regime de partilha, aquele em que o poder público determina as diretrizes da produção, cabendo à empresa petroleira associada operar os poços. Mantém-se apenas a modalidade de concessão, em que o Estado leiloa o uso dos campos produtores e as corporações vencedoras assumem seu total controle.

Já seria gravíssimo, dado que a concessão, regime tipicamente colonial, tornou-se obsoleta há décadas — em especial nas áreas (como o pré-sal) em que o risco de não encontrar petróleo é próximo a zero. Mas, ainda mais estranho, o projeto propõe vender, por um valor estimado em R$ 200 bilhões, a participação que o Estado brasileiro já detém nos campos petroleiros descobertos pela Petrobrás. A lógica é clara, e está assumida na própria exposição de motivos da proposta. “A PPSA [empresa pública que representa a União no pré-sal] deixaria de integrar os atuais contratos, fazendo com que as decisões empresariais passassem a ser tomadas por entes totalmente privados”… Além disso, o Estado brasileiro prevê, no artigo 10º do projeto, dar novo calote na Saúde e Educação. Ao contrário do que ocorre hoje, nenhum centavo da renda petroleira seria destinado ao Fundo Social que abastece estas duas atividades.

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Duas conclusões emanam dos atos de terra arrasada de Bolsonaro e Paulo Guedes. O governo está de fato em desespero, não parecendo ver outra alternativa senão destroçar explicitamente o país, eliminar os instrumentos necessários para reconstruí-lo e locupletar-se, onde for possível. Mas, ainda que em agonia, não convém desprezar seu poder terminal – inclusive porque, pelos motivos que se viu, as medidas podem ter apoio de interesses muito poderosos.

É preciso expô-las ao ridículo, popularizar seu sentido, usá-las em esforço pedagógico como alerta contra os riscos que o bolsonarismo representa. E, com base em seu exame, preparar a resposta: a vitória sobre a extrema direita em outubro e a consciência de que, para resgatar o Brasil, será preciso em seguida virar também a página do neoliberalismo.


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